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Narrar aos netos; a saga familiar como testemunho: a importância dos relatos pessoais

5. ESFERA PÚBLICA, ESPAÇO COMUM: COMO A MODERNIDADE ABALOU A

5.3 Narrar aos netos; a saga familiar como testemunho: a importância dos relatos pessoais

Dizem que os velhos vivem de recordações, na suposição que o recordar-se é sempre grato ao velho: engano!(BITTENCOURT, 1992, p.215)

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Segundo Dewey (1991), questões públicas se originam de todos os problemas que resultam de atos cujas consequências se estendem para além das pessoas diretamente envolvidas. Esses atos requerem a atuação política de um público para que suas consequências na vida dos demais sejam solucionadas.

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Esta era caracterizada pela regulamentação estatal das interações no espaço público, principalmente na rua, e pelo interesse crescente da elite por esse espaço até então considerado como local dos vícios, por onde trafegavam apenas os escravos, os trabalhadores informais, os capadócios e capoeiras (FERREIRA, 1998-1999).

É bem certo que aquele que pega na pena para lançar sobre o papel suas ideias e dar- lhes publicidade pode-se crer atingido de incurável mania. Debalde o bom senso lhe mostra que nenhum proveito lhe pode advir dos seus escritos; sente-se mal, falta-lhe qualquer coisa, e é assim arrastado a escrever. Imagine-se agora o que acontece àquele que não pode dar-se nenhuma ocupação, e neste caso me acho eu. Então lanço mão da pena e escrevo com letra quase ininteligível trechos de recordações e pensamentos elaborados em um cérebro combalido pela idade e pela luta da existência. São momentos de trégua ao desconforto de uma longa idade. (BITTENCOURT, 1992, p. 252)

Quando comparamos os locais de fala dos autores estudados, é interessante pontuar o percurso de ascensão social através do mundo das letras na história de vida de Manuel Querino e de Xavier Marques — não apenas em termos financeiros, mas principalmente pela aquisição de prestígio social. Essa característica não é encontrada nas trajetórias do médico Silva Lima, do advogado e diplomata José Manuel Cardoso de Oliveira e, muito menos, da aristocrata Anna Bittencourt — filha única de uma família abastada e proprietária de um Engenho de açúcar do Recôncavo Baiano79. Nascida em 31 de janeiro de 1843, na Fazenda Retiro na Vila de Itapicuru, foi criada em um engenho de açúcar no município de Santana de Catu desde os dois anos de idade. A autora fez a sua primeira viagem a Salvador em 1855 já com 12 anos.

Em seus cadernos de memórias, escritos por volta de 1920, aos 80 anos aproximadamente, o relato sobre a vida rural no recôncavo e as impressões sobre a cidade comparecem como parte da lembrança pessoal, no final da vida, com o intuito de preservar a história familiar. Por se tratarem de relatos pessoais, documentação da história familiar com a intenção de perpetuá-la para os seus descendentes, os cadernos de memórias de Anna Ribeiro Bittencourt não poderiam, a princípio, ser tomados como parte do diálogo estabelecido na esfera pública baiana do período, como sugerimos nessa pesquisa. A autora não tinha a intenção de publicá-los e fazê-los circular indiscriminadamente.

Por outro lado, Anna Bittencourt mostrava-se ciente acerca da "indocilidade" da obra escrita que, uma vez materializada, torna-se independente, sobrevivendo ao seu próprio autor. Em trecho acima citado, Anna B. menciona a compulsão de “dar publicidade" às ideias, pela qual é acometido todo aquele que um dia se entrega a esta empreitada. Deve-se levar em consideração que as suas memórias são escritas em um período no qual a autora já estava afastada dos meios de publicação baianos, por conta da idade avançada e de problemas na

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Recôncavo é a designação dada à área situada ao fundo de baía. O Recôncavo baiano, ao fundo da Baía de Todos os Santos, abrange, no entanto, além das praias, vales, várzeas e planaltos próximos ao mar e todas as terras adjacentes, ilhas e ilhotas (Mattoso, 1992).

visão: "deixei de colaborar no periódico A Voz quando a diminuição da vista tornou-me dificultoso qualquer trabalho" (BITTENCOURT, 1992, p. 252). Esse fato, somado às dificuldades enfrentadas por ela, durante o seu período mais atuante, para publicar os seus contos e romances80, sugere que a falta de intenção de publicar as ideias contidas em suas memórias pessoais pode não decorrer apenas da vontade de manter em foro íntimo os seus apontamentos, mas da impossibilidade ou indisposição para campear os meios de torná-los públicos.

