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Como me propus analisar os discursos, na perspectiva dos enunciados, trago a descrição do público-alvo do Programa Mulheres Mil, sistematizada nos principais documentos e publicações dessa política:31 Termo de Cooperação da Proposta de Projeto Mulheres Mil (BRASIL, 2006), Base Legal do PMM (s.d.), Guia Metodológico do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito das Mulheres Mil (s.d.) e Cartilha Pronatec/BSM/Mulheres Mil (2014).

O primeiro documento, Termo de Cooperação entre The Association of Canadian

Community Colleges e o Conselho dos Dirigentes dos Centros Federais de Educação

Tecnológica, intitulado Proposta de Projeto Mulheres Mil: educação, cidadania e desenvolvimento sustentável (BRASIL, 2006), ao longo das sessenta e três páginas, adjetiva as mulheres como “desfavorecidas” e “marginalizadas”: “O projeto atenderá o objetivo global da inclusão social e econômica de mulheres desfavorecidas [...]” (BRASIL, 2006, p. 2); “Os parceiros brasileiros acreditam fortemente que em um período de quatro anos possam desenvolver uma infraestrutura e sistema de acesso e capacitação sustentável para atender as mulheres marginalizadas [...]” (BRASIL, 2006, p. 10-11).

As mulheres, também, são caracterizadas como “população-alvo tradicionalmente bastante difícil de ser atingida e encaminhada para um estabelecimento de ensino” (BRASIL, 2006, p. 35). Ainda, como mulheres “com questões de analfabetismo, educação deficiente, histórias de emprego de baixo nível ou informais e a constante realidade da pobreza” (BRASIL, 2006, p. 8). É possível identificar no objetivo do projeto uma projeção na mulher como aquela que, além de transformar a si mesma, contribui para o avanço de sua família e de sua comunidade: “Promover a inclusão social e econômica das mulheres desfavorecidas no nordeste e norte do Brasil, permitindo-lhes melhorar o seu potencial produtivo, suas vidas e as vidas de suas famílias e comunidades” (BRASIL, 2006, p. 25).

A Base Legal (s.d.) adjetiva as mulheres, nas vinte páginas do documento, com as expressões que definem o seu público-alvo: “mulheres de baixa renda, vulneráveis socialmente

31 No site do projeto (BRASIL, 2013) foi possível acessar a documentação técnica (Fundamentação legal do Programa, Programa Mulheres Mil e Bolsa Formação), os Manuais (Referenciais da metodologia de Acesso, Permanência e Êxito), Livros (livros publicados sobre o Programa Mulheres Mil) dentre outros materiais não analisados nesse estudo: Publicações em Geral (logo Mulheres Mil), Apresentações e Palestras. Já a Cartilha do Pronatec Mulheres Mil está disponível no portal do MEC (BRASIL, 2014b). Com exceção do primeiro documento, o qual tive acesso à cópia impressa, por intermédio da gestora do Projeto Desenvolvimento Comunitário – Mulheres Mil da Paraíba em 2010, por ocasião de assistir uma apresentação das alunas do IFPB numa formação do CERTIFIC em João Pessoa, e “descobrir” a existência dessa política que chegaria à região sul apenas nos próximos anos.

e de baixo nível de escolaridade; moradoras de comunidades integrantes dos Territórios da Cidadania e/ou com baixo índice de desenvolvimento humano” (BRASIL, s.d., p. 2). Demarco alguns trechos: o primeiro objetivo – “Estimular a inclusão educacional, produtiva e social de mulheres em situação de vulnerabilidade” (BRASIL, s.d., p. 9); e a meta – “Entre 2011 e 2014 o Projeto prevê a formação de 100 mil mulheres moradoras de comunidades com baixo índice de desenvolvimento humano e/ou integrantes dos Territórios da Cidadania” (BRASIL, s.d., p. 9).

No Guia Metodológico do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito das Mulheres Mil (s.d.), elaborado pelos servidores dos Institutos Federais participantes dos projetos pilotos, em suas quarenta e oito páginas, o termo mulheres é raramente adjetivado. Se adjetivado, é acompanhado pelas expressões “em situação de vulnerabilidade social”, “alunas do Programa”, “mulheres pertencentes às classes menos favorecidas e com histórico de descontinuidade educacional em nível fundamental”, “mulheres desfavorecidas”.

