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1. INTELECTUAIS E A MODERNIDADE:

1.3 O intelectual objeto/sujeito:

Segundo a análise sociológica de Daniel Pécaut (1990), a intelectualidade brasileira toma corpo sob a égide da construção da nação, após o movimento de independência. Os critérios de classe e de estratificação social são insuficientes para definir a sua posição social, pois o domínio de um saber socialmente valorizado era o principal recurso mobilizado na defesa do seu espaço junto ao poder. Os intelectuais brasileiros atuantes durante a passagem do século XX reivindicavam-se conhecedores de uma "ciência do social" em um período em que a administração racional do homem e da natureza, através da ciência, era uma crença amplamente compartilhada. Dessa forma, para compreender as estratégias de legitimação da intelectualidade brasileira, Pécaut (1990) propõe levar em conta o papel que outros setores da sociedade atribuíam ao conhecimento científico do real.

Dois critérios de legitimação definiam a sua posição social: a) a posse de um conhecimento específico sobre a sociedade, amplamente valorizado por outros grupos sociais; b) o compartilhamento de determinados temas, notadamente o nacionalismo, em várias vertentes — regionalismos eram também aceitos.

Os intelectuais definiam o seu papel social pela função missionária de formação da sociedade brasileira, de acordo com o pressuposto "realista", pautado na correspondência entre a teoria e a prática. A nação era para eles uma entidade dada — existente, no entanto, de forma subjacente, cabendo-lhes o papel de fazê-la manifestar-se plenamente. A intelectualidade, consolidada como "elite dirigente", devia facilitar o curso natural da evolução imanente à história, retirar os empecilhos que retardavam o seu desdobramento. Determinados "mitos fundadores" da nação eram peças fundamentais da consolidação deste

realismo. Acreditava-se que a identidade nacional subjazia de modo latente no modo de ser, nas solidariedades profundas e no folclore.

Cabe ressaltar a inexistência, até esse período, de uma tradição universitária. A elite recorria às escolas de nível superior, como as de engenharia, e às faculdades especializadas, como as de direito e medicina. Apenas em 1920 foi fundada a Universidade do Rio de Janeiro e em 1934 foi criada a Universidade de São Paulo. A Universidade Federal seria fundada apenas em 1937, substituindo a Universidade do Distrito Federal, que a precedeu no Rio de Janeiro. Este fato reforça o argumento defendido por Pécaut, segundo o qual a legitimidade dos intelectuais junto aos outros grupos da sociedade não se dava mediante a atribuição de títulos acadêmicos, ou habilitações formais, exercendo-se pela posse de um saber sociológico reconhecido e valorizado por amplos setores.

Tratava-se de um grupo que não possuía vínculos institucionais, como as universidades, e, por essa razão, não pode ser compreendido a partir da dinâmica de um campo autônomo com hierarquia e sistemas de distinção próprios, como sugere a sociologia de Bourdieu (2010, 1989). O reconhecimento era construído mediante a função definida junto a outros setores da sociedade.

Pécaut elenca três perfis sob os quais se apresentava o intelectual brasileiro: o de advogado; o de engenheiro (influenciado pelo positivismo, possuía uma visão técnica do poder) e o de Homem de Cultura. O reconhecimento do intelectual avançou sob o signo da ciência. Nesse ponto era marcante a influência do positivismo, embora esta não implicasse fidelidade estrita à doutrina de Comte: sua grande repercussão na sociedade brasileira não se deveu aos seus discípulos ortodoxos, mas aos simpatizantes que a propagaram na Escola Militar e nas escolas de engenharia. O positivismo era a base de uma visão tecnocrática que unia a ciência à política: apenas conhecendo as leis da sociedade seria possível determinar a forma correta de lidar com ela. A perspectiva de uma "organização social" se situa no interior da difusão dessa doutrina.

