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A "barbárie da escravidão": a rejeição do cativeiro pela difusão de valores humanistas

2. RASTROS DA VIDA INTELECTUAL NA BAHIA: A CAMPANHA

2.3 A "barbárie da escravidão": a rejeição do cativeiro pela difusão de valores humanistas

Como foi visto, o reconhecimento da intelectualidade brasileira, na análise de Pécaut, tecia-se também mediante o interesse em temas prioritários, os quais se reuniam a partir do eixo do nacionalismo. Desse modo, o abolicionismo atuou como centro de aglutinação

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As obras O Problema nacional brasileiro (1914) e A Organização Nacional (1915) de Alberto Torres — presidente do Estado do Rio de Janeiro entre 1897 e 1900, membro do Supremo Tribunal entre 1901 e 1907 — são emblemas do desafio ao qual se lança os intelectuais a partir da segunda década do século XX. Alberto Torres convoca os homens de letras para a missão de formar uma "consciência nacional" e promover a "organização nacional" (Pecaut, 1990). Esta convocação caracteriza a invasão nacionalista na literatura brasileira a partir de 1915.

intelectual — não só por meio dos encontros e do reconhecimento mútuo nas reuniões associativas, mas também pela união selada no compartilhamento de valores e de interesses comuns. Os ensaios biográficos sobre Anna Bittencourt e Silva Lima, aos quais tivemos acesso neta pesquisa, não citam a participação dos mesmos em associações do movimento abolicionista, todavia os textos que eles produziram repercutem valores disseminados por esta causa, o que indica a pertinência do abolicionismo como fator de união da intelectualidade, como uma questão compartilhada. Passemos a investigar este tema pela perspectiva destes dois intelectuais que compartilham a vivência das camadas mais abastadas da população.

Por serem constituídos de lembranças pessoais, os cadernos de Anna Bittencourt possuem informações elucidativas sobre o modo de vida e o cotidiano da época de sua infância e juventude, transcorridas na segunda metade do século XIX. A autora nasceu na Fazenda Retiro, em Itapicuru, a 31 de janeiro de 1843, transferindo-se para o engenho no município de Catu com a idade de apenas dois anos. Lá viveu toda a infância e a maior parte de sua juventude. Após o casamento com Sócrates Bittencourt em 1885, mudou-se para Salvador afim de que seu esposo terminasse o curso de medicina. Após a conclusão do curso, o casal retornou ao Recôncavo. Em 1907, já viúva, mudou-se definitivamente para a Capital.

Do lado paterno, a autora carregava a herança dos "Araújo Goes", proprietários de fazendas de açúcar do Recôncavo baiano. Segundo descrições da própria Anna, seus ancestrais não desmentiam a nobreza da segunda aristocracia formada pela classe dos Senhores de Engenhos. A autora traz grandes contribuições ao estudo da sociedade patriarcal da segunda metade do século XIX. Situações da sua vivência pessoal revelam muito sobre o papel ocupado pela mulher, sobre a influência da igreja na visão de mundo da aristocracia rural — principalmente no que concernia às normas familiares — e sobre os meandros da relação entre senhores e escravos, entre outros temas.

A primeira menção que encontramos em seus relatos de vida sobre as relações entre integrantes da aristocracia rural e os escravos se refere à atitude de uma tia que morreu precocemente aos 21 anos, após contrair febre amarela no período em que esteve em retiro no convento das Mercês, em consequência da epidemia que assolou o Estado em 1850. Em seus últimos dias, Maria, sua tia materna, deixou uma solicitação dirigida à mãe de Anna B., que foi encontrada na arca que lhe pertenceu. Pedia que fosse alforriada a escrava Josepha em reconhecimento aos serviços que lhe prestara durante toda a vida e à dedicação com a qual acompanhou os seus últimos dias, velando todas as noites aos seus pés.

