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Manuel Querino entre os abolicionistas da Gazeta da Tarde: reuniões que favoreciam o

2. RASTROS DA VIDA INTELECTUAL NA BAHIA: A CAMPANHA

2.2 Manuel Querino entre os abolicionistas da Gazeta da Tarde: reuniões que favoreciam o

Segundo indicações dos escorços biográficos produzidos por Antonio Vianna (1928), Gonçalo de Athayde Pereira (1932) e Jorge Calmon (1995), Manuel Querino entra na vida pública através da política. Após o seu regresso à Bahia em 1870, quando foi desincorporado do contingente do quartel onde servia como escriturário no Rio de janeiro, passou a militar no Partido Liberal. Tanto Calmon (1995) quanto Gonçalo de Athayde (1932) relacionam a sua entrada no partido com a ligação que mantinha com o seu padrinho Conselheiro Dantas, dando a ela interpretações distintas. Para o primeiro tratou-se de um "dever de solidariedade ao padrinho" (CALMON, 1995, p. 17), ao passo que Gonçalo de Athayde, contemporâneo de Manuel Querino, seu companheiro e chefe na 1ª sessão da Secretaria da Agricultura, descreve o episódio da seguinte forma:

Da aproximação que procurou ter com o seu padrinho Cons. Manuel Pinto de Souza Dantas alguma coisa de útil conseguiu e se fez político liberal, de ideias livres, pelo que foi um dos que assinaram o manifesto republicano de 1870, com Virgílio Damásio, Lelis Piedade, Spinola Athayde e outros do órgão quinzenal da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, da qual eram redatores Frederico Marinho e Augusto Guimarães, ambos advogados e jornalistas nesta capital (1871-1874). (Athayde Pereira, 1932 p.5)

Qual seria o motivo que levou Athayde Pereira a definir a sagração de Manuel Querino a político liberal como uma vantagem — coisa útil — auferida da proximidade com o padrinho? A participação nas reuniões do Partido Liberal pode ter sido um momento importante para que Querino obtivesse visibilidade na vida pública. Uma oportunidade de estar entre figuras proeminentes, atuantes no jornalismo como Virgílio Damásio, Lelis Piedade, Spinola Athayde, Frederico Marinho e Augusto Guimarães24. A participação em um ato como a promulgação do manifesto republicano era certamente uma credencial na vida pública baiana. É interessante destacar que os participantes do ato, elencados por Gonçalo de Athayde, são, antes de tudo, figuras conceituadas do movimento abolicionista, e, mais além, lideranças da imprensa abolicionista, responsáveis pelo órgão quinzenal da Sociedade Libertadora Sete de Setembro.

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Augusto Guimarães, além de ser citado nesse trecho como advogado e jornalista, é apresentado como diretor e proprietário do Diário da Bahia ao ser mencionado como fiador de uma proposta da Liga Operária para concorrência pública na reconstrução do Banco da Bahia por volta de 1876-1877 (Athayde Pereira, 1932).

A entrada no Partido Liberal, conseguida através da proximidade com o Cons. Manuel Pinto de Souza Dantas, é uma abertura para as reuniões do movimento republicano e para as ainda mais destacadas e socialmente abrangentes reuniões do movimento abolicionista. Estas duas causas congregavam personalidades influentes e concediam prestígio social aos seus participantes. É o que sugere o percurso narrativo escolhido pelo amigo, o funcionário Teixeira de Barros25, ao apresentar Manuel Querino no prefácio de A Bahia de Outrora publicado em 1916.

José Teixeira de Barros conta ter conhecido Manuel Querino em uma das sessões da Sociedade Libertadora da Bahia, transcorrida na Gazeta da Tarde em 1887, durante o auge da campanha abolicionista. Cabe notar que, pelos idos de 1887, Manuel Querino já havia obtido certa notoriedade em outras áreas nas quais atuava.

Assumiu papel de liderança na classe operária em 1874, época em que contava apenas 24 anos, durante o protesto contra a diminuição do valor da jornada de trabalho — movimento que resultou na fundação da Liga Operária Baiana, uma das primeiras cooperativas de trabalho existentes no Brasil, que passou a tomar para si obras do governo e de particulares, distribuindo o serviço com seus associados, trabalhadores na construção civil.

