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1. INTELECTUAIS E A MODERNIDADE:

1.2 Intelectuais e Modernização da esfera Pública

As mudanças tecnológicas e culturais que atingiram os centros urbanos no alvorecer do século XX se impuseram, fundamentalmente, por novas relações de proximidade e distância entre "eu" e "outro" (SIMMEL apud ALLEN, 2000) — seja no plano das comunicações, graças à extensão das redes de inter-relação via telégrafo e novos meios de transporte, seja pelo incremento das trocas internacionais, favorecidas pelo fim dos regimes coloniais na América. Na vivência cotidiana das capitais brasileiras, a percepção de uma ruptura com o passado vem a reboque da experiência de novas interações no espaço urbano, provocadas pela regulamentação estatal que implicou o cultivo de novos hábitos, o banimento de antigas práticas e a prescrição de novas formas de sociabilidade.

Os escritores brasileiros que viveram esse período de transição entre o século XIX e o século XX não só foram sensíveis a esse processo de mudança, como são, eles próprios, um produto dessas transformações. A sua atuação, sob a forma de uma "intelectualidade", é tributária das alterações na esfera pública, começando pela instauração da imprensa régia, com a vinda de D. João VI ao Brasil, em 1808, passando pela relação de dependência para com o estado monárquico pós-Independência, em 1822, e pela ligação íntima entre trabalho

intelectual e poder político no Segundo Reinado, até chegar ao desenvolvimento das condições sociais favoráveis à profissionalização do trabalho intelectual, a saber: a) a diversificação de instituições político-partidárias, como as assembleias dos partidos políticos, dos movimentos republicanos, abolicionistas e operários, e b) o florescimento da grande imprensa como instância de produção cultural.

O desenvolvimento da profissão intelectual é marcado pela relação estreita entre jornalismo e ação literária — uma relação que só é rompida a partir da Primeira Guerra, momento em que o jornal, primeira mass media nacional, adota os padrões da imprensa internacional, importando gêneros como a reportagem, a entrevista, o inquérito e a crônica jornalística. A relação que os intelectuais baianos aqui estudados — todos eles pertencentes a gerações que participaram das lutas pela abolição e pela República — estabelecem com esse processo de modernização é contraditória.

Por um lado, romper a dependência para com o Estado monárquico — mantida pela geração romântica de José de Alencar, cuja produção literária esteve fortemente imbuída da construção de uma nacionalidade que consubstanciava o poder de D. Pedro II (SCHWARCZ, 1999) — possibilitava abranger o raio de atuação dos escritores. Por outro, a dominação da grande imprensa veio refrear as ambições de criatividade intelectual. As exigências impostas pelos novos gêneros da imprensa moderna, assim como a emergência da profissão do jornalista, representaram as grandes ameaças da lógica de mercado que adentrava a sociedade brasileira. Apesar da precariedade de uma relação de dependência para com o Estado, a atuação intelectual, dentro das normas estamentais da sociedade monárquica, concedia aos escritores a posição privilegiada de um grupo de status, o saber intelectual era até então um prestígio social, estando acima da lógica mundana, ou seja, acima da prática de concorrência profissional no mercado de trabalho.

Em outras palavras, por um lado era interessante romper a dependência entre intelectuais e Estado monárquico, mantida a partir de práticas como o mecenato, a patronagem, a outorga de honrarias e de cargos públicos, uma relação que negativamente gerava um enclausuramento da intelectualidade entre os setores da elite e a produção de uma arte ornamental (PÉCAUT, 1990; SCHWARCZ, 1999). Por outro lado, era interessante manter o prestígio que a intelectualidade possuía como uma espécie de elite de Estado.

Como testemunho dessa contradição, Xavier Marques expôs o seu descontentamento para com a conjuntura do mundo das letras na República em um artigo publicado na revista do IGHB de nº 54, em 1928. Em sua queixa, as más condições da profissão de escritor no

jornal e a dificuldade de publicar trabalhos estritamente literários somam-se ao desconforto frente à emergência de uma cultura imediatista. Os serões, palestras e artigos de fundo dos jornais, com seu teor opinativo, que atraíam o público entre 1870 e 1910, tornaram-se práticas obsoletas no novo cenário cultural dos anos 1920.

Xavier Marques destaca a pouca repercussão dos eventos artísticos. Fora o público estritamente especializado, a maioria não era mais sensível às manifestações artísticas como outrora. O autor se recente da falta de uma classe dos "amantes das letras" que "quando menos, prestava o seu concurso à vida das associações literárias, e a sua presença às festas puramente intelectuais" (MARQUES, 1928, p. 185). Nos idos de 1880, "estava-se de acordo com a opinião do esteta em por ao lado da Mulher bela o Homem de gênio" (MARQUES, 1928 p. 185).

