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A contradição como textura: alguns exemplos das ambivalências locais

1. INTELECTUAIS E A MODERNIDADE:

1.1 A contradição como textura: alguns exemplos das ambivalências locais

A nosso ver, ambivalência torna-se a palavra mais apropriada para compreender a sensibilidade dos nossos escritores em relação ao processo de modernização da cidade de Salvador, naquele período. A modernidade, tão desejada quanto temida nas narrativas dos escritores baianos, será aqui abordada como um horizonte aberto por certos eventos fundadores, dentre os quais destacaremos as transformações no espaço urbano, que incidem sobre as formas de convivência, a ampliação da esfera pública, a aceleração das comunicações

através de novas tecnologias, como o telégrafo, e a profissionalização da atividade de escritor, notadamente na figura do jornalista.

Como exemplo, a ambivalência — ou seja, a existência simultânea de dois sentimentos ou duas ideias com relação a uma mesma coisa — comparece como característica da recepção da série de crônicas10de autoria de Manuel Querino intitulada A Bahia de Outrora, divulgadas entre 1913 e 1915 no Jornal de Notícias e na revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), posteriormente reunidas em um livro, cuja primeira publicação é de 1916.

Note que o título A Bahia de Outrora por um lado proclama a existência de uma nova Bahia, ao pôr como fato dado a ruptura com o passado — ponto de partida que compartilha com a vaga progressista que invadiu a esfera pública nacional. Por outro lado, o título também corrobora uma possível valorização do passado, o sentimento saudosista que serve de pano de fundo a uma crítica à Bahia Republicana, quando confrontada com a Bahia de tempos imperiais.

É provável que o caráter ambíguo, assumido pela série a partir da relação dialógica com a propaganda da modernização e com outros artigos e notícias que com ela dividiam o espaço da imprensa baiana, tenha sido empregado como estratégia para divulgação de uma crítica velada às intervenções no espaço da cidade, encabeçadas pelo regime republicano. Cabe lembrar que Manuel Querino, ao mesmo tempo em que ocupa um espaço como militante político — primeiro nas pugnas do Partido Liberal, ao qual é conduzido por seu protetor Conselheiro Manuel Pinto de Souza Dantas, depois nas reuniões dos movimentos abolicionista e republicano e por fim como líder de associações operárias —, desponta como escritor e intelectual, portanto precisa zelar por relacionamentos que garantam espaços para publicação e favoreçam o seu reconhecimento.

Desse modo, a série de crônicas se presta a apropriações diversas. O intérprete atual que inicie a sua leitura, tendo como pano de fundo a biografia de Manuel Querino — certamente um intelectual baiano que se desvia do modelo canônico do bacharel, branco, formado nas faculdades de direito, medicina ou na escola politécnica — verá como traço

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Os textos que integram a série A Bahia de Outrora foram escritos em gênero literário misto, mas podem ser considerados representantes da crônica pelo estilo despretensioso, não rebuscado, utilizado no tratamento de acontecimentos e costumes da Bahia do século XIX, ou seja, como parte da memória compartilhada, apresentada sob o ponto de vista da experiência pessoal de um concidadão. Os textos empregam linguagem direta, relacionam-se com o cotidiano pela efemeridade que caracteriza a imprensa, meio habitual de divulgação da crônica (CÂNDIDO e outros, 1992) e veículo para o qual foi elaborada parte da série, posteriormente reunida em livro.

definidor do sentido da obra o seu conteúdo político, a crítica a um modelo de modernização urbana transmitida a partir da memória saudosa de tempos idos, que, embora parecessem até então obscuros e bárbaros, mostravam-se mais justos quando confrontados aos contornos que a esperada civilização adquiria sob os auspícios do governo de J. J. Seabra.

Por outro lado, por ocasião da sua publicação em livro, no ano de 1916, a obra é apresentada como um estudo de tradições que possui um sentido eminentemente acadêmico e visa imortalizar costumes e práticas que, embora vivos de modo latente, estavam fadados ao desaparecimento. A crítica divulgada no jornal O Democrata, órgão do Partido Republicano Democrata — PRD (partido do então governador J. J. Seabra), minimiza o teor contestador das crônicas, salientando o seu valor como leitura de entretenimento àqueles que saudosamente desejam recordar um passado pitoresco. Sob esse enfoque as crônicas não afrontam a perspectiva evolucionista, segundo a qual as mudanças sociais eram inevitáveis; produtos de uma lei histórica e não da ação política de homens.

Livro de recordações, feito por testemunha que ainda pertence em parte àquele viver descuidoso, simples e meio patriarcal da sociedade de há meio século, estas páginas hão de evocar a muita gente, com deliciosa saudade, uma época que a Bahia resumia de fato toda a originalidade da raça brasileira. (O DEMOCRATA,1916, apud LEAL, 2009)

A polissemia dessa obra, que de um lado se insere na linha de estudos sobre as tradições da Bahia — em voga, por exemplo, no IGHB, do qual Querino era membro fundador — e, de outro, atua como crítica ao modelo de modernização que aos poucos tomava contorno através das intervenções estatais, não se esgota nesses dois tipos de apropriação. As crônicas de Querino entram em diálogo também com os escritos inseridos na linha de memórias pessoais, embora o autor utilize a primeira pessoa apenas em poucos trechos das crônicas, nem sempre se inserindo como testemunha dos fatos narrados. É o que sugere a recepção que esta obra teve por parte da escritora baiana Anna Bittencourt.

