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Biografia de Manuel Querino: Inserção na vida pública franqueada pelo abolicionismo e

2. RASTROS DA VIDA INTELECTUAL NA BAHIA: A CAMPANHA

2.1 Biografia de Manuel Querino: Inserção na vida pública franqueada pelo abolicionismo e

Nascido em 1851, apenas um ano após a proibição do tráfico de escravos, em Santo Amaro da Purificação, filho único de um casal afrodescendente formado por Luzia da Rocha Pita e pelo carpinteiro José Joaquim dos Santos Querino, Manuel Querino tornou-se órfão aos quatro anos, quando seus pais faleceram em consequência da epidemia de cólera que assolou a região do recôncavo baiano.

Foi conduzido à capital do Estado para ser entregue à família do bacharel Manuel Correia Garcia, designado como seu tutor em respeito à decisão do então juiz dos órfãos, o Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, que se tornou padrinho e protetor de Manuel Querino durante toda a vida.

Seu tutor, o Bacharel Manuel Correia Garcia, professor aposentado da Escola Normal, ensinou-lhe, ele próprio, as primeiras letras e fez com que aprendesse o ofício de pintor. Com o fato trágico da morte dos pais, o destino de Querino acaba tomando um rumo positivo. A inserção em uma família de classe média lhe proporciona o acesso ao ofício das artes e à cultura letrada. Ao assisti-lo no conhecimento das letras e das artes, a família do bacharel aposentado da Escola Normal da Bahia contradiz os padrões da época, segundo os quais teria conduzido o órfão afrodescendente à função de serviçal, como ressalta Guimarães (2004).

Aos 16 anos Manuel Querino vai ao Piauí, não se sabe se para fugir do recrutamento; contudo, lá estando, acaba convocado para a Guerra do Paraguai. É conduzido para o Rio de Janeiro a fim de receber instruções militares. Permanece no batalhão, porém, como escriturário, sendo poupado do campo de batalha. A posse das letras incorreu como diferencial que o colocaria em posição mais vantajosa que a de seus companheiros — a instrução será sempre um ganho substancial para o destino de Querino. Consegue baixa do serviço militar em 1870 graças à ajuda política do Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas19. Volta à Bahia, onde trabalha de dia no serviço de pintor e estuda à noite. Cursa Humanidades no Liceu de Artes e Ofícios, depois Desenho e Arquitetura, na Academia de Belas Artes. Aprende línguas no Colégio 25 de Março. Começa a participar da política. Segundo Calmon (1995), foi a ela conduzido pela solidariedade ao padrinho, Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, chefe do Partido Liberal na Província baiana.

Dois estudiosos das relações raciais no Brasil, Jeferson Bacelar (2009) e Antônio Sérgio Guimarães (2004), levantam a questão sobre as dificuldades que Manuel Querino provavelmente enfrentou para negociar a sua inserção no establishment branco e sobre os meandros para estabelecer o seu reconhecimento como intelectual20. Sérgio Guimarães (2004) considera Manuel Querino um representante emblemático do moderno intelectual negro engajado. Manuel Querino nunca teve o seu prestígio equiparado ao dos homens de ciência; ocupava a cena intelectual como autodidata interessado ou jornalista; a sua legitimidade como pesquisador derivava do aceso privilegiado às fontes e pessoas do povo sobre as quais escrevia. Os lugares nos quais foi aceito e de onde pode falar com certa influência foram o já citado IGHB e os Congressos Geográficos21.

Cabe reconhecer que a trajetória percorrida por Manuel Querino para ocupar um espaço como intelectual ocorre em um período marcado pela formação de novas elites políticas com interesse em abarcar membros de diversas classes sociais e de diferentes grupos étnicos. Essa tendência, de pelo menos uma parcela da elite branca letrada baiana, é percebida tanto no tratamento não usual que a família do Bacharel Manuel Correia Garcia dá à formação

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Há controvérsias com relação ao motivo pelo qual Querino foi desligado do exército. Gonçalo de Athayde conta que a sua desincorporação ocorreu após um exame médico que revelara que as suas condições físicas não eram apropriadas ao campo de batalha (ATHAYDE PEREIRA, 1932).

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Abordaremos novamente esta questão no item sobre a participação de Manuel Querino como membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

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Manuel Querino participou do V Congresso Brasileiro de Geografia locado em Salvador, em 1916, apresentando o trabalho A Raça Africana e os seus Costumes na Bahia e também do VI Congresso Brasileiro de Geografia no qual apresentou o ensaio O Colono Preto como Fator da Civilização Brasileira, 1918.

de Manuel Querino, quanto na importância que o médico Luís Anselmo da Fonseca, um dos líderes mais importantes do movimento abolicionista no Estado, credita à participação dos artistas mecânicos (leia-se trabalhadores livres que desempenham ofícios manuais) no principal documento abolicionista produzido na Bahia. Abre-se a possibilidade de participação no círculo das elites letradas através da militância política, nos movimentos abolicionistas e republicanos, nas organizações sindicais que viriam a se formar, dado o aumento progressivo do número de operários, mesmo antes do fim da escravidão, como atesta Fonseca (1887) em seu libelo pró-abolição22.