As dificuldades enfrentadas por Anna Bittencourt para romper um domínio eminentemente masculino na literatura e fazer publicar as suas obras são um testemunho dos meandros pelos quais se tecia a participação política das mulheres — especificamente das senhoras da aristocracia baiana, marginalizadas da vida pública81. Segundo Oliveira (2007), para entrar no mercado literário, Anna Bittencourt teve que contar com um prefácio escrito pelo Visconde de Taunay no seu primeiro romance O Anjo do Perdão (1882), que equivaleria à chancela de um "padrinho" literário. Tal contato foi intermediado pelo primo da autora, o Barão de Araujo Góes.

Nesse sentido, mesmo escritas sem a intenção de serem abertas ao público, as memórias de Anna Bittencourt constituem, ao seu modo, uma resposta da autora a ideias propagadas por outros escritores sobre a Bahia da segunda metade do século XIX. Algumas obras são citadas e cotejadas por ela, como A Bahia de Há 66 Anos, de Silva Lima, e A Bahia de Outrora, de Manuel Querino, ambas lidas por Dona Anna ao serem originalmente publicadas no Jornal de Notícias. A autora cita também o escritor baiano Afrânio Peixoto.

Sendo as suas próprias obras um ingrediente das letras baianas dos primeiros anos do século XX, a escritora cita suas ideias como pontos de referência sobre temas tratados por ela em suas memórias pessoais, cotejando as suas publicações com as de outros autores. São vozes que se ligam na construção de um passado comum, cuja interpretação é ponto de partida para a tomada de posição sobre o presente. Desse modo, os relatos de Anna Bittencourt sugerem um interesse compartilhado entre as mulheres e os homens de letras em

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Anna Bittencourt encontra oportunidade e tempo para dedicar-se à atividade de escritora quando os seus filhos já estão em idade para receber ensinamentos de professores. Esse momento coincide com o marasmo das propriedades rurais do Recôncavo, provocado pela abolição. Escreve A Filha de Jephte, Anjo do Perdão e diversos contos, alguns dos quais ela não consegue publicar em vida. Após a morte do marido em 1907, muda-se para Capital, Salvador, e colabora com as revistas religiosas A Paladina do Lar e A Voz.

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Outras escritoras baianas do período que conseguiram romper o cânone dominante e publicar textos poéticos e romances foram Amélia Rodrigues e Adelaide de Castro Alves.

discorrer sobre a vida urbana do passado, tendo como referência os novos hábitos que se instauram nas primeiras décadas do século XX.

Nos cadernos de memória de Anna B., a percepção de uma ruptura entre o modo de vida experimentado na Bahia do século XIX e a sociedade baiana das primeiras décadas do século XX é evidenciada no distanciamento em relação aos elementos mais habituais da vida comezinha do passado. Nas palavras da própria autora, "o hábito é uma segunda natureza" (BITTENCOURT, 1992, p. 41), a respeito da qual raramente nos damos conta; todavia, a autora consegue pôr em perspectiva as interações, o comportamento e o desenrolar do primeiro grande jantar transcorrido em um engenho do recôncavo, do qual se recorda — jantar oferecido pelo esposo da tia paterna Miguelina, no Engenho Remédio, por ocasião das missas e festas natalinas. Nos relatos de Anna Bittencourt, assim como nas obras dos outros autores que compõem a nossa amostra, a vivência de ruptura em relação ao passado é salientada pelo caráter "típico" que os eventos descritos adquirem, como se compusessem ocorrências de uma vida alheia. Na narração desse jantar, os nomes próprios e os acontecimentos datados vão cedendo espaço a uma descrição próxima à etnografia, onde o evento e os participantes são revestidos de uma aura impessoal, tipificada. Como observa a própria escritora:

Tinha eu tão pouca idade, que não sei bem se as recordações que conservo foram todas desse primeiro jantar a que lembro ter assistido. Talvez algumas sejam de outros de que, em seguida, participei, porque eram a repetição daquele com pequena diferença. A civilização parecia estacionária naquele abençoado cantinho onde se vivia uma vida quase patriarcal. (BITTENCOURT, 1992, p. 45-46)

A crença em um processo civilizatório em curso, como realização de uma lei da História, subjacente aos acontecimentos e à aparente arbitrariedade das ações humanas, era um pano de fundo que fundamentava culturalmente os escritos sobre o passado em quase todos os autores aqui destacados. No trecho acima, Anna Bittencourt confronta o ideário evolucionista moderno com a constância dos rituais na sociedade do Recôncavo. A repetição dos costumes na vida rural dava-lhe a impressão de que "a civilização parecia estacionária" (BITTENCOURT, 1992, p. 46). Constitui uma exceção a esta norma o posicionamento de Manuel Querino que, embora dialogue com essa visão progressista, possui um tipo de engajamento que torna sempre evidentes os interesses e discordâncias, por parte de diferentes grupos sociais, a respeito de uma modernização adequada. Ou seja, assim como outros escritores dissidentes do status quo, a perspectiva de Manuel Querino sugere que, embora a

modernização seja um fenômeno inerente à História, cabe aos homens guiar os rumos desse progresso.