Destaco alguns trechos: a apresentação – [...] visando a formação educacional, profissional e cidadã de mulheres desfavorecidas das regiões Norte e Nordeste do Brasil” (BRASIL, s.d., p. 4); a contextualização – “pela melhoria do acesso de mulheres em situação de vulnerabilidade social à educação e ao mundo do trabalho” (BRASIL, s.d., p. 5); os cursos possíveis – “Considerando-se a realidade do público do programa, a situação das mulheres pertencentes às classes menos favorecidas e com histórico de descontinuidade educacional em nível fundamental [...]” (BRASIL, s.d., p. 24); o módulo permanência e êxito – “dar suporte, em forma de serviços e espaços, às mulheres alunas do Programa [...]; cuidar para que o ambiente e as pessoas acolham e respeitem as mulheres do Programa (BRASIL, s.d., p. 27).

Na Cartilha Pronatec/BSM/Mulheres Mil (2014) as mulheres vêm adjetivadas, no decorrer das vinte e quatro páginas, como “pobres em situação de maior vulnerabilidade”, “em situação de pobreza”, “mais pobres”, “beneficiárias do Programa Bolsa Família”, “historicamente em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade”, “que trabalham informalmente”, “em situação de extrema pobreza”, “em situação de risco, vulnerabilidade e extrema pobreza”.

Pontuo alguns trechos: “Ao promover a formação educacional, profissional e cidadã de mulheres pobres em situação de maior vulnerabilidade, [...] qualificar profissionalmente mulheres em situação de pobreza” (BRASIL, 2014, p. 3-4); “o Pronatec/BSM/Mulheres Mil amplia a oferta de qualificação profissional às mulheres mais pobres, em especial às beneficiárias do Programa Bolsa Família” (BRASIL, 2014, p. 4); “busca possibilitar o acesso, com exclusividade, de mulheres historicamente em situação de extrema pobreza e

vulnerabilidade à educação profissional e tecnológica” (BRASIL, 2014, p. 4); “[...] é possível identificar grupos de mulheres que trabalham informalmente e que não têm nenhuma relação com o mercado de trabalho formal [...]” (BRASIL, 2014, p. 5).

Os adjetivos atribuídos às mulheres, nos diferentes documentos, vêm sendo incorporados, dando uma ideia de complementaridade. De “marginalizadas e desfavorecidas” constantes no projeto do Programa (2006), para “vulneráveis”, “baixa renda e classes menos favorecidas” na Base Legal (s.d.) e Guia metodológico (s.d.). Já no documento atual do Pronatec/BSM/Mulheres Mil (2014), as expressões “vítimas de violência”, “risco social” e “pobreza” foram acrescentadas na definição do público-alvo:

Mulheres a partir de 16 anos, chefes de família, em situação de extrema pobreza, cadastradas ou em processo de cadastramento no CadÚnico, com as seguintes características: em vulnerabilidade e risco social, vítimas de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, com escolaridade baixa ou defasada e, preferencialmente, ainda não atendidas pelo Pronatec/BSM (BRASIL, 2014, p. 6).

Conforme a política pública se fortalece, a caracterização do público-alvo recebe detalhamento das especificidades: classe social, renda, idade, grau de escolaridade, ocupação, etc. Quanto às heranças educativas, desde o primeiro documento transparece a preocupação com os processos históricos de escolarização, nos seguintes termos: “Mulheres com questões de analfabetismo, educação deficiente” (BRASIL, 2006, p. 8), “baixo nível de escolaridade” (BRASIL, s.d, p. 2), “histórico de descontinuidade educacional em nível fundamental” (BRASIL, s.d., p. 24) e “escolaridade baixa ou defasada” (BRASIL, 2014, p. 6).

O termo “marginalizadas” só apareceu no primeiro documento do Programa Mulheres Mil, provavelmente datado de 2006, se trata de um projeto construído em cooperação com uma instituição internacional, para uma região específica do Brasil, norte e nordeste, onde os índices de pobreza são mais elevados.