Já foi dito na introdução deste trabalho que a escolha dos intelectuais aqui reunidos não foi mediada por um critério que permitisse estabelecer dentre os escritores atuantes na vida pública aqueles de maior representatividade. Ao contrário de uma escolha metodicamente controlada, a composição desta amostra foi mediada pelo encontro com textos e trajetórias intelectuais que apresentavam interfaces. A leitura das memórias de Anna Bittencourt indicou a existência de um diálogo em torno de reflexões sobre a Bahia do século XIX, pensada como um passado, cujas estruturas foram rompidas por um processo de

modernização, graças a comentário sobre textos de outros escritores. As comparações entre o conteúdo das suas próprias memórias com as de outros autores permitiu mapear as trocas existentes em torno de um mesmo tema, em escritos que, por vezes, utilizavam os mesmos veículos de publicação.

Em seu caderno de memórias, escritos provavelmente entre 1920 e 1921, Anna Ribeiro Bittencourt — filha única de uma importante família da aristocracia açucareira do recôncavo baiano, nascida em um Engenho em Santana do Catu no ano de 1843 — narra acontecimentos da sua infância e juventude. Dentre os temas que as memórias permitem acessar, está o gosto e o interesse literário compartilhado pela aristocracia. Anna Bittencourt conta ter lido a série A Bahia de Outrora no Jornal de Notícias. Ao final de um trecho dedicado à descrição do primeiro grande jantar promovido no engenho em Catu do qual a escritora se lembra, Anna faz um paralelo entre as suas memórias e um dos relatos contido nesta série.

Apareceram há tempos no Jornal de Notícias uns artigos com título A Bahia de Outrora, assinados por Manuel Querino, descrevendo um jantar nesta Capital. Vê-se claramente que é um jantar de baixa classe, do povo; os proprietários de engenho formavam uma classe mais elevada, ainda os que não eram de origem nobre. Além de outras coisas, diz o articulista que foi levantado um brinde à cozinheira. Ora não havia um proprietário ou mesmo pessoa de certa importância que não tivesse cozinheira escrava, e a uma escrava não se levantava um brinde. (BITTENCOURT, 1992, p.46)

Anna Bittencourt percebe uma excentricidade na narração de Querino. Parece-lhe estranho que um artigo apresentado com foros de estudo de costumes — vindo, dessa forma, a instaurar o imaginário das gerações futuras sobre os hábitos considerados como típicos da vida baiana por volta de 1870 — narre um jantar onde os convidados brindam à cozinheira. Esse costume não era partilhado entre as famílias abastadas do período, já que o jantar seria preparado por uma escrava, e não se brindava aos cativos. A forma como Anna Bittencourt recebe essa série de crônicas, confrontando-a com as suas próprias memórias, aponta para outra dimensão da obra A Bahia de Outrora: a proposta inovadora de reflexão sobre o período imperial a partir da perspectiva das camadas médias urbanas.

Em contrapartida, ao citar outros autores baianos, como o médico Silva Lima em suas memórias intituladas A Bahia de Há 66 Anos, Anna Bittencourt coteja de forma afirmativa as informações divulgadas.

Há algum tempo apareceram uns artigos, não me lembro em que gazeta, assinados por Sênio e intitulados A Bahia de há 66 anos. Disseram ser do Dr. Silva Lima, ilustre médico clínico desta cidade, falecido não há muito tempo. Descreviam os artigos com exatidão a Bahia que conheci na minha primeira viagem. Dez anos depois, quando vim residir aqui por alguns anos, a cidade era a mesma com pequenas modificações. (BITTENCOURT, 1992, p.103)

A obra A Bahia de Há 66 Anos, de autoria do médico José Francisco da Silva Lima (1826-1910), nascido em Portugal, mas formado na Bahia, foi publicada em capítulos no Jornal de Notícias em 1907 em uma parte dedicada aos folhetins, no canto inferior direito da terceira página com verso na quarta página, canto inferior esquerdo — o famoso rodapé do jornal. Assim dispostos, os folhetins poderiam ser recortados pelos leitores e colados contra folhas de papel em branco, formando pequenos livretos. A primeira folha saiu no dia 31 de janeiro de 1907, sucedendo o folhetim O homem invisível; o último capítulo foi publicado no dia 13 de Fevereiro de 1907, terminando na página 34. Como pseudônimo o médico utilizou "Senex", e não Sênio, como registra Anna Bittencourt em suas memórias. O mesmo espaço do jornal foi depois preenchido pelo romance O Incrível Amor, de Georges Maldague. As memórias de Silva Lima foram republicadas no nº 34 da revista do IGHB em 1908, assinadas também com o pseudônimo de Senex. Neste mesmo exemplar, Manuel Querino fazia a sua segunda contribuição a esta revista com o artigo Contribuição para a história das artes na Bahia: José Joaquim da Rocha (sua naturalidade).

