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Os vínculos de X Marques, Silva Lima, M Querino e Anna Bittencourt com o

3. O PERIODISMO E A CONSOLIDAÇÃO DA "CLASSE" INTELECTUAL:

3.1 Os vínculos de X Marques, Silva Lima, M Querino e Anna Bittencourt com o

No início do século XX, os jornais baianos que detinham a preferência geral — logo, os de maior circulação — eram o Diário da Bahia, o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias.

Vários jornais surgiram no período entre 1890 e 1910, muitos vinculados a causas políticas; os que não eram partidários se definiam como jornais "noticiosos", forma pela qual se declaravam neutros. Em cada conjuntura política formava-se sempre a imprensa situacionista e a imprensa de oposição. Carvalho Filho (2008) chama atenção para a centralidade que a imprensa escrita possuía como veículo de discussões políticas num momento em que ainda não proliferavam os meios de comunicação e as reuniões a céu aberto eram consideradas vulgares. Ao mesmo tempo, concorriam para a supremacia dos jornais como meios de comunicação as condições econômicas e sociais, que favoreciam a abertura de pequenos prelos em esquinas de ruas ou em portas de casas.

Por vezes esses pequenos jornais podiam carregar o nome do seu proprietário, dado o caráter comezinho dos prelos de esquina. Um exemplo é o Jornal Pequeno, que foi adquirido em 1890 pelo eloquente e temido deputado César Zama, ficando conhecido como "Jornal do Zama" (CARVALHO FILHO, 2008). Contando com esta conjuntura favorável para a abertura de jornais, o próprio Manuel Querino fundou os periódicos O Trabalho e A Província, respectivamente em 1882 e 1887, quando ainda era apenas um artista e começava a desempenhar a atividade de professor de desenho. À época, não contava nem mesmo com o ordenado fixo, embora também modesto, do funcionalismo público, no qual ingressou após a abolição (ATHAYDE PEREIRA, 1932). Como proprietário e redator desses jornais, Manuel Querino ganhou notoriedade como abolicionista e líder operário.

Alguns dos vínculos que os intelectuais do período costumavam manter com a imprensa diária eram os de colaborador ou correspondente. Este tipo de participação podia constituir uma etapa importante em suas trajetórias intelectuais. Nesta atividade, cidadãos socialmente influentes podiam reforçar a sua imagem como autoridades em suas áreas de atuação profissional. É o que exemplificam algumas contribuições presentes nos exemplares do Jornal de Notícias dos anos de 1912 e 1913, consultados nesta pesquisa, nos quais o advogado A. J. Araújo escrevia artigos dando instruções sobre processos jurídicos, em colunas como A jurisprudência e Uma questão de atualidade: proprietários e inquilinos; Frederico Villar escrevia sobre política e economia no artigo A carestia da Vida: o protecionismo é sinônimo de patriotismo — o livre cambismo é insânia; o correspondente de Paris D. Jayme assinava a coluna Aqui, ali, acolá; o professor Deoclécio Silva assinava a coluna Pedagogia e apresentava-se por Aluno-mestre, Candido Augusto Ribeiro escreveu uma série de artigos sobre a plantação de fumo em São Felix e se apresentou como Baiano Lavrador.

Como já foi mencionado anteriormente, Silva Lima costumava dar informações sobre as medidas adotadas pelo conselho sanitário e outras questões de higiene na coluna Saúde Pública, também no Jornal de Notícias. Além de contribuir com assuntos da alçada médica, Silva Lima participou da imprensa no tratamento de temas gerais, segundo informações do seu contemporâneo Braz do Amaral:

Jornalista, foi ele quem escreveu o primeiro artigo para o Diário da Bahia, há 55 anos, e colaborou em quase todos os órgãos da imprensa diária, em assuntos que dependiam de seus conhecimentos profissionais, especialmente os que entendiam com a higiene pública; mesmo nos seus menores detalhes, como por exemplo, o do transporte das carnes para alimento da população. (AMARAL, 1909)

Por sua vez, os dois primeiros livros publicados por Manuel Querino — Os Artistas Baianos: indicações biográficas e As artes na Bahia: escorço de uma contribuição histórica —, ambos de 1909, foram primeiramente divulgados em jornais baianos. O segundo destes é uma reunião de diversos artigos publicados no Diário de Notícias entre os anos de 1908 e 1909 sob o título Contribuição para a História das Artes na Bahia (NUNES, 2007). Desse modo, antes que o livro de sua autoria fosse publicado, Manuel Querino já havia atingido o público com os seus artigos divulgados na imprensa diária, fazendo-se reconhecido como um intelectual da classe artística, à qual pertencia por formação.

Do mesmo modo, entre 03 de março de 1913 e 02 de dezembro 1915, Querino contribuiu de forma esporádica com artigos que saíram publicados em uma coluna do Jornal de Notícias sob o título A Bahia de Outrora: vultos e fatos populares. Assim como no caso das colunas citadas acima, abaixo do título constava a seguinte indicação entre parênteses: "Para o Jornal de Notícias da Bahia”. Abaixo do texto constava a data da sua redação, que não coincidia com a data de publicação do jornal, e o nome do autor, Manuel Querino.

