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4 CONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DE MÃE PARA FILHA

4.6 Heranças educativas e suas implicações escolares

Além da herança familiar, o sujeito é compreendido como produto de muitas heranças: a social, a econômica e a cultural, próprias do contexto em que sua família está inserida no momento de seu nascimento e desenvolvimento (MALUSCHKE, 2008). E assim como o contexto muda, modificam-se, também, os processos de transmissão de valores, crenças e legados sociais repassados às novas gerações. Há definições de novos padrões de comportamento, bem como há aqueles que perpassam a história e se mantêm ao longo da sociedade, constituindo-se num processo de transgeracionalidade social (ZORDAN; FALCKE; WAGNER, 2014).

Nessa perspectiva, o indivíduo é caracterizado por uma bagagem socialmente herdada que inclui o capital econômico (bens e serviços a que ele dá acesso) o capital social (conjunto de relacionamentos sociais influentes mantidos pela família) e o capital cultural institucionalizado (basicamente os títulos escolares e a cultura geral – os gostos em matéria de arte, culinária, decoração, vestuário, esportes, o domínio maior ou menor da língua culta, as informações sobre a estrutura e o funcionamento do sistema de ensino) (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).

O capital cultural é o elemento da bagagem familiar que tem maior impacto na definição da trajetória escolar. Os capitais econômico e social funcionam como meios auxiliares na acumulação do capital cultural (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). Nesse sentido, o acesso à educação constitui uma das maneiras mais efetivas de se combater a transmissão das desigualdades ao longo das gerações (TOMIZAKI, 2013).

Nos últimos dez anos no Brasil houveram avanços do ponto de vista das políticas sociais, de emprego e geração de renda que permitiram a mobilidade social ascendente de uma

parte significativa da população, portanto, ainda persiste a desigualdade de renda, que é uma das maiores do mundo. A melhoria dos indicadores educacionais no Brasil, nas últimas décadas deste século, conduziu um crescimento da mobilidade educacional intergeracional, caraterizada pelo aumento da média de anos de estudos e uma redução da desigualdade educacional. A mobilidade intergeracional de educação tem sido mais significativa do que a mobilidade intergeracional de renda. Ou seja, melhorar a aquisição da educação não se converte automaticamente em maior mobilidade intergeracional da renda (TOMIZAKI, 2013).

Isso pode estar atrelado ao modelo de expansão do sistema de ensino, nomeado por Lima (2013) como inclusão diferenciada. A expansão se caracteriza como um processo de desvio que direciona os membros, oriundos das classes mais baixas, para as carreiras e os postos de trabalho menos valorizados no mundo do trabalho. E preserva para a elite as carreiras e os postos mais qualificados. É uma forma de inclusão na medida em que promove o acesso daqueles que estavam excluídos do sistema universitário, mas é diferenciada na medida em que os aloca em cursos e instituições com menor status (LIMA, 2013).

Nesse contexto, a família tem um papel indispensável nas relações que precisam estabelecer com os processos de escolarização, de diferentes modos que variam conforme suas condições e patrimônio cultural, social, econômico. Comumente, essas relações entre famílias e escolarização dos filhos são tensas, atravessadas por estranhamentos culturais que aumentam conforme diminui o patrimônio familiar. E isso interfere significativamente nas trajetórias de escolarização das classes populares, que oscilam entre a longevidade escolar e as interrupções deste percurso.

A seu modo, os pais e mães pertencentes às classes populares valorizam a escolarização dos seus filhos, reconhecem a importância da instrução escolar para a mobilidade na sociedade e apresentam um discurso, classificado por Zago (2011) como “pró-escola”. Porém, não assimilam subjetivamente a relação com a escola, como uma disposição real para os estudos, adotando comportamentos de uma contracultura escolar (ZAGO, 2011).

Essa contradição familiar tem origem em contradições sociais, e uma delas é que a sobrevivência está em primeiro lugar. E toda instabilidade e precariedade nas condições de vida afetam percursos e formas de investimento na escolarização dos filhos. Desse modo, a valorização da instrução tende a uma lógica prática, onde o que importa é saber para trabalhar em oposição ao saber como fim e valor em si mesmo. De fato, afirma Zago (2011), a escolaridade não obedece ao tempo “normal” de entrada e permanência até a finalização de um ciclo escolar, mas se define no tempo “do possível” produzindo “excluídos potenciais.”