Os relatos da infância de Anna Bittencourt indicam a proximidade dos escravos com a aristocracia na convivência doméstica, um fenômeno analisado por historiadores e sociólogos, sendo uma das bases de sustentação da perspectiva lançada por Gilberto Freyre (1999) sobre a estrutura familiar da sociedade Senhorial Escravista na obra Casa Grande e Senzala28. Segundo Anna Bittencourt, aos sete anos começava o processo educativo dos filhos dos proprietários e mesmo de lavradores com alguma "abastança". Mestres de primeiras letras eram contratados pelos pais para este fim. As Meninas, em algumas famílias, já eram admitidas nesse tipo de aprendizado; em outros casos, eram conduzidas ao aprendizado de trabalhos manuais como rendas, costuras e bordados. A essas atividades de costura eram também conduzidas as pequenas escravas, dando espaço a longas horas de convivência entre sinhazinhas e servas em uma sala da fazenda destinada a essas lições. Por volta dos sete anos, Anna Bittencourt conta que costumava brincar de bonecas "em companhia de negrinhas de minha idade" (BITTENCOURT, 1992, p. 28).

Ao rememorar a partilha dos bens de seu avô e da sua tia, mortos consecutivamente em curto espaço de tempo, a autora é levada a narrar a trágica cena da avaliação dos escravos transcorrida em uma sala da fazenda diante do juiz municipal, do tabelião e dos avaliadores representantes de cada parte interessada na divisão dos bens. Este era um momento de grande aviltamento e humilhação para os escravos, que eram avaliados como mercadoria, como se não fossem "seres dotados de razão e de amor próprio". Como os avaliadores nem sempre concordavam nos preços, seguiam-se muitas vezes comentários desumanos sobre as qualidades e defeitos de cada um deles. A autora conta ainda o desespero de todos nessa ocasião, devido ao temor de serem destinados ao pai de seus primos — que costumava impingir castigos rigorosos aos seus cativos, por influência da mulher que com ele vivia. Após o acerto da divisão, seguiu-se longa cena de tristeza pela separação dos escravos que costumavam viver em mesma propriedade. A própria Anna conta ter derramado lágrimas por ocasião da partida desses escravos, não só "por testemunhar a aflição desses infelizes e de minha mãe, como pela saudade de duas negrinhas, minhas companheiras de folguedos" (BITTENCOURT, 1992, p. 30-31).

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A proximidade de senhores e servos no ambiente doméstico da aristocracia rural não indica a existência de igualdade dentro desses ambientes, muito menos a ausência de violência nessa relação. A antropologia de Gilberto Freyre lança luz sobre a permeabilidade existente entre a Casa Grande e Senzala, como um dos fatores específicos do tipo de dominação escravista exercida pelo colonizador português e seus legatários no Brasil.

A narrativa deste episódio presenciado pela autora vai abrindo espaço para uma reflexão sobre a escravidão. Ao comentar a infelicidade dos escravos por ocasião da sua separação, conta:

Choravam não só os que couberam aos filhos da minha tia Josepha, como os parentes e amigos destes, porque, entre nossos escravos, havia afeições sinceras e espírito de família, o que não se dava com escravos de cativeiro bárbaro, onde os sentimentos naturais pareciam asfixiados pelos maus tratos e humilhações. (BITTENCOURT, 1992, p. 30-31)

Desta narrativa, segue-se uma apreciação do procedimento da sua mãe em relação aos escravos. D. Ana Maria da Anunciação Ribeiro tinha, já naquele período, a convicção de que os escravos possuíam a mesma humanidade que os senhores, e que deveriam ser tratados como semelhantes pelos seus proprietários. Costumava se reunir com as escravas na sala de jantar enquanto estas cosiam e faziam renda. Nestas ocasiões, contava-lhes histórias, quase sempre retiradas da Bíblia. Esta relação de proximidade e indulgência com os cativos era censurada por pessoas da família e por outras senhoras que acreditavam contrariar a posição de respeito que deveria caber a uma matriarca. Ao falar da assertividade com a qual a sua mãe sustentava esta postura, a autora cita duas leituras do período que haviam chegado a sua mãe e que eram por ela comentadas.