Querino foi fundador da Liga Operária em 1874 e participou da instituição do Partido Operário em 1890, pelo qual foi indicado como candidato a Deputado Federal e representante no Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro. As iniciativas do partido logo foram intimidadas por reações opostas de patrões e proprietários de fábricas. O partido acabou sendo transformado em Centro Operário da Bahia, sem fins políticos, e sem a possibilidade de propor candidaturas nos pleitos eleitorais23. Apesar da inviabilidade de alçar o posto de deputado, Manuel Querino foi convidado pelo Governo do Estado para ocupar uma das cadeiras do Conselho Municipal entre 1890 e 1891, permanecendo até janeiro de 1892, graças ao destaque obtido como líder operário. Foi outra vez vereador de 1897 a 1899. Nos dois casos foi indicado como substituto de um dos "intendentes" (CALMON, 1995).

Além das associações políticas, a inserção no universo intelectual se dava também pela participação em exposições anuais abertas ao público, realizadas por instituições como o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e a Academia de Belas Artes (LEAL, 2009). As agremiações literárias como A Cruzada, o Grêmio Literário e posteriormente a Academia de Letras da Bahia foram também importantes espaços de reunião da intelectualidade. No entanto, a luta abolicionista, a causa republicana, a militância operária e a participação no IGHB eram as vias privilegiadas de acesso às páginas da imprensa. Tais instituições possuíam, no entanto, pesos diferenciados como vetores de integração no meio intelectual. Segundo Guimarães (2004), a participação política influía como via de promoção social, mas

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De acordo com este, por volta de 1850 os serviços de pedreiro, carpinteiro, calceteiro, ferrador, jardineiro, etc., eram executados por escravos de ganho colocados nestes serviços por seus senhores. Em 1887, estes serviços já eram exercidos por homens livres, sendo que quase todos os escravos atuantes em Salvador eram empregados apenas em serviços domésticos.

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As iniciativas do partido foram intimidadas pelo seu próprio presidente. Gonçalo Espinheira declarou que a entidade não tinha fins políticos, portanto seus membros poderiam se candidatar, mas não sob a égide da instituição. Os patrões, proprietários de fábricas foram convidados a participar das reuniões juntamente com os operários. Dos escombros do partido surgiu o Centro Operário da Bahia (Calmon, 1995).

o reconhecimento intelectual era mediado principalmente pela atuação nas principais páginas da imprensa e no IGHB.

Considerando, a maneira de Guimarães (2004), que as organizações políticas serviram como espaços de promoção social, entendemos que a importância do movimento abolicionista, e também republicano, na formação de uma intelectualidade, é evidenciada na passagem de Manuel Querino pela Gazeta da Tarde, periódico ligado à Sociedade Libertadora da Bahia, que o pôs em contato com figuras proeminentes da imprensa baiana. Analisaremos esta questão a partir do modo como o amigo, Teixeira de Barros, apresenta Manuel Querino no prefácio da obra A Bahia de Outrora, em 1916.

Antes de seguir nesta direção, cabe observar que as considerações sobre a visibilidade que Manuel Querino provavelmente obteve como intelectual a partir da atuação no Partido Liberal, no movimento republicano e no movimento abolicionista não têm como objetivo pôr em dúvida os ideais libertários e o envolvimento sincero desta figura destacada da nossa história, a respeito da qual amigos e biógrafos são unânimes em afirmar a convicta militância, responsável por angariar graves inimizades políticas que bloquearam, inclusive, a sua ascensão, seja como político ou como funcionário público. O que se pretende é pôr alguma luz sobre os possíveis meios pelos quais este artista afrodescendente conseguiu negociar o seu espaço entre a elite branca letrada, através de sua força de vontade empenhada na obtenção de uma formação acadêmica e no acesso sagaz aos espaços que permitiam a sua atuação como intelectual nesta sociedade, cujos valores se encontravam em transição.

Tentamos, assim, traçar o perfil de Manuel Querino como intelectual baiano, partindo da ideia de que o intelectual se constitui através de uma teia de relações, pela qual vem a participar de determinados círculos, desempenhar práticas e compartilhar valores e temas que definem o pertencimento à "classe" dos Homens de Letras da passagem do século XIX para o XX. Com isso escapamos de uma noção substancialista do intelectual, que não levaria em conta as particularidades do mundo social compartilhado, no qual estão inseridos de modos diversos o artista Manuel Querino, o jornalista Xavier Marques, a filha da aristocracia açucareira Anna Bittencourt, o médico Silva Lima e o advogado/diplomata José Manuel Cardoso de Oliveira.

2.2 Manuel Querino entre os abolicionistas da Gazeta da Tarde: reuniões que