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A inscrição, na perspectiva teórica de Derrida (2013), implica reconhecer que mesmo a língua tendo uma tradição oral independente da escritura, o prestígio da forma escrita acaba por ofuscar a oralidade. O que nomeia como “violência do esquecimento.” Acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a escrever, invertendo-se a relação natural. “A escritura, meio mnemotécnico,46 suprimindo a boa memória, a memória espontânea, significa o esquecimento” (DERRIDA, 2013, p. 45).

Derrida (2013) pondera que a própria ideia de ciência nasceu numa certa época de escritura, e que a ideia mais rigorosa de uma ciência geral da escritura nasceu por volta do século XVIII, num certo sistema determinado das relações entre a fala viva e a inscrição. Também, que a escritura não é somente um meio auxiliar a serviço da ciência, é a condição da

espisteme. E que a própria historicidade está ligada à possibilidade da escritura. Antes de ser

objeto de uma história abre o campo do devir histórico. Foucault (1999) reconhece a escritura

46 Técnica para desenvolver a memória e reter coisas, por meio de métodos artificiais que utilizam associação de

ideias, combinações, etc. (MICHAELIS, 2016c).

como um dos sistemas de sujeição do discurso por meio do desnivelamento entre os discursos que permanecem (a escrita, textos religiosos, jurídicos, literários, científicos) e os discursos que passam (a oralidade e outras modalidades não formais).

Aqui, parto da ideia do mundo como espaço de inscrição, da instituição de um lugar, de produção da existência, das experiências, das relações discursivas dos conhecimentos. E são diversas as suas dimensões – a família, o trabalho, a comunidade, as instituições religiosas, educacionais, sociais e políticas – que se diferem pelo grau de complexidade. Porém não podemos negar que na atualidade, da ação mais simples a mais complexa, há um atravessamento que perpassa a maioria, se não todas elas: a leitura e a escrita. E como a cultura oral, vem perdendo espaço na sociedade do conhecimento pautada na cultura digital, em que teclar, e mais recentemente dedar, substituir o falar.

Nesse sentido, é pertinente a afirmação de Coll e Illera (2010, p. 290), “[...] o domínio da leitura e da escrita é necessário para que haja a possibilidade de se realizar outros muitos aprendizados, tanto na escola quanto fora dela”. Nesse caso, analfabeto é aquele ou aquela a quem foi negado o direito de ler (FREIRE, 1979).

Ao analisar os discursos de mulheres que não dominam o código da leitura e da escrita e conhecer suas estratégias de inscrição na sociedade grafocêntrica, encontro elementos que reforçam a afirmação, acima, de Coll e Illera (2010). Elas realizam atividades que envolvem leitura e escrita como o recebimento de correspondências na caixa do correio, fazem compras no supermercado, trabalham, participam de um curso de qualificação numa instituição de ensino, acompanham a vida escolar dos filhos, participam da igreja, integram programas sociais, informam e são informadas, etc., porém, na maioria das vezes, estabelecendo relações de dependência com alguém alfabetizado.

Da experiência em programas de alfabetização de adultos, e do estudo desenvolvido até então, é recorrente ouvir depoimentos a respeito da condição de analfabetismo, em que as mulheres retomam aspectos de suas histórias de vida e localizam um contexto em que a leitura e a escrita não eram necessárias. Bem como sinalizam marcadores de quando a leitura e a escrita passam a ser uma exigência no seu cotidiano, marcando presença por meio da “falta”.

Hoje, o estudo faz falta. Antigamente não precisava, mas não entendo porque antigamente o pessoal vivia tão bem. [...] Não sentia falta da leitura e da escrita porque a gente não tinha aquela convivência, hoje considero que era como uma pessoa cega, porque não sabia nada e não me fazia falta (Isaura, 66 anos).

alfabetização única substituiu a ideia pluralista de alfabetização (práticas sociais) e à afirmação de Freire (1979) em que, em certas circunstâncias (antigamente, num contexto de multiplicidade de alfabetizações na interação cotidiana, por meio de tarefas práticas), o analfabeto é o homem e/ou a mulher que não necessita ler ou pelo menos que acredita que pode continuar vivendo sem ser alfabetizada (não precisava e o pessoal vivia tão bem), em outras circunstâncias (hoje, sociedade grafocêntrica, alfabetização estandartizada) é aquele ou aquela a quem foi negado o direito de ler (o estudo faz falta).

Nas atividades que envolvem trabalho e renda, três delas exercem trabalho informal especialmente com vendas de artesanato, roupas ou cosméticos. Uma delas está aposentada como servente. E as demais se dedicam, exclusivamente, às atividades domésticas em casa. A renda familiar não ultrapassa o valor de um salário mínimo, sendo que duas delas são dependentes diretas de seus companheiros. Atribuem importância à leitura e à escrita, na dimensão trabalho e renda, considerando que ambas facilitam a vida cotidiana. Na condição de analfabetas, criaram estratégias para realizar suas atividades remuneradas, e novamente aparece a figura de uma pessoa alfabetizada:

Um vizinho ajudou me cadastrar na Hermes [...]. Não sabia nada, mas a minha guria [...] fazia o pedido porque ela sabia, eu não sabia nada. Só sabia falar e vender. Comecei a pegar roupas e calçados do viajante para vender e me entreter [...] (Isaura, 66 anos).