Por este tempo, 1887, Querino já havia se destacado também no "circuito associativo educacional" (Leal, 2009, p.85). Recebeu "aprovação distinta" em Francês e aprovação plena em Português nos exames prestados no Liceu de Artes e Ofícios, do qual foi aluno fundador, ao ingressar em 1872. Em 1877 acompanhou o seu mentor Miguel Navarro y Cañizares, artista plástico espanhol, na fundação da Escola de Belas Artes. Foi contratado como pintor durante a construção da instituição e seguiu como um dos alunos fundadores. Em 1882 diplomou-se desenhista; no mesmo ano, foi nomeado membro do júri da exposição da Escola de Belas Artes, o que representa o reconhecimento da sua competência por parte dos seus tutores. Após a sua licenciatura em Desenho Geométrico passou a atuar como lente no Colégio dos Órfãos de São Joaquim e posteriormente no Liceu de Artes e Ofícios. Em termos do peso social destas aquisições, cabe ressaltar, à maneira de Leal (2009), que, devido aos rigores pedagógicos do período, o bom desempenho estudantil constituía um requisito promocional, podendo possibilitar a ascensão profissional, quando aliado a outros fatores de prestígio social.

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José Teixeira de Barros é apresentado na revista do IGHB nº 34, 1908, como ilustre funcionário, por ocasião da reedição de umas notas de sua autoria originalmente publicadas no Jornal de Notícias. Antonio Vianna (1928) refere-se ao mesmo, vinte anos depois, como probo escritor e jornalista. Nenhuma das duas indicações deixa claro qual foi a sua profissão.

Ou seja, antes que Teixeira de Barros viesse a conhecê-lo em uma reunião da Sociedade Libertadora da Bahia, Manuel Querino já vinha lutando por reconhecimento social através do circuito educacional e artístico. Outra demonstração dessa busca revela-se pelo seu empenho na elaboração do plano de "Modelos de casas escolares adaptadas ao clima do Brasil", apresentado ao Congresso pedagógico do Rio de Janeiro em 1883. Em nota, o Jornal de Notícias elogiou o primeiro trabalho de arquitetura do estudante, atribuindo-lhe o predicado de "artista de merecimento". Segundo Leal, (2009) este projeto arquitetônico pode ser considerado como a primeira produção intelectual do autor, uma vez que foi dirigido a um público acadêmico no contexto do Congresso Pedagógico do Rio de Janeiro e obteve notoriedade na Imprensa local.

Mesmo no âmbito da mobilização abolicionista, Manuel Querino já vinha atuando através de outros circuitos que não apenas os das sociedades emancipadoras. Como sócio do Liceu de Artes e Ofícios, promoveu uma série de conferências pró-abolição no ano de 1882, tendo ninguém menos que José do Patrocínio como um dos primeiros palestrantes (ALBUQUERQUE, 2009).

É evidente que o relevo obtido por Manuel Querino, como aluno e posteriormente como artista e professor, assim como a sua relevância como líder operário, são traços da sua trajetória que Teixeira de Barros enumera no prefácio de A Bahia de Outrora. De todo modo, parece singular o fato de ambos, Teixeira de Barros e Manuel Querino, só virem a travar conhecimento mútuo em uma congregação do movimento abolicionista — mais especificamente, em sessão da Sociedade Libertadora da Bahia, passada numa noite de 1887 na redação da Gazeta da Tarde — ainda que Querino já estivesse envolvido em questões públicas como o movimento operário e o movimento republicano, e já tivesse obtido destaque como discente do Liceu de Artes e Ofícios e da Escola de Belas Artes.

Antes de se conhecerem pessoalmente, Teixeira de Barros narra ter notado Manuel Querino a partir de uma série de artigos de sua autoria a respeito do banimento do trabalho servil. Esta série de artigos foi publicada na mesma Gazeta da Tarde.

