2.3.1
As cidades da Idade Média eram caracterizadas pela sua continuidade, densidade urbana elevada, multifuncionalidade e diversidade de espaços e vivências, refl eti-
dos no desenho da malha urbana. Na visão de Jacques Le Goff,52 as cidades me-
dievais tinham a sua população renovada a cada duas gerações, o que signifi cava também a renovação da imagem das próprias cidades. Desta maneira, não se gerava 51 Secca Ruivo, Inês, Design para o futuro. O indivíduo entre o artifício e a natureza, Tese de Doutoramento, Unver-
sidade de Aveiro, 2008, p. 162.
tanto apego aos equipamentos e estruturas construídas sendo elas objeto de uma intervenção constante.
Até ao início do século XIX, as limitações dos transportes locais e regionais res- tringiram o crescimento das cidades. É com a Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX, que surgem novos padrões de mobilidade e vericando-se pela primeira vez grandes confl itos no espaço urbano, devido ao grande êxodo
rural para as cidades. Com a entrada do século XX surge “…a era das metrópoles”,53 a
cidade passa a ser vista de uma forma mais atenta pela sociedade, como um todo: assiste-se ao retorno aos espaços públicos como elementos centrais dos projetos
urbanos.54
A morfologia de cada cidade infl uencia diretamente a forma e o desenho do seu equipamento, modifi cando-se como consequência das dinâmicas sociais repercu- tidas na construção do espaço urbano.
O perceber este processo envolve questões relativas à leitura dos espaços, quer em termos físicos mensuráveis, que compõem a forma urbana, quer em termos de maior complexidade, aspetos que envolvem a percepção e a cognição humanas através da utilização dos sentidos.
Para compreendermos uma urbe e os seus equipamentos, necessitamos de consi- derar, não apenas a cidade em si, mas o modo como os habitantes a percepcionam.
53 Choay, Françoise, O Urbanismo: utopias e realidades, uma antologia, 1965 p. 1. Já o século XX pode ser conside- rado “a era das metrópoles”, quando estas atingem números de população nunca antes imaginados, ultrapassando até os dez milhões de habitantes. A metrópole, ainda conforme Choay, é um produto da sociedade industrial, que tem o urbano, a ci- dade como seu horizonte. Daí surgiram as “conurbações”, as cidades industriais, os grandes conjuntos habitacionais.
54 Castro, Alexandra, Espaços Públicos, Coexistência Social e Civilidade – Contributos para uma Refl exão sobre os Espaços Públicos Urbanos, 2002, p. 56.
A cidade é um cenário cheio de informações. A percepção do utilizador é es-
sencialmente visual,55 resultado da interação entre as representações sociais56 e o
local onde estas ocorrem,57 acrescido da infl uência do ambiente que o envolve.58
Qualquer lugar deve ser visto como um todo social, biológico e físico. Para isto acontecer existem diversas formas de apreensão e análise dos espaços urbanos com diferentes abordagens e metodologias. No entanto, há que ter em conta que todas
elas procuram entender o todo a partir do estudo das partes.59
Isabel Cotrim,60 por sua vez, refere que o espaço público é “composto, ordenado e man-
tido” em torno do uso do E.U. e da sua percepção social, o que signifi ca que é con- cebido como um todo e abrangendo todos os elementos que o constituem (desde o tratamento do solo, a envolvente arquitectónica, o próprio equipamento, até à arborização).
Numa outra visão da percepção da cidade, Maria Elaine Kohlsdorf,61 considera
que os marcos temporais mostram o processo evolutivo das intervenções urba- nas, os geográfi cos consideram as transformações do sítio e, por fi m, os culturais
55 “As imagens do meio ambiente são o resultado de um processo bilateral entre o observador e o meio. O meio ambiente sugere distinções e relações,
e o observador – com grande adaptação e à luz dos seus objetivos próprios – selecciona, organiza e dota de sentido aquilo que vê. A imagem, agora assim desenvolvida, limita e dá ênfase ao que é visto, enquanto a própria imagem é posta à prova contra a capacidade de registo percetual, num processo de constante interação. Assim, a imagem de uma dada realidade pode variar signifi cativamente entre diferentes observadores.” (Lynch,
Kevin, The Image of the City, 1960, p. 16).
56 A Teoria das Representações Sociais, preconizada pelo psicólogo social Serge Moscovici, na obra intitulada A representação social da psicanálise preocupa-se fundamentalmente com a inter-relação entre sujeito e objeto e como se dá o processo de construção do conhecimento, ao mesmo tempo individual e coletivo na construção das Representações Sociais, um conhecimento de senso comum. Moscovici, S. A representação social da psicanálise. Tradução de Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
57 Nojima, Vera Lúcia, Linguagens e Leitura do Design Urbano: caracterização da identidade dos lugares, 1999, pp. 25-40.
58 Carr, Stephen, et al., Public Space, 1995, p. 400. 59 Lynch, Kevin, A Theory of Good City Form, 1985, p. 43.
60 Cotrim, Isabel, Martins,Ana Solange, Do projecto ao objecto : manual de boas práticas de mobiliário urbano em centros históricos, 2005.