Segundo Anna Bittencourt, sua mãe, ao ser questionada sobre o comportamento que adotava junto aos escravos, costumava citar uma frase do livro A Cabana do pai Tomás, de Mistress Stowe: "Tratem-nos como homens, e eles procederão como homens; tratem-nos como cães, e eles procederão como cães" (BITTENCOURT, 1992, p. 32). Esta obra da autora norte-americana Harriet Elizbeth Beecher Stowe (1811-1896) foi inicialmente publicada em capítulos no jornal abolicionista de Washington, National Era, e lançada em livro em 1852. Nela, Mrs. Stowe manifesta o pensamento abolicionista que passou a cultivar, após o contato com escravos fugidos de fazendas próximas da sua, que a conduziu a solidarizar-se com eles. Esta obra e a que se seguiu a ela, A chave para a cabana do Pai Tomás, foram utilizadas pelos combatentes do Norte abolicionista para animar a mobilização na Guerra Civil (1861-1865) que acabou pondo fim ao trabalho escravo nos Estados Unidos (MARIANI BITTENCOURT, 1992, nota 27, p.261).

A mãe de D. Anna inspirava-se também em uma passagem do livro A Educação de Cora. Este livro, escrito pelo Dr. Lino Coutinho (1786-1836), médico e professor da

Faculdade de Medicina29, era composto de cartas dirigidas à preceptora de sua filha Cora, com o objetivo de orientá-la na educação da mesma30. As cartas foram publicadas em livro por um amigo da família em 1849, quando Cora já era mãe, e serviu para divulgar o pensamento de Rousseau na Bahia (MARIANI BITTENCOURT, 1992, nota 28). O livro era citado pela mãe de Anna para sustentar o repúdio que tinha ao comportamento de algumas Senhoras que costumavam ocupar com garbo o papel de carrasco na repreensão de seus escravos, acreditando que assim seriam consideradas "boas e enérgicas donas de casa".

Esses dados sugerem a emergência de valores que cerceavam a violência da escravidão a partir da segunda metade do século XIX. Estes valores se aguçam gradativamente, unidos à ideologia da chegada do século da civilização, consubstanciando a crença na incompatibilidade entre escravidão e modernidade, tornando-a injustificável e sem alicerces morais que pudessem sustentá-la, mesmo entre a classe dos senhores de engenho. Paralelamente, a Lei do Ventre Livre, que determinou a libertação de todas as crianças nascidas de pais escravos a partir de 1871, tornava a abolição uma realidade iminente. Neste contexto, mesmo membros das famílias de proprietários de terras e de escravos estiveram envolvidos em movimentos abolicionistas. Lima Brito (2003) identificou três senhores de engenho como membros da Sociedade Abolicionista 25 de Julho, da cidade de Cachoeira.

Entre os escritores baianos aqui estudados, outros dois pertencem à camada mais abastada, ao modo de Anna Bittencourt, embora não estejam, como ela, ligados à aristocracia rural. Um deles, o português Silva Lima. Nascido em 1826, Silva Lima chegou à Bahia aos quatorze anos de idade, dedicou-se inicialmente ao comércio, depois iniciou os estudos em medicina e tornou-se uma figura muito conceituada na área, não só na atividade clínica, como no ramo de higiene pública, prestando colaborações constantes nos jornais da cidade com artigos sobre assuntos médicos e sanitários.31 Era também um estudioso: segundo Braz do Amaral (1909), produziu um trabalho sobre as "línguas vivas". Formou um grupo experimentalista intitulado Escola Tropicalista Baiana, em colaboração com dois nomes de

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José Lino dos Santos Coutinho (1786-1836) foi também deputado nas Cortes de Lisboa, em 1821, e no Primeiro Império, em duas legislaturas.

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Ao se tornar escritora, a própria Anna Bittencourt iria seguir uma prerrogativa pedagógica similar a que servia de base à obra A Educação de Cora. Os seus romances eram dirigidos ao público feminino, em especial às moças de famílias abastadas, como um guia educativo que prescrevia a manutenção dos valores familiares da sua geração em contraposição ao avanço de novos comportamentos possibilitados pelo contato com as modas estrangeiras do início do século XX, as quais abriam possibilidade à maior exposição da mulher no espaço público.

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Em exemplar do dia 07 de janeiro de 1907 do Jornal de Notícias, em uma coluna da primeira página, intitulada Saúde Pública, onde se lê uma critica ao saneamento da cidade, o Dr. Silva Lima é citado como presidente do conselho sanitário e comunica a ata da reunião do referido conselho. No exemplar deste mesmo jornal do dia 15 de janeiro do mesmo ano, o Dr. J. F. Silva Lima é homenageado pelos seus 81 anos.

destaque na medicina da Bahia fora do âmbito da faculdade, Otto Wucherer e Patterson — o primeiro investigador e publicista, o segundo clínico, apelidado popularmente como doutor inglês. A partir dessa atividade de pesquisa, produziu importantes estudos sobre o Beri-beri, a Febre Amarela, o Ainhum e a Filariose (AMARAL, 1909).