O modo tipificado e a aproximação da narrativa com o estilo etnográfico estão presentes em todos os autores, como um gênero de discurso, embora eles utilizem estilos literários distintos. Todavia, a estereotipia da vida, na Bahia em tempos de Império, possui formas bem distintas em cada uma das obras aqui selecionadas.

Como vimos, nas recordações do médico Silva Lima, o distanciamento do narrador em relação aos valores pretéritos que consubstanciam as relações sociais nos idos dos 1800 conforma um etnocentrismo temporal e não geográfico, como é comum. Embora narre o passadio da cidade onde se encontra, ela é julgada a partir de valores alheios. A diversidade cultural é pensada a partir de uma coordenada própria ao discurso evolucionista, a noção de tempo como estágio evolutivo. Desse modo, o distanciamento cronológico coloca o narrador em outro plano, fundamentando o seu alheamento em relação à sociedade à qual pertence.

Em outras palavras, o argumento evolucionista adotado por Silva Lima permite que a multiplicidade e a heterogeneidade contida no espaço geográfico sejam concebidas como meros acasos expressivos emergentes, por sobre a unidade de uma lei histórica que lhes é inerente. Em corolário, o outro e, especificamente, o não ocidentalizado, ou aquele que se situa na periferia da ocidentalização, não é percebido em sua alteridade, como detentor de trajetórias, narrativas e história particular. Tudo isso decorre do modo como o espaço é concebido — nos termos de Silva Lima, como uma variável sem peso, subsumida a uma lógica determinante exterior, à força imperativa de um processo histórico predeterminado. Ao adotar o evolucionismo como ponto de partida, o discurso de Silva Lima aproxima-se do gênero descrito por Bakhtin como "discurso de autoridade", um gênero que se caracteriza pela noção de verdade, excluindo a possibilidade de múltiplas perspectivas equitativamente válidas.

Por sua vez, em A Bahia de Outrora, o uso de uma descrição próxima à etnográfica para tratar do passado constitui um recurso para configurar a sociedade pregressa como exemplo viável, legitimando os seus valores e o seu modo de vida. A sociedade baiana dos 1800 é apresentada por Manuel Querino como um arranjo funcional e sui generis, capaz de fazer frente às inovações culturais e tecnológicas da modernidade.

Já nos cadernos de memórias de Anna Bittencourt, o distanciamento em relação ao passado — que permite perceber comportamentos, pessoas e eventos como elementos típicos

— conforma uma reflexão sobre as mudanças havidas na passagem de século. A autora elabora um confronto entre a sociedade de seu tempo de infância e juventude e a sociedade do momento; pondera perdas e ganhos da modernização. A voz narrativa oscila; não apresenta, a priori, um enraizamento em valores do passado narrado ou do presente no qual transcorre a escrita — exceto no que se refere à reformulação do comportamento feminino, a respeito do qual a autora mostra desconforto pessoal, dúvidas e ponderações, estando mais inclinada aos valores do passado do que aos novos padrões modernos.

Desse modo, ao lado de uma intenção pedagógica de advertir as jovens sobre a importância da conservação dos costumes familiares (OLIVEIRA, 2007) — então ameaçados por uma maior exposição da mulher no espaço público — percebe-se em sua obra a afirmação identitária da cultura baiana, em contraposição à importação de valores resultante da modernização. Ou seja, quando abordadas sob a perspectiva difusionista — presente na noção de imaginário, tal qual explorada por Pesavento (2002) — as impressões sobre Salvador no século XIX relatadas por Anna Bittencourt sugerem uma continuidade direta com o ideal de modernidade difundido por autores do mesmo período, como Olavo Bilac (1865-1918) 82. No entanto, nos relatos autobiográficos de Anna, é possível perceber aspectos particulares da recepção da proposta civilizatória do Governo Republicano pelos vários setores da elite baiana, podendo ser confrontada com a perspectiva adotada pelo médico Silva Lima e pelo diplomata Cardoso de Oliveira.