Ainda assim, não se colocam na situação de vítimas, comumente, consideram-se responsáveis atribuindo à incompetência e à falta de interesse mais do que as condições materiais. E essas rupturas com a escola não ocorrem sem conflito familiar, pois frustram o desejo dos pais de ver a superação de sua condição social em seus descendentes (ZAGO, 2011).

A longevidade escolar nas classes populares é a principal possibilidade de emancipação da herança familiar e pressupõe negociação intergeracional, o que Viana (2011) chama de fenômeno da “tríplice” autorização: primeiro, o filho se autoriza a se distanciar culturalmente; segundo, os pais autorizam os filhos a se emanciparem; e terceiro, um reconhecimento recíproco, entre pais e filhos, de que a história do outro é legítima, sem ser a sua.

Desse modo, pretendo constituir a próxima seção versando sobre as condições de possibilidades de reconfiguração das heranças educativas de mulheres analfabetas, por meio dos processos de escolarização de suas filhas.

Paula,Ana,Rita,Carla,Sandra,Dinorá,Cláudia,

Sara,Carmen,Laura,Glória,Guiomar,Cíntia,

Márcia,Miriam,Joice,Julia,Tainá,Luciana,

Madalena,Catarina,Juliana,Daniela,Lucelina,

Fabiana,Jusamara,Gabriela,Cris,Elis,Ivete,

Iracema,Clara,Hanna,Lívia,Dora,Eva,Sônia,

Mari,Sílvia,Dalva,Dulce,Anaís,Flora,Vilma,

Norma,Ilma,Isis,Lu,Lais,Cristiane,Berenice,

Rosalina,Amanda,Fernanda,Eunice,Karine,

Daiana,Dolores,Berenice,Jane,Joana,Patrícia,

Micheli,Clarissa,Betânia,Francisca,Karen,

Cassia,Déia,Dara,Tita,Leia,Cleo,Tiê,Idê,Carol,

Ester,Taís,Raquel,Sélia,Flor,Marina,Fulor,

Luana,Estela,Mel,Flávia,Isaura,Diana,Paloma,

Priscila,Olíva,Maria,Gisela,Janaína,Mônica,

Rute,Vânia,Daúti,Celeste,Helena,Silvana,

Renata,Luísa

De cem, sete, De sete, duas, De duas, dez... dezenove!

5 RECONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DAS FILHAS DE MULHERES ANALFABETAS

Inicio explicando a folha de rosto do capítulo. Matemática? Poesia? Ou metodologia? De cem mulheres matriculadas no Programa Mulheres Mil do ano 2013 (representadas pela letra da música Cunhãs, na capa e nessa folha de rosto), sete se declararam analfabetas (Celeste, Dolores, Dalva, Isaura, Rosalina, Ester, Norma, em destaque na capa). Duas delas, Dalva e Isaura, foram escolhidas para investigar a inscrição de suas heranças educativas em relação as suas filhas. Essas duas mulheres nos levaram ao universo de mais oito mulheres. Dalva apresenta as filhas Cris, Dara e Julia. E Isaura, descreve suas cinco filhas, Cleo, Mari, Elis, Berenice e Vânia. As duas mães, e suas oito filhas, são dez (em destaque na folha rosto). E contabilizando suas netas, que em algum momento elas as descrevem, são mais nove meninas- mulheres, totalizando 19 mulheres.

Via de regra, se parte do universo se vai para a amostra, aqui também parti do universo (de cem alunas, as sete analfabetas), cheguei na amostra (de duas) que me levou a um novo universo (totalizando 19). Uma transgressão “premeditada” quando se trabalha com a temática de gerações, pois a lógica é “crescei e multiplicai-vos”... E se der um passo atrás, na ancestralidade das duas mulheres, quantas mais encontraria? Procurei respeitar o ritmo das narrativas trazendo para o texto suas abordagens ora de mães, ora de avós.

Nessa seção, aprofundo as narrativas de Isaura e Dalva, num segundo55 movimento da pesquisa focando na constituição de suas famílias e no mapeamento da inscrição das heranças educativas para com as suas filhas. Inicialmente, apresento argumentos sobre a necessidade de sistematizar os genogramas, adaptados da prática psicoterapêutica (CERVENY; DIETRICH, 2008) para o contexto desta tese, bem como as outras perspectivas de análise foucaultiana. Apresento os genogramas e análise das narrativas, individualmente, sendo que a relação entre ambas se dará na última seção.

55 Num primeiro movimento, foram analisadas suas narrativas em conjunto com as sete mulheres nas seções

anteriores.