Da sua participação na imprensa cabe destacar o desempenho como um dos fundadores da Gazeta Médica da Bahia, juntamente com seus parceiros Wucherer, Patterson e ainda Pires Caldas e Januário de Farias. Silva Lima assinou o artigo inaugural deste importante órgão de divulgação da produção acadêmica da Faculdade de Medicina da Bahia em 1866 (CARVALHO, 2008).

Em 1907, Silva Lima publicou pelo Jornal de Notícias suas recordações da Bahia de tempos imperiais sob o título A Bahia de Há 66 Anos: reminiscências de um contemporâneo, segundo o autor sob "reiteradas solicitações de um dos principais diretores do Jornal de Notícias" (LIMA, 1907). Um dos aspectos definidores da vida cotidiana da cidade registrados pelo médico Silva Lima é o emprego dos escravos como meio de transporte praticamente exclusivo: de passageiros a todos os tipos de cargas, de alimentos a dejetos, toda locomoção se fazia pelos braços e ombros de escravos. Voltaremos a esta questão adiante, quando tratarmos da caracterização da vida urbana no Império, como ponto de partida para uma reflexão e compreensão da modernidade, por estes autores.

Voltando ao cerne da argumentação — ou seja, a difusão de valores abolicionistas como temática compartilhada que favorece o encontro dos escritores, constituindo um solo comum sobre o qual se assenta o reconhecimento mútuo da intelectualidade em finais do século XIX — cabe observar o modo como Silva Lima aborda os maus tratos e a exploração exacerbada dos escravos, avaliando-os como um aspecto sombrio da experiência passada, a qual ainda não ia longe, mas era já compreendida com estranheza. Menos de vinte anos havia se passado desde o fim da escravidão, no entanto o suplício impingido a um semelhante submetido ao cativeiro é narrado com aversão como que a uma prática alienígena, fora da esfera comum:

Abstenho-me de mencionar aqui os bárbaros castigos do tronco, na cidade, e do carro e vira-mundo, nos engenhos e fazendas, com que eram cruelmente punidos os escravos, poupando a mim o desgosto de referir, e ao leitor moderno a repugnância de conhecer os horrores da escravidão, que tão profundamente aviltou o trabalho, corrompeu os costumes e a moral nas famílias, e até a própria linguagem, deixando na nossa história uma nódoa negra que jamais apagarão a esponja do tempo e a reabilitação social no presente século e nos que se lhe seguirem. Afastemos da nossa vista esse quadro sombrio de iniquidades, de misérias, e de crimes de lesa- humanidade. (LIMA, 1907 p. 105)

Analisando a estranheza com a qual é abordada a escravidão, o autor se recusa a descrever os "bárbaros castigos" pelo desgosto que lhe proporciona a simples referência aos mesmos, como também para poupar o "leitor moderno" de conhecê-los. Em 1907, o leitor brasileiro que não conhecesse os "horrores da escravidão" teria que possuir menos de 19 anos, pertencendo a uma faixa etária que não devia ser majoritária entre os leitores do Jornal de Notícias interessados nas memórias de Silva Lima. A abolição e o trabalho livre são causas de uma intelectualidade com olhos no futuro; constituem uma parte importante do próprio discurso de modernidade que se teceu a partir da segunda metade do século XIX. Nesse texto do início do século XX, sobressai a associação entre a escravidão, seus horrores e o passado indesejável que se deixa para trás com pudor.

Da senhora de engenho versada em Literatura abolicionista que animou os combatentes do Norte na guerra civil americana, ao sapateiro Manuel Roque que desempenhou com diligência o encargo de Tesoureiro da Sociedade Libertadora Baiana, todas as camadas sociais foram tocadas pela abolição — provavelmente a primeira questão pública brasileira, considerando que a Independência tocava de perto as elites produtoras, mas não representava mudanças amplas no modo de vida da população32.