O positivismo se mesclou a outras teorias em voga na Europa, como o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer, as concepções de Vacher, Lapouge e Gumplowicz. Esse cientificismo se liga a um nacionalismo. Uma visão estereotipada dos "atavismos" da sociedade brasileira com seus componentes étnicos diversos alicerçava a ideia de um vínculo social, não político, que unia todos os brasileiros, mesmo dentro de desigualdades as mais acentuadas. No interior dessa corrente, existia uma oscilação das explicações genético-raciais para análises no plano da cultura. Ou seja, uma parte importante da legitimação do papel dos

intelectuais como classe dirigente provinha da capacidade de captar a nação inscrita na realidade, subjacente aos acontecimentos, que mediante a sua leitura poderia ser trazida à tona e produzir uma expressão cultural e política.

Os intelectuais brasileiros definiam a sua posição social segundo a capacidade de traduzir de forma explícita o que estava implícito. Existia, nesse sentido, o interesse em recolher elementos de uma cultura popular para dela construir as bases de uma cultura brasileira. Por essa razão, a Literatura, a Música e as Artes Plásticas ecoavam a apropriação erudita dos estilos e costumes da cultura popular, que era reconhecida como a base da unidade nacional.

Chegando neste ponto, cabe notar que a análise de Pécaut contribui para a compreensão da formação da intelectualidade brasileira sob a perspectiva de um elo que se constitui pela reivindicação comum de um lugar no âmbito político: a posição de elite dirigente defendida pela posse de um saber sobre a nacionalidade. Para compreender certas limitações dessa perspectiva, é interessante retomar o diálogo que Pécaut empreende com Miceli (2001), uma vez que este permite salientar parâmetros dos quais Pécaut se distancia.

Miceli (2001) analisou a trajetória de escritores atuantes na República Velha, especialmente no período entre 1908 e 1922, tendo como enfoque a dinâmica do campo intelectual em expansão. Utilizou o referencial teórico metodológico de Bourdieu, partindo do seguinte pressuposto: devido à indefinição do campo intelectual autônomo, as carreiras literárias eram utilizadas como estratégia de reconversão de posição social por herdeiros de famílias oligárquicas em decadência. O êxito dessa estratégia de reconversão dependia da manipulação do capital de que dispunham, o capital social — modo como conceitualmente define a influência de escritores junto a indivíduos pertencentes às oligarquias de Estado. Para Pécaut, ao priorizar a noção de Campo, Miceli subsume a ação dos escritores aos interesses de obtenção de uma posição vantajosa na hierarquia social, notadamente pela obtenção de cargos públicos.

Pécaut acredita que não se deve reduzir as convicções políticas da intelectualidade brasileira aos interesses em obter empregos públicos. Do mesmo modo, a condição de herdeiros de famílias oligárquicas em decadência não explicaria satisfatoriamente os sentimentos compartilhados por esses intelectuais, que se viam investidos de uma missão política. Deve-se levar sim em conta o modo como este grupo interpretava politicamente as suas próprias vicissitudes: desilusão com a República, repúdio às alianças do Estado com as antigas oligarquias. Ou seja, para Pécaut a característica decisiva da intelectualidade

brasileira, na primeira metade do século XX, é a sua habilidade em instituir a sua própria legitimidade política, para além dos interesses individuais em reabilitar heranças familiares perdidas.

Pécaut chama atenção, de maneira apropriada, para o viés determinista de análises centradas em critérios da dinâmica hierárquica. Estas levam a interpretar a ação dos escritores por via do interesse estrito na disputa de capital (seja na forma de influência, seja na forma de compensação monetária). Em contrapartida, Pécaut conduz a sua análise para o domínio ideológico, ou seja, atenta para os modos pelos quais um grupo social constrói o seu autorreconhecimento, interpretando de forma motivacional o espaço que ocupa socialmente13. Conclui que os intelectuais não teriam desenvolvido uma relação de dependência para com as elites de Estado, como sugere Miceli (2001), sendo mais apropriado compreender a posição social que eles assumem como paralela ao Estado, espécie de sucedâneo do público. Este papel é pleiteado mediante a crença na sua habilidade em construir a sociedade sob bases racionais. Desse modo, participando ou não de funções públicas, esse grupo teria assumido diante da sociedade a sua habilidade como classe dirigente.