A série deu origem ao livro homônimo publicado em 1916, do qual trataremos mais adiante. Como articulista da série A Bahia de Outrora, Manuel Querino extrapolava o campo das artes e adentrava nas questões candentes para a intelectualidade do período, que se dedicava ao estudo das tradições e à elaboração de memórias dos tempos imperiais — reflexões estas que se ligam à tarefa de constituição de um povo-nação, as quais deveriam pautar a formação das instituições do novo Estado Republicano (PÉCAUT, 1990).

Com essa série, Manuel Querino atingia o público sob uma nova insígnia. Não apenas como um artista-escritor, mas como um intelectual no sentido mais amplo. É o que sugere o

registro feito por Anna Bittencourt em seus cadernos de memórias, ao confrontar a sua descrição de um jantar de família aristocrática, ambientado em um Engenho que frequentou na infância, com a descrição de Querino sobre um jantar passado em um lar de classe média na Capital baiana, em tempos do Império. A partir deste comentário, Anna Bittencourt testa a legitimidade e a procedência do conteúdo rememorado, já que, uma vez transmitida na imprensa diária, tal narrativa adquire um sentido histórico. Ao mesmo tempo, seu autor passa a ser reconhecido como um estudioso das tradições.

Anna Bittencourt também fez uma importante incursão na imprensa baiana. Ela e o marido estabeleceram-se em Salvador no ano de 1885, permanecendo na capital enquanto este completava seus estudos na Faculdade de Medicina. Durante esse período, Anna Bittencourt colaborou com poesias e crônicas para diferentes jornais da capital como a Gazeta de Notícias, A Verdade e o Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro. Depois da morte do marido, Sócrates Araújo Bittencourt, em 1907, ela se mudou para Salvador definitivamente; a partir de então, começou a colaborar regularmente com órgãos da imprensa católica como A Paladina do lar, O Mensageiro da Fé e A Voz da Liga das Senhoras Católicas; passa, por fim, a colaborar com os jornais de grande tiragem como A Bahia, Gazeta do Povo e Diário da Bahia.

Também Xavier Marques, antes de iniciar a sua carreira como redator de vários jornais, adentrou a imprensa, e também a literatura, através do espaço que lhe foi concedido no Jornal de Notícias para a publicação de seus versos. A partir deles, Marques foi feito colaborador efetivo desse periódico, pela iniciativa de um de seus redatores, João Augusto Neiva. Os versos, uma vez publicados no jornal, foram depois reunidos em livro, dando origem à primeira publicação do gênero desse autor: a coletânea de poesias intitulada Temas e Variações.

Os vínculos estabelecidos entre os escritores e o periodismo diário sugerem que os jornais foram portas de entrada à imprensa escrita da época. Antes de estabelecerem os elos necessários para publicar suas obras em formato de livro, os escritores conseguiam pautas nos jornais que serviam, desse modo, tanto como uma oficina, na qual os autores poderiam testar a recepção dos seus escritos pelo público, como abertura para as editoras. As obras divulgadas em jornais e posteriormente publicadas em livros poderiam aparecer na imprensa inicialmente na forma de crônicas — divulgadas esporadicamente — na forma de série — publicada com um espaçamento de tempo regular — ou na forma de folhetins. Estes últimos poderiam estar

dispostos no final da folha, tomando a frente e o verso, prontos para serem recortados e colecionados, ou poderiam ser apresentados em capítulos com apenas uma face.

Para adentrar o mundo das letras, fortemente dominado por associações e círculos destinados apenas à audiência masculina, Anna Bittencourt criou um projeto literário que a permitiu utilizar os cânones do período, o romantismo e o naturalismo, apenas no que conviesse ao desenvolvimento do "romance de formação para mulheres" (OLIVEIRA, 2007). Ao definir esse estilo próprio, a autora buscava cativar um público específico, as moças da aristocracia e da burguesia em ascensão. Uma das circunstâncias que tornaram possíveis esta estratégia de publicação foi a utilização do espaço do jornal disponível aos folhetins.

Tanto assim, que Anna Bittencourt publicou apenas dois dos seus romances em livro, A Filha de Jephte (1882) e Letícia (1908) — o primeiro, impresso na Tipografia à Rua da Alfândega nº 31; o segundo, pela Litografia Tipografia e Encadernação Reis & C., mesma empresa por onde eram publicados os exemplares da revista do IGHB até 1913. Os outros romances da autora foram publicados em folhetins nos rodapés dos jornais, de onde eram recortados pelos leitores e colados em livros de folhas brancas — ao menos, assim o fazia a própria autora (Cabral apud Morais, 2008). Anjo do Perdão (1885) foi publicado na Gazeta de Notícias; Abigail (1921) saiu em capítulos no Diário da Bahia.

Antes de começar a produzir obras de maior fôlego, como os romances acima citados, a estreia de Anna Bittencourt nas letras foi através dos jornais, com poemas e contos publicados na Gazeta de Notícias de Salvador, no periódico A Verdade de Alagoinhas-Bahia e no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro38. Os jornais também foram espaços para a publicação de contos da autora, como Dulce & Alina pelo Diário da Bahia em1901, Violeta & Angélica pelo Jornal de Notícias1906 e Marieta pelo mesmo jornal em 1908.