A abolição teve os seus porta-vozes em vários setores sociais; nem todos eram letrados, a exemplo dos chamados "oradores do povo". Uma das crônicas de Manuel Querino, publicada em 23 de setembro 1913 no Jornal de Notícias, compondo a série A Bahia de Outrora (e posteriormente o livro, correspondendo ao 36º capítulo deste), foi dedicada a estes personagens urbanos: tipos populares como o sapateiro Marcelino e o operário Roque Jacinto da Cruz, que, mesmo não tendo acesso à educação formal e sem saber ler ou escrever, desenvolviam grande capacidade como oradores autodidatas, frequentando os debates do corpo legislativo provincial e os sermões das Igrejas. Estes oradores costumavam discursar ao lado de representantes políticos em eventos cívicos e tiveram participação nos movimentos abolicionistas e republicanos.

Os lugares que cada um desses representantes ocupa é outra questão a ser vista. Evidentemente, os oradores do povo — com a sua desenvoltura voltada apenas para a oratória— não possuíam o mesmo prestígio que os abolicionistas recrutados entre os

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Ao pontuarmos a adesão a valores abolicionistas por parte de intelectuais egressos de famílias proprietárias de escravos não estamos supondo uma adesão simultânea ao igualitarismo democrático e à luta contra o racismo. Apenas destacamos a abrangência desta causa como questão pública, para a qual convergiam projetos políticos diversos.

Bacharéis e Doutores. Wlamyra Albuquerque (2009) aborda as formas de atuação dos brasileiros de cor e dos libertos africanos33 no movimento abolicionista: todos pertenciam às classes populares, embora nem todos fossem analfabetos desprovidos de quaisquer fatores de distinção e inserção social, como é o caso de Manuel Querino, que adquirira destaque através dos estudos e possuía excelentes vínculos societários, como a relação com o Cons. Pinto de Souza Dantas e a honraria de pertencer ao Instituto Geográfico Histórico da Bahia.

Devido à possibilidade de transitar entre variados meios sociais, os brasileiros de cor e os africanos livres tinham um papel importante na divulgação dos ideais abolicionistas entre os "incultos", na visão de dirigentes egressos das elites econômicas, como o Dr. Luís Anselmo da Fonseca. Mas a sua atuação não se restringia a essa função proselitista: através, por exemplo, da Sociedade Libertadora da Bahia — da qual foram integrantes o sapateiro Manuel Roque e o então artista, professor de desenho e líder operário Manuel Querino —, os homens de cor tiveram forte influência sobre o movimento, permitindo o exercício de estratégias diferenciadas, como a organização de fugas e o acoitamento de escravos.

Além de ideais de liberdade, vários interesses estiveram em jogo no rompimento da ordem senhorial-escravista. O fim da escravidão não representava simplesmente a libertação dos escravos e a adoção do trabalho assalariado, mas a reconstrução da sociedade brasileira, principalmente em suas bases hierárquicas, implicando a discussão sobre o papel que os africanos e seus descendentes iriam ocupar na sociedade. Ao mesmo tempo, era preciso retirar esta mácula da história da nação brasileira, que então reivindicava o seu espaço no rol das nações civilizadas. Nesse contexto, situa-se a preocupação da aristocrata Anna Bittencourt em relacionar a sua memória familiar aos valores humanistas de indulgência para com os escravos, assim como o embaraço do médico Silva Lima em relatar os castigos aos escravos, em suas memórias.

Deste modo, a abolição e o nacionalismo — a construção da nação e a formação de um povo apto a exercer o seu papel dentro dos meandros burocráticos — eram chamarizes da esfera pública — em outras palavras, constituíam questões inescapáveis das quais um pretendente a escritor, político, poeta ou jornalista não poderia jamais se esquivar. O abolicionismo como credencial para a dinâmica das letras na Bahia é também perceptível na biografia de Xavier Marques, intelectual egresso da classe média que chega à capital do

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Albuquerque (2009) menciona a associação entre abolicionistas da Sociedade Libertadora da Bahia e libertos africanos — africanos importados ilegalmente, chegados ao Brasil depois da lei de 1831 — na organização de fugas e no acoitamento de escravos, como parte das variadas estratégias desempenhadas pelo movimento abolicionista.

Estado em 1882 e começa a escrever nos jornais em 1885, no auge do movimento