61 Kohlsdorf, Maria Elaine, A apreensão da forma da cidade, 1996, p. 21. A autora explica, no seu método de Apreen- são da forma da Cidade, a melhor forma de entender a cidade. O método parte da observação morfológica, das formas físicas da cidade através das suas relações sócio-espaciais por meio da perceção, sendo um importante registo para um inventário espacial.
associam-se à identidade urbana. Este tríade defi ne a necessidade da história, do conhecimento físico-territorial e das características da sociedade para compreen- der a cidade em si.
Na perspetiva de Gordon Cullen,62 o conceito de cidade vai além da percepção vi-
sual por parte dos cidadãos. Do seu ponto de vista, a urbe ultrapassa o bem-estar e as facilidades que levam a maioria das pessoas a preferirem – independentemente de outras razões – viver em comunidade ao invés de no isolamento. Segundo o autor:
“ O objeto mais móvel numa cidade é o ser humano e, po razões possivel-
mente diferentes, ele próprio necessita de poder ancorar-se nas várias activi-
dades exteriores, comerciais, recriativas e sociais. Prever unicamente espaços
livres de modo a que estas actividades possam simplesmente existir não é em
si suficiente. O espaço livre como elemento de uma cidade é essencial, mas
necessita também desse povoado com objetos de modo a separar os fluxos
dissociados de pessoas em grupos.”
63Sendo assim, o papel que o espaço público desempenha, bem como o conteúdo e
a interação social que nele se encontra, na opinião de Gloria Levitas,64
variam con- soante a classe,o grupo étnico, a idade e as estruturas. Por outro lado, no parecer
de Nan Ellin,65 o aumento da divisão das atividades sociais contribuiu para a des-
locação dessas mesmas da rua, para o interior dos edifícios, tornando a sociedade atual uma sociedade mais individualista. Sintetizando estas ideias, o espaço públi- co urbano tem por objetivo a promoção da interação entre os cidadãos e as suas
62 Cullen, Gordon, Paisagem urbana, 1983, p.9-10, p.106. 63 Ibid.
64 Levitas, Gloria, Anthropology and sociology of streets in Stanford Anderson, 1986, p.225-240. 65 Ellin, Nan, Postmodern Urbanism, 1996.
estruturas, de maneira a criar uma sociedade mais participante, dinamizadora e conhecedora das suas próprias características culturais e históricas. Na continuação desta refl exão, as zonas principais da urbe devem-se assumir como importantes
centros de interação propiciando a oportunidade das pessoas interagirem.66
A melhoria da qualidade de vida dos utentes da urbe torna-se uma obrigação cívi- ca para todos os que a pensam e usufruem. “As cidades na sua grande maioria, não corres- pondem às reais necessidades da sua população.”67 As cidades levam por vezes séculos a serem
construídas. As “vilas e as cidades continuam a ser desenhadas a pensar no homem médio”,68 desta
forma torna-se indispensável perceber e conhecer bem a situação no terreno, quer a física quer a social, como forma de propor novas soluções, mais adequadas.
Paula Teles indica-nos as possíveis causas de exclusão, como sejam o envelheci- mento ou a mobilidade reduzida, que naturalmente comportarão novas exigên- cias. Estas perspetivas de exclusão de acessibilidade, e mais ainda de mobilidade, tornam-se grandes desafi os no planeamento da cidade. Como a autora refere: “a cidade não pode ter limites de mobilidade”.69
Torna-se então importante desenhar o espaço público com qualidade, que seja acessível a todos, independentemente da idade, capacidades físicas, etnia ou esta-
tuto social. Jane Jacobs70 enumera alguns objetivos para a construção de um espaço
público de qualidade:
66 Tibbalds, Francis, Making people-friendly towns. Improving the public environment in towns and cities, 1992. 67 Teles, Paula, Caderno de Adesão 2005/2006 da Rede Nacional de Cidades e Vilas com Mobilidade para Todos,
2005, p.27. 68 Ibid. 69 Ibid.
70 Jacobs,Jane, The death and life of great American cities, 1962. A autora no seu livro, questiona o desenvolvimento do pla- neamento urbano e os princípios de (re)urbanização em contrapartida às questões de natureza sócioeco- nómicas. O planeamento urbano e de (re)urbanização de uma determinada cidade não é fácil. Requer, na perspe- tiva da autora, uma análise macro e micro-urbana detalhada, na procura da perceção de como funciona a cidade e das necessidades mais urgentes da população.
“A vivência; a identidade e o controle; o acesso a oportunidades, imaginação
e distração; a autenticidade e significado; a vida pública e comunitária; a
autoconfiança urbana; e o bom ambiente para todos.”
Em suma, poderemos dizer que para o design de E.U. ir cada vez mais ao encontro das necessidades dos utentes que o usam no dia-a-dia, há que perceber como cada utente-tipo se relaciona com esse espaço e analisar as mudanças culturais e da vida urbana que os mesmos promovem individual ou coletivamente, pois serão essas mudanças que gerarão novos espaços de necessidades. Desta forma, dever-se-á in- centivar o processo de desenho do espaço público inclusivo com o propósito de facultar a cidade a todos.