O modo de vida que se instaura com a República, caracterizado pela cultura monetária, pela liberdade da prática de esportes, pela industrialização, pelo conforto material — proporcionado por novas tecnologias de comunicação e de transporte — e pela entrada de produtos industrializados, oblitera a atenção e o cultivo de uma cultura letrada. Esta conheceu o seu momento áureo nos últimos anos do século XIX, quando se acirrou o movimento pró- república e pró-abolição, e nos primeiros anos de acomodação do novo regime. Palavras de Marques:

Com a República, o sport, a grande indústria, a política econômica, o progresso material, sobretudo a política partidária, usurparam o terreno onde a mocidade costumava entregar-se aos jogos florais; esse espaço foi invadido pela Bolsa, pelo Estado, pelo Congresso e outras instituições favorecidas pelo espírito da época. O público tornou-se carrancudo ante a incorrigível boêmia dos letrados e poetas; a imprensa, refletindo a mentalidade nova, aboliu as sessões destinadas aos versos e à crítica dos livros. Até o presente, embora certa modificação nesse estado de espírito, não há pretender que o fato literário possa competir em pormenorização e publicidade com o mais corriqueiro fato policial.

A cultura literária é hoje mais intensa, porém confinada em círculos estreitos. Esses pequenos grupos vêm resistindo heroicamente ao ideal de sybaritismo a que o maior número se consagra, ideal favoneado mais que nunca no país pela política e indústria como fatores do milhão. São as seduções que não conheciam a mocidade do Império. O "Jardim da infância", como se sabe, foi invenção do atual regime. (MARQUES, 1928 p.185-186)

No trecho transcrito acima, é notável a detecção de um "espírito da época", de uma imprensa que repercute uma mentalidade nova ao abolir o espaço anteriormente consagrado

ao jornalismo literário12. O autor deixa clara a concorrência entre a escrita de cunho literário, seja ela crônica, artigo de fundo ou folhetim, com a novidade da notícia e da reportagem, ao enfatizar a dicotomia entre fato literário e acontecimento policial corriqueiro, salientando que, na nova conjuntura, o segundo obtém maior publicidade. A cultura literária foge do grande mass media que é o jornal, passando a ser cultivada apenas em círculos restritos. É interessante a comparação com o jardim de infância, utilizado para representar a cultura letrada do Império, onde eram desconhecidos os fatores relativos à profissionalização do jornalista, que se volta para atender as exigências da imprensa moderna e as atividades estritamente partidárias. O estilo de escrita empregado no jornal se afasta da arte. O "jardim de infância" é boa metáfora para se referir à trajetória de escritores que, quando jovens, sonharam com uma função missionária, e em fase adulta renderam-se aos cargos políticos e burocráticos — caso de Marques, que desempenhou dois mandatos como deputado.

O depoimento do escritor Xavier Marques também sugere que o percurso da intelectualidade baiana, nesse período de transição, tem como marco, em um primeiro momento, a conquista de um espaço social no qual se tece o reconhecimento mútuo de um grupo de homens letrados. Essa identificação como grupo não se define pelo pertencimento a uma dada classe social, ou seja, pela sua posição no mercado de trabalho e no mercado de bens de consumo, mas pela posse de um saber socialmente valorizado sobre a nação. Possivelmente as sociedades formadas em torno da campanha abolicionista e do movimento republicano forma fundamentais para o autorreconhecimento da intelectualidade, proporcionando maior acesso às páginas dos jornais.

A imprensa adquiriu novas feições com o aparecimento de periódicos diretamente ligados a essas causas (a abolição e a República). Do mesmo modo, as publicações já existentes passaram a se apresentar de forma distinta, ao dialogarem com as máximas dessas pugnas, que se tornam incontornáveis fatos do dia. Desse modo, a imprensa se afasta da dependência para com o Estado imperial: diversifica-se diante do conservadorismo estrito imposto pelo bipartidarismo monárquico. Ao mesmo tempo, a chamada geração de 1870 conquista um espaço nunca antes existente: o do escritor profissional, uma colocação alcançada graças ao surgimento do jornalismo literário. Dados biográficos dos autores aqui estudados indicam que o lugar da literatura no jornal e a participação dos escritores como

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Com esta expressão Machado Neto (1973) se refere ao papel desempenhado pelos literatos como escritores profissionais na imprensa entre 1870 e 1920, aproximadamente. Para este autor o jornalismo literário criou as condições para a existência da vida intelectual no meio urbano das capitais brasileiras.

editores e correspondentes são resultados de um elo que se articula a partir da luta abolicionista e da campanha republicana.

Desse modo, cabe investigar o percurso desta geração que conquista as páginas dos jornais e a participação ampla na esfera pública através da militância a favor da abolição e da República, perdendo posteriormente este espaço privilegiado, ao adequar-se às exigências de um mercado especializado. De que modo as pesquisas sobre a intelectualidade brasileira tratam esta passagem, e como devemos definir o próprio conceito de “intelectual” a partir dos modos de atuação deste grupo? Estas são questões a serem investigadas a seguir a partir de considerações sobre as pesquisas de Machado Neto (1973), Miceli (2001) e Pécaut (1990).