• Nenhum resultado encontrado

Dalva (68 anos), Isaura (66 anos), Celeste (66 anos), Rosalina (45 anos), Norma (71 anos), Ester (61 anos) e Dolores (60 anos), mulheres que viveram sua infância nas décadas de 50 e 60 do século XX, no meio rural (com exceção de uma), período de modernização, expansão do setor industrial, e de aparente progresso, no qual “um expressivo contingente de homens, mulheres e crianças saíam do campo e construíam, em ritmo acelerado, outra versão do progresso: as favelas, as submoradias, o desemprego, a violência e a miséria” (TEDESCO e ZARTH, 2010, p. 166).

Nesse contexto, aproximadamente 50% da população brasileira acima dos 15 anos de idade era analfabeta, proveniente da ausência do Estado no investimento em políticas públicas direcionadas ao financiamento da educação. Proveniente, também, do discurso que valorizava o trabalho em detrimento da escolarização, para determinada classe social. Esse discurso, corporificado mediante um conjunto de enunciados, sobre a necessidade de trabalhar e o sentimento de que escola não era destinada às mulheres, por motivos variados – dificuldades de aprendizagem, reprovação, morar longe da escola, defasagem idade/série, por serem meninas e se vincularem às atividades relacionadas ao cuidado com a família, o lar e ao trabalho doméstico (adultez precoce):

Aos 7 anos, meu pai me matriculou na escola e frequentei até os 13 anos. Não aprendi [...] fiquei no primeiro ano e rodava [...]. Quando passei pro segundo ano, o pai me tirou da escola. Porque estava grandona e tinha que trabalhar. A mãe e o pai diziam: que burra, não aprende [...], sempre rodando! (Ester, 61 anos).

O meu avô nem deixava irmos ao colégio. Só pra trabalhar. Nós nunca aprendemos a ler. Não sei ler nada. Se chegar um papel, eu não sei ler porque a gente não teve oportunidade no colégio (Rosalina, 45 anos).

Pesquisadora: A senhora chegou a estudar?

Estudei até a terceira, eu me esquecia tudo. O pai tirou da aula pra ir trabalhar, com 12 anos. Trabalhava nas colônias para ajudar na criação dos outros manos (Dolores, 60 anos).

Venho de uma família pobre, de dez irmãos. Morava longe, frequentei a aula só uma semana porque quando chovia o rio enchia e nós ficávamos presos lá na escola. Só estudava quem morava mais perto da escola. Quando cresci um pouquinho, a gente até lavava roupas para as índias. Era muito difícil de lavar no rio, não tinha tanque naquela época (Norma, 71 anos).

Pesquisadora: A senhora frequentou a escola?

Sim. Mas não com a idade de começar frequentar o colégio, depois de uns doze anos, que o pai me colocou. Daí eu já estava trabalhando e não deu em nada, por que eu só brigava, ficava nervosa no meio das criancinhas no primeiro ano atrasado, nunca aprendi (Celeste, 66 anos).

Só que os pais diziam: Deus o livre, menina não estuda, não estuda! Só os guris, menina não podia nem falar em estudar. Por que será que era assim? Por que será que o tempo antigo era assim? (Isaura, 66 anos).

A década de 50 do século XX ainda mantinha discursos e práticas oriundas do século XVIII, em que as crianças entre nove e doze anos participavam das tarefas cotidianas. “Alguns, inclusive, já teriam se iniciado em variados ofícios: podiam ser aprendizes de sapateiros, costureiras, torneiros, carapinas, jornaleiros. Vários deles exerciam atividades domésticas, complementares às realizadas pelas mães” (DEL PRIORE, 2013, p. 148). Diferente das discussões posteriores36 sobre a exploração do trabalho infantil, a prática era bem aceita, pois era ligada por cuidados e preocupações comuns, onde mães e filhos eram solidários, ocupando- se com o trabalho para garantir o dia a dia, fosse na produção de gêneros comestíveis ou no

36 Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990.

pequeno comércio. Já no fim do Império e primeiras décadas da República Velha, os filhos de mães pobres foram absorvidos pelas indústrias que se multiplicavam nas grandes cidades.

Quanto ao questionamento de Isaura, sobre a diferença entre meninos e meninas em relação a possibilidade de escolarização, Romanelli (2012) responde que os meninos precisavam saber fazer contas, ler e escrever para negociar, assumiriam a administração da propriedade. Como afirma Rosemberg (2013), no Brasil a educação escolar das mulheres é fato recente. Foi longo o processo para a permissão legal do acesso geral e irrestrito das brasileiras à escola. Autorizada em 1827 pela Lei Geral do Ensino de 5 de outubro, restrita apenas às escolas femininas de primeiras letras, essa barreira legal só foi rompida em 1971 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 5692/71 que, também, atribui equivalência entre os cursos secundários. Ou seja, o Curso Magistério, predominantemente feminino, passou do status de profissionalizante para secundário, possibilitando o acesso ao Ensino Superior.

