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5. ESFERA PÚBLICA, ESPAÇO COMUM: COMO A MODERNIDADE ABALOU A

5.2.1 A Obra escrita e a sua própria história como documento

Com o objetivo de analisar a ação intelectual desempenhada por Manuel Querino ao publicar a série A Bahia de Outrora, destacamos dados sobre a trajetória desta obra, que adquire novo sentido ao ser republicada. Grande parte dos artigos que compõem a obra A Bahia de Outrora foi primeiramente publicada como série no Jornal de Notícias entre 03 de março de 1913 e 02 de dezembro de 1915. Alguns textos saíram avulsos na revista do IGHB. Sua primeira forma de divulgação sugere um diálogo com um público bastante distinto do que o mesmo conteúdo alcança em sua segunda publicação, em formato de livro. Ao serem publicados no Jornal de Notícias, os artigos — que compuseram posteriormente os capítulos do livro — ocupavam a primeira coluna da primeira página, um espaço também destinado ao chamado "artigo de fundo", que definia a "opinião do jornal", podendo ser produzido ou pela redação ou por um correspondente (ALOÍSIO DE CARVALHO, 1923).

Os artigos de Manuel Querino seguiam a métrica opinativa que caracterizava este espaço do jornal antes da adoção do estilo textual da imprensa moderna — reportagens, notícias, entrevistas. Os textos da série A Bahia de Outrora eram carregados de crítica política e tinham um caráter engajado que depois passou a ser considerado pesado e enfadonho pelo público, ávido pela atualidade, leveza e velocidade das notícias e reportagens que surgem com a profissionalização do jornalismo.

Em novembro de 1916, a obra A Bahia de Outrora foi publicada no formato de livro. Neste ano, o Jornal de Notícias já estava em decadência, havia se transformado em um vespertino e tinha sido vendido pela antiga firma Aloísio de Carvalho & Filhos para Ernesto Simões Filho, o proprietário do então moderno e inovador jornal A Tarde, fundado em 1912.

Ao ser compilada em livro, a série de artigos A Bahia de Outrora tem o seu papel de crítica política minorado, sendo apresentada e recebida como um estudo de tradições da antiga Bahia. Cabe destacar que em 1916 a parte da reforma urbana que J. J. Seabra realizou em seu primeiro mandato estava em vias de finalização. Uma visão progressista havia se legitimado a partir dessas medidas. Os artigos que, entre 1913 e 1915, representaram uma militância política contra as ações autoritárias dos grupos que prevaleciam na Bahia, após a proclamação da República, foram redefinidos como estudo de saudosas tradições da "Velha Bahia" — não mais a "Bahia de Outrora", a qual era uma sociedade menos injusta e mais autêntica que aquela atual.

Velha Bahia é a expressão usada pelo editorial do jornal da situação O Democrata — órgão do Partido Democrata Republicano na Bahia, liderado pelo governador J. J. Seabra — para definir o tema do livro A Bahia de Outrora ao anunciar a sua publicação. Pelo estilo literário e pelos indícios biográficos, é possível que a notícia tenha sido redigida por Xavier Marques, que foi redator-chefe e diretor desse jornal entre 1916 e 1919. Em prol dessa hipótese, levamos em conta o contato existente entre Xavier Marques e Manuel Querino, indicado pela presença daquele na lista de pessoas que foram agraciadas por Querino com um exemplar da segunda edição do livro Artistas Baianos (1916) e com a primeira edição de O Colono Preto como Fator da Civilização Brasileira (1918).

Note-se que essa trajetória da obra literária revela elementos interessantes sobre a história dos próprios suportes materiais: o jornal, o livro, as revistas acadêmicas. Com o fenômeno de profissionalização da imprensa e o surgimento do jornalista como profissional especializado, o grupo intelectual que conquistara sua vigência na esfera pública, a partir da reverberação das campanhas políticas não-partidárias, em torno de grandes questões públicas, como a abolição e a mudança de regime, perde o seu espaço nessa mídia popular e recorre diretamente às editoras — e, portanto, ao livro como meio de publicação. Isso implica também uma redefinição do espaço ocupado na esfera pública por esses escritores como autores e intelectuais atuantes.

Em 1916, após a reforma administrativa que criou novos serviços e deu agilidade aos quadros do funcionalismo do Estado da Bahia, Manuel Querino aceitou ficar licenciado, em disponibilidade, com a garantia de recebimento do seu ordenado integral, desistindo, definitivamente, de obter uma promoção de cargo (ATHAYDE PEREIRA, 1932). Nesse período, ele abandona também as disputas políticas e investe seu tempo na viabilização de trabalhos ainda não publicados e na produção de novos estudos sobre as tradições da Bahia. O seu isolamento da vida pública — uma migração dos meios políticos para o âmbito acadêmico — coincide com o fim da publicação da sua série de crônicas no jornal e com a retomada destas em outro veículo, o livro.

Um fato interessante: após a sua morte em 1923, mais precisamente durante as décadas de 1930 e 1940, quando Manuel Querino é citado nos exemplares do jornal A Tarde, o seu nome está associado aos estudos folcloristas76. Este reconhecimento como intelectual já vinha se tecendo desde 1916, sob a rubrica de estudos de tradições, mas se afirma post- mortem, em um período no qual os estudos regionalistas ganham centralidade na literatura. O

76

Pesquisa realizada na Base de dados do Jornal A Tarde a partir do verbete "Manuel Querino" na Biblioteca Pública do Estado da Bahia, seção de periódicos.

nacionalismo, voltado à definição de "raízes culturais genuínas", consolida-se como campo de militância intelectual (PÉCAUT, 1990).

Existem outras nuanças relevantes dessa história que incitam a refletir sobre a mediação entre obra literária e sociedade, mostrando o entrecruzamento entre a trajetória da obra — a história dos meios de divulgação literária — e a construção social das transformações urbanas como uma questão pública — no sentido pragmatista, tal qual descrito por Dewey77. A obra A Bahia de Outrora contrapõe a memória da Salvador senhorial- escravista à alegoria da Salvador "moderna” 78. Ambas as imagens alegóricas, a cidade do presente e do passado, estavam em diálogo direto, quando A Bahia de Outrora foi publicada como série de crônicas no periódico. O leitor podia contrapor, no mesmo exemplar do Jornal de Notícias, as memórias do período imperial com as notícias do dia sobre a modernização em curso.

A publicação das crônicas sobre a Bahia do período imperial em periódico — durante a perturbação causada pelas obras de reformulação, em grande parte da área mais antiga de ocupação da cidade — permitira a recepção pelo leitor num certo sentido que não era mais possível quando as mesmas crônicas foram reapresentadas sob a configuração de um livro voltado ao estudo das antigas tradições.

Essas nuanças apontam para a contribuição de uma abordagem da ação dos escritores através de suas obras, atenta para o percurso da obra literária como documento, possibilitando trazer à tona variações do seu sentido conforme os diferentes modos de apresentação e recepção da mesma no decorrer do tempo — o que implica também considerar o sentido como uma construção que se efetiva em cada novo encontro entre leitores e obras (GADAMER, 1999).

5.3 Narrar aos netos; a saga familiar como testemunho: a importância dos relatos