Mais uma vez, cabe pontuar que o interesse em discorrer sobre o caminho escolhido por Teixeira de Barros, no texto que prefacia o livro de Manuel Querino — remetendo-se, antes de tudo, à primeira vez em que estiveram juntos pessoalmente em uma das sessões da Sociedade Libertadora da Bahia — está ligado ao modo como este trabalho busca definir o intelectual: não o entendemos como uma colocação social que se obtém a partir da aquisição de certas habilidades formalmente contraídas e atestadas, como títulos acadêmicos, mas pela

inserção em uma teia de relacionamentos e pelo compartilhamento de determinadas práticas e interesses, nos quais está fundado o senso de comunidade deste grupo.

Este modo de definição do intelectual é bastante pertinente para compreender este período da história brasileira, no qual — como discutido a partir da revisão de Pécaut, Miceli e Machado Neto — não existiam instituições como as Universidades, que pudessem garantir um campo intelectual autônomo. O autorreconhecimento dos membros da intelectualidade tomava forma principalmente através da defesa de determinados temas. A luta pela abolição constituiu um guarda-chuva sob o qual se aglutinou a intelectualidade em fins do séc. XIX. Nesse sentido, a participação na campanha abolicionista parece um critério que permite ao prefaciador, Teixeira de Barros, situar Manuel Querino entre uma geração de escritores e homens públicos, despertando no leitor o interesse por sua obra.

Teixeira de Barros narra que Querino estava lá em uma "sessão memorável", cuja distinção da matéria a ser discutida depreendia-se pela "numerosa e seleta concorrência dos que nela tomaram parte". Barros tem o cuidado de enumerar os nomes e profissões de alguns dos integrantes desse grupo seleto, do qual tomou parte também Manuel Querino: "Drs. Anselmo da Fonseca e Frederico Lisboa, acadêmicos Brito Filho e Cosme Moreira, professor Austricliano Coelho, jornalistas Raimundo Bizarria e Lelis Piedade, negociante Luís Barreto, proprietário Antônio Pereira de Araujo e outros cavalheiros de distinção, além de muitos outros abolicionistas" (Teixeira de Barros, 1946, p. 9).

As profissões elencadas não necessariamente aludem ao poderio de ordem econômica, mas à distinção de tal grupo como homens dedicados a pensar e construir a sociedade brasileira. Está em evidência certo retrato da intelectualidade baiana. O Primeiro da lista, o Dr. Anselmo da Fonseca, é o já citado autor do livro de propaganda A Escravidão, o Clero e o Abolicionismo.

Machado Neto, ao tratar da vida intelectual entre 1870 e 1930, também dá destaque às lutas pela abolição e pela República, aliadas ao jornalismo literário, como condições que permitiram a criação da profissão intelectual no país. Neste prefácio, escrito em plena República, no ano de 1916, ainda ecoa a importância de tal temática, e das agremiações surgidas em torno dela, como elementos que podem situar um escritor no mundo das letras.

Podemos considerar que se trata de um artifício não apenas intencional do prefaciador — no caso, um amigo. Teixeira de Barros destaca o momento em que conheceu Manuel Querino em uma reunião de relevo do movimento abolicionista não apenas de modo

reflexivo, mas pelo sentido tácito do que aquele momento representou para os Homens de Letras da Bahia: a criação de um campo de atuação social. Um círculo de convivência ao qual, agora, Teixeira de Barros aproxima o autor do livro apresentado. Nessa direção, deve-se atentar para o fato de que A Bahia de Outrora talvez seja a primeira obra publicada em livro na qual Manuel Querino adentra um domínio de ação literária proeminente, explorando a temática cultural de modo mais amplo. Nesta obra, este escritor, operário e artista lança mão da narrativa de tradições como perspectiva para elaborar a sua interpretação dos problemas pelos quais passa a sociedade brasileira, na transição do Império à República e do trabalho servil ao trabalho assalariado.