A autora traz como prova eloquente o índice de analfabetismo: desde o primeiro recenseamento em 1872, até o de 1950, vem denotando o analfabetismo de mulheres em vários pontos percentuais maiores que os dos homens. Uma redução gradual do diferencial foi ocorrendo a partir de então, chegando a equiparar-se em 1985 (26,6% dos homens e 26,6% das mulheres) até sua inversão detectada no início dos anos 1990. Época em que a educação das mulheres entrou na agenda da educação nacional, como em outros países da América Latina, deflagrando um “intenso processo de reformas educacionais impulsionadas por organizações internacionais (Unesco, Unicef, Banco Mundial, entre outras), subsumidas nos compromissos da campanha internacional ‘Educação para Todos’” (ROSEMBERG, 2013, p. 345).

As mulheres que se declararam analfabetas, nesse estudo, viveram sua infância nas décadas de 50 e 60 do século XX, época em que seus pais tinham dificuldade em imaginar para elas um futuro diferente do que foi o seu passado. “O passado dos adultos é o futuro de cada nova geração”, afirma Forquin (2003, p. 6), ao se referir às culturas pós-figurativas. Forquin (2003) remete ao estudo de Margaret Med sobre o fosso entre gerações, onde é apresentada a distinção entre três tipos de culturas: culturas pós-figurativas, cofigurativa e pré-figurativa.

As culturas pós-figurativas ocuparam o maior espaço na história humana. Pautaram as sociedades primitivas, os pequenos enclaves religiosos ou ideológicos, predominando a tradição, a autoridade dos anciões, as marcas do passado. Numa cultura co-figurativa, a influência dominante provém dos pares, contemporâneos, daqueles que pertencem a uma mesma classe ou categoria de idade, não mais dos anciões. Esse modelo está em vias de ser superado e essa nova fase equivale à era pré-figurativa da cultura, onde as antigas ferramentas e pensamentos se tornaram obsoletos. Uma reviravolta paradoxal das relações entre gerações,

em que todas as funções de transmissão parecem estar acometidas de paralisia. É muito melhor ser um jovem sem bagagem do que um adulto atravancado pela memória de um mundo irremediavelmente perdido (FORQUIN, 2003). Rompe-se rapidamente com uma tradição que constitui o humano.

As orientações da família quanto ao futuro ideal das mulheres, ou das mulheres ideais, representavam o pensamento da época, o qual constava até em decreto presidencial. Getúlio Vargas assinou em abril de 1941 um decreto sobre a educação feminina: “deveria formar mulheres ‘afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na administração da casa’” (DEL PRIORE, 2013, p. 66). Nesse contexto, as mulheres casadas podiam trabalhar fora de casa somente com permissão do marido. Somente a partir de 1943 “a legislação concedeu permissão para a mulher casada trabalhar fora de casa, ‘sem a autorização expressa do marido’” (DEL PRIORE, 2013, p. 68). “Sem estudo, a maior parte das jovens investia nas ‘prendas domésticas’” (DEL PRIORE, 2013, p. 69).

A naturalização ou convenção que atribui às mulheres a responsabilidade pelo lar, liberando os homens para a vida pública, remonta os séculos XVII e XVIII. Com a ascensão da classe burguesa, introduziu-se um conjunto de tarefas que deveriam ser desenvolvidas pelas mulheres, concomitante ao investimento da figura da mãe, do amor materno e da infância, não mencionados até então (BAUER, 2001). Ao final do século XVIII, estava definida uma certa discursividade sobre as tarefas masculinas e femininas. E o discurso de trabalho passou a vincular-se àquele realizado fora das dependências do lar, ou seja, as atividades desempenhadas pelas mulheres em casa, deixaram de ser consideradas como um trabalho, respaldadas pela ideia da responsabilidade afetiva.

Essa divisão entre a esfera pública masculina e os recônditos da vida privada “essencialmente” femininos, não contemplou a realidade de todas as mulheres. Há centenas de anos, a mulher brasileira trabalha. Nos primórdios da colonização, elas foram fazendeiras, comerciantes, lavadeiras, escravas. De modo particular, segundo Davis (2016), as escravas não desfrutaram da ideologia da feminilidade do século XIX, foram vistas como unidades lucrativas de trabalho, e a maior parte delas trabalhava na lavoura.