Não obstante, Pécaut deixa um pouco de lado a ligação existente entre as atividades societárias, a partir das quais se articula esta intelectualidade, e o reconhecimento do papel missionário que este grupo outorga para si — papel que lhes permite tecer o seu autorreconhecimento mediante uma narrativa comum. Ora: uma história em comum subentende uma vivência em comum. Como exemplo, as sociedades criadas em torno dos movimentos pela abolição e pela proclamação da República são experiências-chave para a visibilidade e o autorreconhecimento dos Homens de Letras. Essa atuação engajada é o que projeta a imagem dos intelectuais como elite dirigente, onde o grupo se articula segundo critérios que não estão ligados diretamente à hierarquia social, mas pelo interesse comum na sociedade e pela posse de um saber socialmente valorizado.

Este saber não se restringe a uma habilidade especializada de caráter acadêmico — como bem observou Pécaut, pela inexistência de um meio universitário até então (embora o bacharel em direito e em medicina fossem figuras típicas e bem conceituadas no meio letrado). Uma série de práticas converge na cultura difusa da atividade intelectual do período, desde a boemia à Flânerie literária. O autodidatismo era uma marca da atividade intelectual

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Nesse ponto, a abordagem de Pécaut converge com as reflexões de Ricoeur (1977) acerca da noção de ideologia — especificamente com a proposta de pensá-la como um traço de união, ou como o modo pelo qual um grupo social interpreta o seu pertencimento em uma comunidade extensa, projetando a sua ação conjunta desde essa posição. Nesta concepção, a ideologia não se restringe à ação interessada de dominação.

— mesmo os escritores diplomados não possuíam a qualificação acadêmica direcionada para as pesquisas e temas que viriam a tratar.

De um lado, Miceli (2001) e Pécaut (1990) destacam características da intelectualidade brasileira relacionadas ao espaço que esta ocupa socialmente; Machado Neto (1973), por outro, aponta para a importância da participação em determinadas redes societárias e círculos de convivência como elemento fundamental que permite reconhecer o intelectual do período. Na pesquisa um tanto quanto esquecida, publicada sob o título Estrutura Social da República das Letras: Sociologia da Vida Intelectual Brasileira 1870- 1930, Machado Neto estudou o homem de conhecimento (sociologia do intelectual) e os mitos e prestígios decorrentes e condicionantes da vida literária (vigência intelectual), a partir de um questionário preestabelecido aplicado à biografia de 60 intelectuais brasileiros atuantes no final do Império e durante a Primeira República. O foco da sua análise são as instituições, as práticas literárias existentes e os tipos de intelectuais a elas correlatos, a distribuição da intelectualidade nas regiões do país e a estratificação entre eles, ou seja, os modos como se diferenciavam entre si de acordo com os critérios de reconhecimento estabelecidos por escolas e grupos literários divergentes e concorrentes. Salienta também a relação desses grupos com seu público, seus auditórios e os meios de publicação.

O que este autor reconhece como "estratificação da República das Letras" não se confunde com uma análise estrutural — ou seja, que buscaria circunscrever as ações e trajetórias dos intelectuais a determinantes estruturais (hierarquias que constituem disposições duráveis inferidas a partir de uma imagem sincrônica das relações entre os grupos intelectuais). Como exemplo, é notável a interpretação da dinâmica da vida intelectual elaborada a partir das disputas entre as igrejinhas e coteries literárias, as quais Machado Neto desvenda a partir das biografias, memórias e metáforas literárias dos próprios escritores estudados. Na relação entre as igrejinhas e coteries, as armas da disputa por prestígio são os elogios aos amigos e os ataques aos inimigos, aspectos elementares da vida cotidiana, os quais são a substancia de conceitos sociológicos como "disputas de classificação" e "capital simbólico" (BOURDIEU, 1989, 2010).