Na trajetória de Xavier Marques, a relação entre carreira literária e participação na imprensa diária é definitiva. A colaboração com o Jornal de Notícias, através do envio de versos, abrir-lhe-ia as portas tanto ao mercado literário, quanto à entrada definitiva no jornalismo. O autor publica o seu primeiro livro, Temas e Variações, em 1884, pela Tipografia João G. Tourinho em Salvador. Nele reuniu os poemas escritos desde 1880. Graças ao sucesso adquirido com seus versos, Marques começa a colaborar com o Jornal de Notícias (SALLES, 1969).

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Depois disso, pela iniciativa do redator João Augusto Neiva, Xavier Marques se torna um colaborador efetivo nesse mesmo jornal. Ao sair do Jornal de Notícias, em 1885, João Augusto Neiva convida-o a ocupar a sua vaga como redator. Nota-se uma progressão na carreira de Marques, de colaborador esporádico a colaborador efetivo e deste posto ao cargo de redator. Ao mesmo tempo, no campo literário, a atividade como jornalista iria favorecer a publicação dos seus dois próximos livros, os quais representam a sua primeira incursão pela ficção, o seu début como romancista. A coletânea Simples Histórias (1886) e o romance Uma Família Baiana (1888) são publicados pela tipografia do Jornal de Notícias.

Provavelmente esse início como ficcionista não teria sido possível — ao menos não nesse período da sua vida, por volta dos 25 anos — se Marques não estivesse em contato com a redação do Jornal de Notícias. Ainda que estes dois livros representem a fase de aprendizagem literária de Marques, que nunca os reeditou e os omitiu em bibliografias divulgadas posteriormente, eles favoreceram a sua primeira incursão como autor. Cabe salientar que o romance de ficção era um estilo literário que à época serviu de veículo para a divulgação de valores acerca da sociedade brasileira. Existia então uma forte ligação entre a sociologia e a literatura. Os romances escritos a partir da segunda metade do século XIX eram espaços privilegiados para análise e estudo das relações sociais. Nesse sentido, com a publicação dessas duas obras ficcionais, Xavier Marques provavelmente ambicionava mais do que o reconhecimento hoje adquirido por um escritor de ficção. Pleiteava a colocação como porta-voz autorizado de uma proposta nacionalista.

Mais ou menos no mesmo período foram publicadas as obras O Mulato (1881), Casa de Pensão (1884) e O Cortiço (1890), de Aluízio Azevedo, que são ainda hoje o exemplo paramétrico da recepção do estilo naturalista no Brasil. Estas três obras sintetizam aspectos importantes da interpretação sobre as raízes raciais do povo brasileiro e a constituição das relações sociais e hierárquicas durante o império e a vigência do sistema senhorial escravista. Segundo Salles (1977), nos seus dois trabalhos de estreia, a coletânea Simples Histórias (1886) e o romance Uma Família Baiana (1888), Xavier Marques explorou alguns pressupostos do naturalismo que são ilustrados pelas obras de Aluísio de Azevedo, como o documentarismo sensualista e o desenvolvimento de teorias deterministas aplicadas à análise das relações familiares e sociais.

A descrição de submundos e o tratamento de temas eróticos são marcas dessa incursão pelo estilo naturalista, que futuramente Xavier Marques abandonaria em favor de uma prosa mais amena e de uma crítica moderada que tangenciava muito levemente temas indecorosos

como a miséria socioeconômica, comportamentos sexuais, cultura não-europeizada e aspectos negativos da nacionalidade. Ou seja, depois dessa primeira incursão literária, quando Marques volta a publicar, já existia uma nova tendência no mundo das letras nacionais, encabeçada por cânones como Machado de Assis, o qual defendia a sutileza no tocante às temáticas sociais e sensualistas.

Após a entrada no Jornal de Notícias, passaram-se oito anos até que Xavier Marques voltasse a publicar de novo. Durante esse período, firmou o seu nome na imprensa baiana, à qual se dedicou inteiramente. A atividade como jornalista, iniciada em 1885, fez parte do cotidiano do escritor por mais de trinta anos (SALLES, 1969). Traçar a progressão de Xavier Marques pela imprensa baiana é um caminho interessante para percorrer o cenário do jornalismo local e analisar a importância deste como meio de subsistência, ainda que secundário, dos escritores brasileiros do período — única forma possível de conciliar necessidades pecuniárias com o exercício da atividade de escritor, intelectual.

Embora existisse uma polêmica entre os homens de letras no Brasil acerca dos malefícios ou benefícios do trabalho no jornal para o desenvolvimento das potencialidades artísticas de nossos escritores, era consenso o reconhecimento da atividade literária praticada nos jornais para a afirmação do trabalho intelectual e para a consolidação da profissão de escritor. Como salientou Machado Neto (1973), esta profissão se fez socialmente aceita principalmente pelo prestígio obtido pelo escritor através do jornalismo, apesar do imenso trabalho e dos poucos ganhos que ele representava.