As sugestões analíticas de Azevedo (2008) consideraram que as políticas se articulam ao projeto de sociedade que se pretende implantar, ou que está em curso, em cada momento histórico, ou em cada conjuntura. Projeto que é construído pelas forças sociais que têm poder de voz e de decisão e fazem chegar seus interesses até o Estado e à máquina governamental, influenciando na formulação e implementação das políticas ou dos programas de ação. Influenciando, também, nas diferentes nomeações do público-alvo.

Quando se procura focalizar as representações sociais que norteiam a formulação das políticas públicas e os referenciais normativos deve-se considerar as dimensões, interligadas, que os compõem: a dimensão cognitiva – relacionada com o conhecimento técnico-científico e

com as representações sociais dos fazedores da política; dimensão instrumental – refere-se às medidas que se concebem para atacar as causas dos problemas (instituições, princípios, normas, critérios e demais instrumentos; a dimensão normativa – articula as políticas ao projeto mais global em curso na sociedade, garantindo que nas soluções concebidas para os problemas, sejam respeitados e preservados os valores dominantes (AZEVEDO, 2008)).

Problematizar a nomeação das mulheres nos documentos do Programa Mulheres Mil, com destaque à dimensão cognitiva, parte da consideração de que as políticas públicas são fruto da ação humana. E como qualquer ação humana, todo o seu processo desenvolve-se por um sistema de representações sociais. Desta perspectiva, os fazedores da política ao tomarem decisões que conduzem a sua definição e formulação, se apoiam e algum tipo de definição social da realidade (AZEVEDO, 2008). Muitas vezes, os próprios funcionários, por trabalharem e serem responsáveis por um setor, definirão uma nova filosofia de intervenção pública para eles próprios e para os destinatários da política (MULLER apud AZEVEDO, 2008).

Aqui reside uma questão interessante para analisar a nomeação, se os fazedores de política se visualizam como destinatários da política ou se elaboram apenas para os outros. Nos documentos analisados, fica claro que os adjetivos utilizados são para “outras” mulheres, pois são empregados no sentido de nomear as mulheres como “excluídas” de diferentes dimensões sociais: marginalizadas, desfavorecidas, vulneráveis, analfabetas, pobres, vítimas de violência, etc. A categoria “excluída” não é verificável na prática, na vivência das que são assim nomeadas. Há um desencontro entre o modo como essas mulheres, destinatárias do Programa Mulheres Mil, se situam no mundo e o modo como são nomeadas nos documentos.

A perspectiva foucaultiana até não despreza essas questões até então problematizadas, mas centra sua análise em torno das seguintes perguntas: que visibilidades são ativadas por esse enunciado? Quais são as posições de sujeito que se criam com esse enunciado? Que vontade de poder está na origem de tal enunciado? Como se engendraram os saberes que precisaram ser ativados para que se chegasse a esse enunciado? (VEIGA-NETO, 2014).

Foram utilizadas vinte adjetivações para caracterizar as mulheres alvo do Programa Mulheres Mil nos seus principais documentos, as quais dividi em três diferentes categorias, mobilizando diferentes campos discursivos: a) socioeconômica: desfavorecidas (e pertencentes as classes menos favorecidas) marginalizadas, com emprego de baixo nível ou informal, pobres, vulneráveis socialmente, baixa renda, em situação de risco; b) educacional: população difícil de ser encaminhada a um estabelecimento de ensino, com questões de analfabetismo, educação deficiente, baixo nível de escolaridade, com histórico de descontinuidade educacional em nível fundamental, alunas do programa; e c) público alvo de outras políticas públicas: moradoras de

comunidades integrantes dos Territórios da Cidadania e/ou com baixo índice de desenvolvimento humano, beneficiárias do Programa Bolsa-Família.

Essas nomeações das mulheres público-alvo desse Programa Mulheres Mil visibilizam a precariedade das dimensões econômica, social e cultural dessas mulheres, como viés para justificar a emergência de uma política pública redistributiva.32 Coloca-se discursivamente a mulher neste lugar de carência, de marginalidade e exclusão, inclusive engendrando os saberes demográficos e estatísticos na lógica de construção de gráficos que ilustram essa produção da realidade. Por fim, justifica-se e apresenta-se a solução para o problema, um Programa que lhe qualifique profissionalmente, que lhe dê instrumentos para que possa mudar sua situação.