Apresentando o amigo, Teixeira de Barros acessa a memória de uma vivência sobre a qual os intelectuais, por volta de 1915, começam a obter distanciamento e a refletir, na medida em que pleiteiam a manutenção do espaço que ocuparam como elite dirigente, inserindo-se agora no Brasil republicano. Nesta ação, não somente refletida, mas sentida, sobressai a centralidade das reuniões abolicionistas para a aglutinação e mesmo viabilização da existência de uma intelectualidade no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX — uma vez que esta intelectualidade, como tal, pressupõe a união de representantes de setores diversos, cidadãos de trajetórias muito distintas, cujo reconhecimento mútuo se tece a partir do interesse comum em uma reflexão ampla sobre a sociedade26.

Sobre a possível importância de A Bahia de Outrora como obra que demonstra a conquista de espaço por seu autor no círculo intelectual, cabe ponderar que, dos livros publicados por Manuel Querino antes dela, os mais significativos versavam sobre a história das artes na Bahia — Artistas Baianos (1909) e As artes na Bahia (1909). Em 1914 o autor publica Bailes Pastoris, onde a temática das artes começa a ceder lugar ao estudo das tradições; contudo, a possibilidade de expor a sua concepção sobre os problemas mais candentes do momento — especificamente a definição de uma identidade nacional, a descrição das origens da cultura brasileira e, em correspondência, as instituições do Estado brasileiro cabíveis às origens em questão — só surge com a publicação em livro de A Bahia

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Ao considerarmos que a formação da intelectualidade pressupõe necessariamente a emergência de um elo grupal que não se estabelece mediante o pertencimento a uma classe social específica, e sim pela posse do conhecimento autorizado sobre as coisas do mundo, inspiramo-nos no conceito de intelectualidade de Mannheim (1982), segundo o qual: “Podem-se resumir da seguinte maneira as características essenciais dessa camada: é um agregado que está entre as classes, mas não acima delas. Individualmente os membros do grupo dos intelectuais podem ter, como é o caso frequentemente, uma orientação particular de classe e, em conflitos reais, podem aliar- se a um outro partido político. Além disso, suas escolhas podem ser coerentes e características de uma clara posição de classe. Mas além e acima dessas afiliações, ele é motivado pelo fato de que seu treinamento o equipou para enfrentar os problemas da hora a partir de diversas perspectivas e não apenas de uma, como acontece com a maioria dos participantes de controvérsias da sua época.”(MANNHEIM, 1982 p. 105)

de Outrora e de A Raça Africana e os seus Costumes na Bahia, obra publicada em seguida no mesmo ano de 1916.

Estas duas publicações adentram a temática do dia; apontam para as questões que definiam a própria competência e o lugar social do intelectual na sociedade brasileira, segundo Pécaut (1990). No entendimento deste autor, a partir de 1915 ocorre um processo de conversão dos intelectuais em agentes políticos, tendo como inspiração a retomada de uma posição assumida no séc. XIX.

Desse modo, em obra publicada em 1916 — inserida no contexto de retomada da ação política dos intelectuais, depois dos anos de instabilidade e de consolidação do novo regime — Teixeira de Barros situa Manuel Querino no âmbito do movimento abolicionista, construindo uma ponte entre a atuação intelectual das últimas décadas do século XIX e o novo âmbito de ação deste grupo no século XX, cujo foco se volta para dois problemas: a identidade nacional e as instituições. O interesse e a desenvoltura na abordagem da temática nacionalista acabaram por constituir um critério para definir o pertencimento legítimo ao grupo dos intelectuais27.

Podemos considerar que Manuel Querino ganha espaço como intelectual ao repercutir, através da temática das tradições da Bahia imperial, questões sobre as quais se debruçavam outros intelectuais brasileiros. Como veremos em capítulos posteriores da tese, em A Bahia de Outrora estão presente temas como: o repúdio às instituições do Estado Republicano — cuja proposta de liberalismo político se fundamentava na ilusão de atingir a modernidade mediante a imitação de modelos estrangeiros — e a crítica ao ideal de civilização à europeia ou à norte- americana, pelo obstáculo que imputava à afirmação da identidade nacional.

2.3 A "barbárie da escravidão": a rejeição do cativeiro pela difusão de valores