Na primeira metade do século XX, grande parte do proletariado era formada por mulheres (DEL PRIORE, 2013, p. 89). Na época das revoluções, elas comandavam a economia e as estâncias. Na década de 1950, com o crescimento urbano e industrial, aumentaram as possibilidades educacionais e profissionais para as mulheres no Brasil. Porém, as mudanças não tinham atingido as mentalidades e tanto as distinções entre posições femininas e masculinas quanto a moral sexual permaneciam nítidas. O “trabalho da mulher, ainda que cada vez mais

comum, era cercado de preconceitos e visto como subsidiário ao trabalho do ‘chefe da casa’” (DEL PRIORE, 2013, p. 71).

No breve panorama da educação formal das mulheres no Brasil, traçado por Rosemberg (2013) é possível identificar primeiramente o modelo discursivo de uma educação feminina virtuosa até o século XIX, inspirada nas figuras centrais do cristianismo. Posteriormente, vislumbrou-se uma discursividade da educação das mulheres, enquanto necessidade, porque seriam educadoras de homens, imprescindíveis à nação. Defendeu-se a educação diferenciada, pois eram tidas como menos inteligentes e mais frágeis que os homens, e assim o currículo escolar também ajudaria preparar a “rainha do lar”, também se criticou a escola mista, por ser promíscua. Alegando a vocação ao sacerdócio, estimulou-se a formação de professoras nos cursos normais de magistério. Combateu-se o discurso da educação diferenciada, sob o argumento de que servia para relegar a mão de obra das mulheres ao “exército de reserva”, fazendo com que ocupassem postos com menor remuneração que os ocupados pelos homens. Ampliou-se a educação das meninas e moças porque elas talvez poderiam impedir a reprodução do círculo vicioso da pobreza. Voltou-se a defender um discurso da segregação sexual na escola para não terem de enfrentar a concorrência “desleal” com os meninos, principalmente no que se referia à matemática.

Outro discurso recorrente, no contexto da infância das mulheres pesquisadas, que se agrega ao discurso da valorização do trabalho em detrimento da escolarização, foi da circulação de crianças na casa de vizinhas, comadres e amigas enquanto solução para que a mulher pobre pudesse ganhar a vida e a de seus filhos (DEL PRIORE, 2013). A solidariedade entre as mulheres mais pobres era recíproco, tanto para aquela que deixava as crianças, tanto para aquela que as acolhiam por períodos mais longos, pois em algumas situações se “cobrava”, com trabalho, a possibilidade de uma vida melhor:

Na verdade, na minha família só duas pessoas aprenderam a ler. Porque os meus tios, ajudaram a mãe. Elas paravam nos meus tios, eles davam estudo, em troca do trabalho. Se de repente a mãe tivesse me dado, porque a minha madrinha me queria, mas ela não quis. Dizia que ela não ia extraviar os filhos (Dalva, 68 anos).

Pesquisadora: A senhora disse que desde a infância trabalhou na lavoura, em que momento se falou em escola?

No sítio [...], tinha uma professora de uma mulher que queria muito que eu fosse trabalhar pra ela, e assim ela em troca me daria as aulas (Isaura, 66 anos).

A relação das mulheres pesquisadas com a escola varia entre nenhum vínculo (três delas), até seis anos de matrícula. Período esse que não permitiu ultrapassar o terceiro ano do Ensino Fundamental37 (duas cursaram o primeiro ano, uma cursou até o terceiro ano e uma cursou alfabetização na modalidade de educação de jovens e adultos – EJA), conforme constatação no quadro a seguir:

Quadro 1 – Caracterização das mulheres por idade e escolaridade

ESCOLARIDADE IDADE Sem Escolarização 1º ano E. F. 3º ano E. F. 3º ano E. F. Alfab. EJA TOTAL 45 a 59 anos 1 - - - - 1 Mais de 60 anos 2 2 - 1 1 6 TOTAL 3 2 0 1 1 7

Fonte: Questionário da pesquisa.

Apenas Dalvadeclarou a EJA como escolaridade no momento da matrícula, mas foi possível identificar nas narrativas que Isaura e Celeste também cursaram alfabetização nessa modalidade de ensino. O motivo de omitirem essa informação pode estar associado ao fato de que, mesmo tendo frequentado aulas de alfabetização de adultos, ao não completarem o processo com êxito, se reconheçam e se autodeclaram analfabetas. Pode também estar associado ao fato de que, realmente, não aprenderam a ler e escrever ou ainda ao analfabetismo por regressão. Segundo Ribeiro (1997), esta é uma característica dos grupos que, tendo alguma vez aprendido a ler e escrever, devido ao não uso dessas habilidades, retornam à condição de analfabetos. Portanto, ao serem questionadas sobre o grau de escolaridade, remetem aos vínculos do período da infância.