Vendo Avon. Sempre peço para uma neta pra marcar tudo porque eu sozinha não sei fazer o pedido. Tenho uma netinha que sempre me ajuda (Ester, 61 anos).

Só sei escrever o meu nome. Trabalho em casa, vendo roupas. Tenho um caderno e o cliente marca o valor que está na etiqueta. Quando o revendedor vem fazer o acerto ele soma, leva a parte dele e deixa a minha porcentagem e mais roupa para eu vender. Dinheiro eu conheço, até demais (Rosalina, 45 anos).

Percebi que Rosalina confia no seu conhecimento quando o assunto é dinheiro, utiliza a expressão “até demais.” Porém, se refere ao conhecimento da manipulação da moeda, receber e conferir o dinheiro e fazer o troco, pois anterior e contraditoriamente a essa afirmação, se descreve como expectadora do processo de raciocínio matemático, identificação dos valores nas etiquetas, registrar a compra realizada pelo cliente, e desenvolver o cálculo para o acerto com o representante comercial.

a estratégia mais recorrente para inscreverem-se na sociedade grafocêntrica é solicitar ajuda de outras pessoas: “De vez em quando peço ajuda, quando chega uma mensagem, passo o telefone para alguém ler para mim” (Rosalina, 45 anos).

Porém, elaboram de formas distintas essa situação de dependência da pessoa alfabetizada. Algumas, reconhecem que a condição de analfabetismo não foi uma opção, mas resultado do contexto histórico.

Tem que pedir ajuda. [...] eu sei que eu preciso e peço! Não me sinto derrotada por causa disso, não foi culpa minha [...], foi, lá da antiguidade [...] hoje as crianças não aprendem porque não querem! (Norma, 71 anos).

Outras exteriorizam sentimentos de desprezo, “Sinto um desprezo das pessoas” (Celeste, 66 anos), inferioridade e impaciência das pessoas para com elas, “Fico chateada, se eu soubesse não dependeria de outra pessoa para escrever uma carta por mim, e ler as minhas cartas” (Ester, 61 anos). Não saber ler as tornam dependentes dos outros em (“quase”) todos os momentos que envolvem leitura e escrita: “Às vezes a gente quer ler em casa, e as crianças e o marido não têm paciência. Aí eu digo como é triste não saber ler, tem que depender dos outros” (Dalva, 68 anos).

O contraponto entre a negação “não saber ler” e a afirmação “saber fazer” foi um aspecto recorrente nessas narrativas. Admitir o “não saber ler” acompanhado de um “saber fazer algo” parece uma compensação.

Faz quarenta e poucos anos que canto no coral. Os hinos difíceis, tive dificuldade de não poder ler um arquivo. Canto melhor do que as mulheres que estão com os arquivos [...]. Sinto-me bem feliz. Deus, nesse momento teve misericórdia, me deu dom de decorar hinos difíceis (Celeste, 66 anos).

Já sei lidar no celular, conheço a hora, muitas placas, já leio [...]. Consigo fazer as coisas no meu trabalho. Só tenho dificuldade de leitura e escrita, no mais, entendo tudo as coisas (Dalva, 68 anos).

Admitem, com muita naturalidade, que não leem e não escrevem, mas sabem das coisas. Nesse sentido, acredito que se inscrevem na sociedade grafocêntrica, pela espontaneidade de sua cultura oral, da humildade em solicitar auxílio quando necessita ler e escrever, do estabelecimento de confiança com a pessoa alfabetizada, na maioria dos discursos aparece uma

figura feminina (filha, neta, vizinha, colega do grupo de oração), da persistência na realização dos trabalhos informais, do desenvolvimento de outras habilidades como decorar hinos, lidar com o celular, do desejo de “subir mais alto”.

Outro elemento recorrente nas narrativas discursivas, e nos meios populares é a projeção de uma vida diferente para os filhos. Para quem não tem posses a herança pode ser o incentivo e valorização dos estudos, que abre possibilidades para o trabalho qualificado, um salário digno e possivelmente, uma vida melhor? “Reclamo, porque não estudei mais para ter uma vida melhor. Sempre reclamo de não ter aprendido. Aí incentivo as crianças: estudem, estudem, para não ficar igual a mãe (Ester, 61 anos).

Encerro essa seção, antecipando as inquietações que permearão a continuidade da escrita, nas próximas seções e segundo momento/movimento da pesquisa: Quais são as dimensões do lugar social que as mulheres analfabetas almejam para suas filhas47? Quais foram os movimentos na educação das filhas que permitiram acesso a esse lugar almejado? Quais as possibilidades de avaliar o resultado desses movimentos: o que se aproxima e o que se distancia? Como e por que é atribuída à escola (a qual não teve centralidade na sua vida) essa função social? As mulheres analfabetas reconhecem quais outros condicionantes interferem nesse movimento de proximidade e distanciamento na vida das suas filhas?

47 Por exemplo, numa narrativa de Isaura (66 anos) sobre os rituais do namoro e casamento, ela afirma orgulhosa: “Por que eu me criei e criei minhas meninas nessa doutrina. Criei minhas filhas conforme me criei”. Também Dalva (68 anos) se orgulha em dizer que aprendeu com os pais analfabetos a questão do respeito na relação com as pessoas, o qual ela preza.