Partindo dessas contribuições, consideramos que são as atividades societárias — o pertencimento e a atuação em determinados círculos — que fazem com que um jornalista, um médico, um artista, um diplomata e uma senhora da aristocracia sejam reconhecidos como intelectuais e passem a ocupar este espaço. Desse modo, não seguimos uma definição conceitual definitiva do intelectual como tal. Interessa-nos destacar o modo pelo qual os

autores aqui estudados se tornaram intelectuais, ocuparam esse papel, entre outros papéis em sua biografia. Entendemos que o intelectual se define por uma trajetória; trata-se de um processo.

No que pese a ênfase sobre este “vir-a-ser”, que se realiza a partir de redes de relacionamento, cabe destacar a atuação da geração que sucedeu os artistas românticos, os quais, como José de Alencar, mantinham uma relação de dependência com o Estado Monárquico. A geração pós-romântica era composta por nomes como Olavo Bilac e Coelho Neto e contou com o apoio de membros da geração anterior, como Machado de Assis, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, os quais protagonizaram as campanhas pela abolição e pela República. Este grupo foi responsável pela criação da profissão literária, graças à formação de um pequeno público intelectual, despertado primeiramente pelas campanhas abolicionistas e republicanas e, em seguida, pelo jornalismo literário, que se implantou também com o trânsito entre intelectualidade e imprensa animado por estas pugnas. Cabe ressaltar que a relação entre intelectuais e imprensa, a partir desse momento, ocorre fora do âmbito de influência do Estado monárquico. Até então, excetuando um grupo seleto de artistas subvencionados direta ou indiretamente pelo Estado, durante o Império, os representantes que se ocupavam da imprensa, desempenhando de certa forma uma carreira intelectual, eram em grande medida os mesmos integrantes da burocracia Estatal, formada por magistrados diplomados em Coimbra, ou por advogados e profissionais de outras carreiras liberais. De acordo com Pécaut (1990) este era um grupo ideologicamente coeso, por compartilhar as influências de uma formação aos modos da tradição de Portugal. A sua estreiteza de princípios contribuiu para consolidar os fundamentos do Estado e dar forma a uma ordem nacional. Por outro lado, enquanto esta geração esteve vigente, não existiu propriamente a figura do Homem de Letras: a atividade literária e jornalística estava estritamente ligada ao diletantismo ou à disputa bipartidária entre liberais e conservadores.

A geração abolicionista foi a responsável por instaurar a profissão literária, principalmente pela sua atuação no jornal. O jornalismo literário criou as condições para a existência de uma vida intelectual intensa: foi uma escola, uma oficina e o meio de comunicação mais rápido e fácil com o público — verdadeiro sustentáculo e infraestrutura da vida intelectual (MACHADO NETO, 1973). Através dos jornais da Capital e das províncias mais avançadas do Império, ocorreu a formação de um público intelectual considerável. A relação entre o intelectual brasileiro e o público se deu mediante o primeiro mass media conhecido entre nós.

Desse modo, como elemento fundamental para compreender a formação do intelectual baiano do período aqui estudado e também a sua relação ambígua com a modernização da imprensa, destacaremos as atividades societárias que estiveram na base da sua formação. De um lado, as reuniões das sociedades abolicionistas e republicanas na Bahia; de outro, as agremiações literárias e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia — este, embora tenha se inspirado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, não teve o mesmo tipo de elo político para com o Estado monárquico, como teve o seu homônimo sediado na Corte no Rio de Janeiro, tendo se consolidado, de fato, durante a República.

Cabe ainda destacar que essas associações só contribuem para estabelecer as redes de relacionamento necessárias à vida intelectual baiana na segunda metade do século XIX, graças à relação que todas elas empreendem com os periódicos, que constituíram o meio mais acessível e eficiente de publicação e comunicação com o público, assim como a fonte de renda, ainda que secundária, mais à mão para os escritores profissionais.