Recorrente no discurso educacional, normatizada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n. 9394/96), a vida adulta não é o período da “idade própria, ou regular” para o acesso ou continuidade dos estudos:

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria.

§ 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que

não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames (BRASIL, 1996, grifos meus).

37 Nomenclatura da legislação atual. Na época, a estrutura do ensino, normatizada pela Lei Orgânica n. 8.529/46 e após pela Lei de Diretrizes e Bases n. 4.024/61, estabelecia quatro séries anuais para o grau primário. Por isso, muitas se referem ao “primário incompleto”. Concluindo o grau primário, era obrigatório o exame de admissão ao primeiro ciclo Grau Médio ou Ensino Secundário, o ginasial com duração de quatro séries.

Localizo enunciados, trazidos pelas mulheres, que retornaram à escolarização na vida adulta, os quais reforçam esse discurso “da idade própria ou regular para estudar”, e ainda apontam para as aprendizagens de ordem prática, os problemas de “esquecimento” e o ambiente juvenil da escola:

Aprendi depois de velha. As patroas que tive ensinaram a escrever o meu nome e sobrenome. Depois frequentei um tempo de aula na escola estadual. Aprendi alguma coisa, pois não sabia as horas do relógio nem usar um celular (Celeste, 66 anos).

A profe da EJA disse: tu és inteligente, Dalva, não desista, venha! Ela passava tudo no quadro, eu lia e escrevia tudo. Chegava em casa, não sabia nada. Muita coisa eu aprendi, ver a hora, reconhecer o dinheiro. Agora, já sei lidar no celular, já conheço a hora, leio as placas. Tudo com dificuldade, mas já leio (Dalva, 68 anos).

Pesquisadora: E qual que seria a maior dificuldade assim que a senhora percebe?

A profe ensina, escrevo e leio tudo, mas esqueço logo. Parece que eu tenho um distúrbio, esse esquecimento (Dalva, 68 anos).

Quando cheguei no colégio, vi aquela multidão de criançada, fiquei com vergonha [...] tinha mais umas amigas [...] uma cunhada [...] e mais umas outras vizinhas. Aí a gente foi se encaixando ali, mas a vergonha foi bastante. [...] tinha vergonha de estudar (Isaura, 66 anos).

Esse discurso é reforçado, também, pelo senso comum, pelos ditos, “papagaio velho não aprende a falar”, “burro não aprende línguas”, “mulher precisa saber contar até seis, pois não há fogão de sete bocas”, “pobre tem cabeça fraca para os estudos”, e poderíamos continuar enumerando uma série de expressões populares sobre o assunto.

A questão da idade (uma delas está na faixa etária dos 45 a 59 anos, seis mulheres têm mais de 60 anos) reafirma a constatação das estatísticas quanto a maior incidência de analfabetismo entre os mais velhos. Conforme a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) a taxa de analfabetismo por faixa de idade ficou assim distribuída: 0,8% entre a população de 15 a 19 anos; 1,3% entre a população de 20 a 24 anos; 12,9% entre a população de 55 a 64 anos; 25,7% entre a população de 65 anos ou mais (BRASIL, 2016).

Quanto à questão da classificação de cor e etnia, de fato muito complexa, num país em que a maioria da população é fruto da miscigenação, utilizei os termos “branca, preta, amarela, parda ou indígena”, para questionar como as participantes da pesquisa se autodeclaram em relação a sua cor, conforme critérios adotados pelo IBGE. Das sete pesquisadas, duas autodeclararam-se pardas e cinco autodeclararam-se brancas. Inclusive a Norma, que afirmou

ter morado na área indígena até a vida adulta. Fica evidente o fato de que, como a maioria dos brasileiros, especialmente na região sul, elas não se reconhecem como negras ou indígenas. Reafirmando a legitimação da branquitude como norma, que se tornou socialmente hegemônica, a representação idealizada de raça, aquela que se estabelece como padrão, qualificando pessoas com um arquétipo físico e moral determinado que deveria se parecer com todos/as, ou seja, a normalização homogeiniza (ANDRADE, 2008).

A argumentação, até aqui, confirma que a herança educativa do analfabetismo de