Cabe destacar que Salvador não possuía uma elite urbana de fato consolidada como o Rio de Janeiro, então Capital Federal. Anna Bittencourt vivencia a decadência do patriarcado rural e a crise da atividade agrário-exportadora. A sua mudança domiciliar para Salvador em meados da vida, após a concretização de um matrimônio tardio com outro herdeiro da elite rural do Recôncavo, ilustra o estreitamento das relações da aristocracia rural dos engenhos com a capital do Estado, motivada pela busca de alternativas profissionais nos cursos superiores, oferecidos nos centros urbanos.

Antes dessa época, tomando professores para meus filhos, tornara-se-me a vida mais folgada, e, para ocupar os longos serões das noites de inverno, dediquei-me a decifrar e compor charadas e logogrifos e também a fazer versos ligeiros para as nossas festividades familiares. Meu marido tomava parte nesses pequenos trabalhos porque igualmente aborrecia-se da solidão em que ficaram as propriedades rurais

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Como exemplo do alinhamento do autor com a proposta de europeização dos hábitos e do cenário urbano das capitais brasileiras, especificamente do Rio de Janeiro, ver as suas crônicas na revista Kosmos. Sobre a relação dos literatos da Academia Brasileira de Letras com o projeto civilizatório do Estado na Primeira República ver: Needell, J. (1993) Belle Époque Tropical: sociedade e cultura da elite no Rio de Janeiro na virada do século. Tradução: Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das letras.

depois da abolição, visto que quase todos os proprietários iam se afastando a procurar nas cidades meios de vida. (BITTENCOURT, 1992, p. 251)

Por fim, destacamos que as memórias de Anna Bittencourt constituem um importante registro sobre a Salvador oitocentista sob a perspectiva das famílias aristocráticas do Recôncavo baiano. Vista ao longe, pela primeira vez, de cima de um mirante, a cidade lhe remete ao imaginário parisiense transmitido através da literatura europeia que fazia parte da formação das jovens de família abastada.

Saímos muito cedo. Eu ia radiante. Quando, mais tarde, li O Judeu Errante, romance antigamente muito apreciado e hoje sem valor, ao ver o episódio em que duas meninas criadas na Sibéria, encantadas com a descrição que sua mãe lhes fazia de Paris — chamavam-na cidade de ouro — lembrei-me das belezas e magnificências que imaginava encontrar na Bahia e do alvoroço que experimentei ao julgar que ia realizar-se definitivamente esse sonho querido.83 (BITTENCOURT, 1992, p. 96) [...]

Havia ali um mirante e Henriqueta provocou-me:

- Se não estivesses tão cansada, convidar-te-ia a subir ali, donde se avista toda a cidade.

Prevaleceu a curiosidade, e subimos a longa escada que levava ao mirante. Valeu a pena o esforço. A vista era admirável!

- Se o sol não estivesse já posto, disse Henriqueta, ainda mais esplêndida te pareceria a cidade!

Na vasta aglomeração de casas, destacavam-se as torres de numerosas igrejas: espetáculo grandioso e novo para mim. Não demoramos mais tempo, porque meu pai advertiu-nos serem horas de continuar a viagem. (BITTENCOURT, 1992, p. 101)

Partindo desse imaginário — transmitido como pano de fundo pela literatura europeia, e principalmente francesa — a autora registra a decepção da sua primeira viagem à Bahia (nome dado a Salvador), cuja visão por dentro contrariara a bela imagem avistada de cima de um mirante. A autora salienta o aspecto sombrio da cidade em suas feições coloniais, observadas no trajeto da Lapinha ao Largo do Pelourinho, com suas casas enegrecidas e ruas tortuosas, onde a luz mortiça dos lampiões a azeite de peixe transmitia um sentimento tristonho (BITTENCOURT, 1992) 84.

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O Judeu Errante, obra de Marie Joseph Sue, dita Eugène (1804-1857), obteve grande sucesso como folhetim publicado no jornal parisiense Le Constitutionel entre 1844 e 1845. Foi transformado em livro e logo traduzido para outras línguas europeias. Na Bahia, uma edição em cinco volumes com estampas foi anunciada em 1869 por 12$000 no Novo Catálogo das Obras que se acham à venda na Livraria Catilina e Cia (Mariane Bittencourt, notas in: Bittencourt, 1992).

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Esse e outros temas relativos à percepção da vida urbana e suas mudanças na passagem do século XX serão analisados no capítulo seguinte.

Fonte: BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. (1992) Longos Serões do Campo. Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Fonte: BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. (1992) Longos Serões do Campo. Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Fonte: BPEB - setor de Obras Raras. Fonte: BPEB - setor de Obras Raras.

Figura 11 — Conto Marietta de Anna Bittencourt,

encadernação do folhetim recortado do Jornal de Notícias. Figura 12 — Conto Marietta, Folha de rosto.