Anna Bittencourt cita ainda outro autor baiano, contemporâneo seu, o médico e literato Afrânio Peixoto.

Todas essas agradáveis recordações só vêm hoje avivar-me a saudade, a grande alma triste do passado, como a chama Afrânio Peixoto. (BITTENCOURT, 1992 p.37)

Os cadernos de memórias de Anna Bittencourt não foram escritos com o intuito de serem publicados. A ação de trazer o passado para o presente ocorre no final da vida, quando a autora contava em torno de 80 anos. Tinha por finalidade preservar a história familiar como exemplo para seus netos. A despeito disso, seus relatos trazem importantes observações sobre hábitos de leitura. No caso, a citação de escritos de outros autores baianos que registraram o ambiente e o modo de vida da cidade de Salvador durante os anos do Império, especificamente a vida urbana das últimas três décadas do século XIX, sugere a existência de um interesse compartilhado entre as Mulheres e os Homens de Letras da Bahia. Alguns desses

escritos ocupavam os mesmos espaços na imprensa, como no caso das crônicas de Manuel Querino e das memórias de Silva Lima, que foram ambos publicados no Jornal de Notícias e na revista do IGHB.

Por essa razão, entendemos que o corpus formado por essas obras constitui um referencial privilegiado para compreender o modo como a modernidade afetou a intelectualidade baiana — modernidade aqui abordada em duas instâncias: a partir das transformações na esfera pública, e das mudanças nas formas de convivência no espaço urbano. Ao abordarmos estas obras como ações intelectuais na esfera pública, daremos destaque ao seu caráter dialógico11.

A partir da noção de dialogismo, abordaremos o aspecto ambivalente das obras em relação à temática abordada, como foi levantado na parte introdutória desse capítulo. Levamos em consideração que, externamente, todo enunciado se constitui em diálogo com outros enunciados; do mesmo modo, internamente, mais de uma voz dialoga no interior do próprio enunciado. Entendemos que a modernidade é vivida como uma experiência contraditória, e que os escritos que teceram uma dada compreensão social desse fenômeno compõem uma teia com várias perspectivas. Dentro dos próprios textos, estas perspectivas dialogam entre si.

Pelo cotejamento dos trechos apresentados nesta introdução, todos extraídos de obras que comporão as nossas fontes de análise, percebe-se uma disputa de sentidos incidindo sobre a recomposição da memória do passado Imperial. A modernidade emerge a partir da reflexão acerca de um modo de vida ameaçado por um processo de mudanças que incide sobre o espaço público. Este último entendido tanto como espaço de comunicação — esfera pública — como quanto espaço físico de convivência entre todos — as ruas, as praças, logradouros destinados ao encontro entre estranhos, local onde se estabelecem as relações de alteridade.

A reconstrução do passado se dá como tomada de posição no presente, que, para os intelectuais baianos em questão, é caracterizado fundamentalmente pela experiência de ruptura. A descoberta de diálogos proporcionados pela recepção de textos em torno deste

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Seguimos a proposta teórica do Dialogismo, desenvolvida pelo pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), que produziu uma teoria do conhecimento de orientação pragmática, uma das epistemologias modernas que tentam compreender o comportamento humano a partir do uso que se faz da linguagem (HOLQUINST, 1990). A sua originalidade é o conceito dialógico de linguagem. Por isso, o termo utilizado para englobar os temas tratados por ele é Dialogismo. Ao se contrapor à Linguística, Bakhtin pretende compreender a linguagem em seu funcionamento, constituído pela relação entre enunciados — acontecimentos particulares que não existem fora de uma relação dialógica (FIORIN, 2008). Entendendo as obras literárias como enunciados, o seu caráter histórico pode ser percebido no diálogo que empreendem entre si.

tema constituiu um ponto fundamental na fase exploratória desta pesquisa, como a contraposição assumida entre as memórias do médico Silva Lima e a coletânea de crônicas de Manuel Querino — textos publicados nos mesmos veículos, logo cotejados pelos mesmos leitores, como indicam as observações de Anna Bittencourt que, por sua vez, compartilha como leitora/escritora do mesmo interesse sobre as mudanças no modo de vida da sociedade baiana.

A produção destes textos memorialistas é motivada, grande parte, pelo interesse em registrar costumes do passado ameaçados por mudança nas formas de convivência no espaço urbano — alterações caracterizadas pela impessoalidade, pela valorização das ruas como espaço de convivência de pessoas da elite, pela presença das mulheres no espaço público e pela segregação da população de baixa renda. Porém, outra temática importante relacionada à modernidade diz respeito às mudanças nos espaços da vida intelectual: a perda de prestígio do literato, a profissionalização do jornalismo e a modernização da imprensa. Esta questão foi a princípio despertada pela leitura de um artigo de Xavier Marques, publicado na revista do IGHB, sobre o qual trataremos a seguir.