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5 O PAPEL DO PSICÓLOGO NA EXECUÇÃO DA PSC

5.1 A prática psicológica no cotidiano de trabalho

É importante caracterizar a dinâmica que envolve o trabalho dos psicólogos nas Ceapas. É sabido que a intervenção da equipe técnica, em articulação com o Juízo da Execução e dos Juizados Especiais Criminais está inserida em um contexto de política criminal e penitenciária, voltada para a prevenção criminal, sendo o seu resultado dirigido para a fiel aplicação de uma pena ou medida alternativa em execução.

Após a aplicação da pena ou medida alternativa pelos agentes do sistema de justiça criminal, cabe à equipe de monitoramento técnico-penal cadastrar e capacitar as entidades parceiras para o credenciamento da rede social do sistema de monitoramento da pena e medida alternativa daquela jurisdição. Durante a realização da pesquisa, foram entrevistados todos os psicólogos que atuam na execução da PSC no Estado de Pernambuco e, no relato deles, a equipe básica das Ceapas abarca um profissional de Psicologia e um profissional de Serviço Social. Já as entidades parceiras, que compõem a rede social, são compostas por instituições públicas e organizações sociais de interesse público.

Após o julgamento do processo criminal, inicia-se a fase de execução penal propriamente dita. Nos juizados especiais criminais, é realizada uma avaliação pela equipe técnica, que pode ocorrer antes ou durante a audiência. Quando se trata de situações de baixa1 e média complexidade2, o parecer psicossocial é suficiente para garantir a segurança do monitoramento técnico-penal. No entanto, quando a situação é de alta complexidade3, a equipe sugere, formalmente, uma avaliação psiquiátrica. Concluída a avaliação e resguardados os sigilos profissionais, a equipe registra um sumário psicossocial como uma “súmula ou parecer nos autos do processo” (ALENCAR, 2009, p. 71), contendo a indicação do local de cumprimento da PSC mais adequado para receber aquele cumpridor. Tal entidade é consultada previamente pela equipe técnica para o devido conhecimento e providências.

Na homologação da pena pelo juiz incluem-se as condições em que a pena ou medida alternativa, nesse caso a PSC, será cumprida, como por exemplo, o local de cumprimento e as horas para cumprir. Após o encaminhamento do cumpridor para a entidade, inicia-se o monitoramento do cumprimento e o acompanhamento da execução. Durante o acompanhamento, a equipe de monitoramento técnico penal interage com as situações vividas

1

A baixa complexidade se enquadra nos quadros tipificados como “baixo potencial ofensivo” (ALENCAR, 2009).

2

A média complexidade é caracterizada, geralmente pelos tipos penais previstos na Lei 9.714/98 (ALENCAR, 2009).

3

A alta complexidade resulta de um problema de saúde física ou mental, a exemplo da dependência química ou da psicose, psicopatia ou perversão social (ALENCAR, 2009).

pelo cumpridor, estabelecendo um contato permanente entre o juíz e a entidade parceira, através de visitas, reuniões, entrevistas. As entidades parceiras, por sua vez, emitem relatórios e preenchem as fichas de frequência, através de instrumentos de trabalho a serem formalizados nos processos. Concluído o tempo de cumprimento da Prestação de Serviços à Comunidade, é extinta a punibilidade e o processo é arquivado.

Assim, de acordo com o Relatório de Gestão do ano de 2012, da Gerência de Penas Alternativas e Integração Social (GEPAIS), as atividades essenciais da equipe interdisciplinar da CEAPA consistem em avaliação, capacitação e monitoramento permanente dos cumpridores de medidas e penas restritivas de direito, nos termos da legislação específica; bem como articulação, construção e consolidação da rede de apoio local junto às entidades parceiras da sociedade civil organizada e dos órgãos municipais, estaduais e federais.

Esse processo de interação entre o sistema jurídico, as entidades parceiras e o cumpridor é caracterizado por alguns entrevistados como de importância crucial no trabalho do psicólogo junto à PSC.

“A gente tá sempre em contato com o jurisdicional, serve muito como uma ponte entre o cumpridor e o jurídico [...] e tá aí para dar aquela contribuição ao judiciário, inclusive também durante o próprio acompanhamento em si [...]” (Sujeito 2).

“Eu acho imprescindível o psicólogo porque ele vai pontuar questões que a Justiça não percebe em relação ao cumpridor e ao acompanhamento das penas alternativas também. Eu acho que o Judiciário sozinho não consegue. Então é isso, o psicólogo trabalha fazendo essa ligação entre a Justiça, o cumpridor e a instituição” (Sujeito 8).

Os trechos acima descrevem a atuação do profissional de psicologia como uma prática que propicia a interlocução dos saberes da Psicologia e o Direito na execução da PSC, articulando o exercício da subjetividade e a necessidade de objetividade do Estado; nota-se a atribuição destinada à Psicologia de fazer a mediação entre o cumpridor e o Judiciário. Nesses trechos, apreende-se que a Psicologia é compreendida como mediadora, “uma ponte”, entre o Estado e o sujeito.

Observou-se também nos relatos dos entrevistados, quando falaram das atribuições do psicólogo enquanto agente executor da PSC, descrições sobre o procedimento de levantar e traçar o perfil dos cumpridores. Tais práticas têm relação com a história da Psicologia Jurídica cuja principal função era a formulação de laudos periciais focados na realização de diagnóstico e na utilização de testes psicológicos, que auxiliavam a instituição judiciária na

tomada de decisão. Os psicólogos nesses casos são instados pelo judiciário a emitir pareceres e laudos técnicos sobre o perfil psicológico dos sujeitos.

[...] a gente faz todo um estudo, toda uma avaliação na entrevista, né... usando o instrumental da entrevista mas aí a gente faz toda uma análise, prepara um parecer, um relatório né... de forma geral, também não é nada minucioso né... mas assim, dando uma visão mais abrangente a respeito daquele cumpridor solicitando, é... a partir do perfil traçado, que medida caberia mais para aquele cumpridor e aí a gente leva o relatório e o juiz na audiência lê e cabe a ele seguir ou não [...] (Sujeito 3).

[...] durante a entrevista a gente pega o perfil dele, a gente procura saber o que ele sabe fazer, o que interessa a ele, o que ele gosta para que ele possa encontrar uma instituição com esse perfil também, que possa dar a essa pessoa um sentido diferente no trabalho [...] (Sujeito 7).

Para que existem os técnicos? É exatamente para que a gente possa formar um perfil, estabelecer um perfil deste cumpridor e está inserindo ele tanto na PP quanto na PSC [...] (Sujeito 9).

Nesses discursos, a elaboração de relatórios psicológicos4 é apresentada como uma característica do cotidiano de trabalho dos psicólogos entrevistados. Os entrevistados posicionam o psicólogo como um técnico que a partir da entrevista com o cumpridor e mediante a utilização de instrumentos psicológicos, elabora um relatório que embasará a decisão do juiz.

[...] “a gente procura saber o que ele sabe fazer, o que interessa a ele, o que ele gosta para que ele possa encontrar uma instituição com esse perfil também”. Observa-se que nesse trecho supracitado a fala do sujeito é organizada de forma que as características pessoais e as habilidades do cumpridor são levadas em conta na sugestão da instituição que este irá prestar serviços. Assim, o psicólogo surge como o profissional que leva em conta a demanda do sujeito paralelamente à demanda judicial. No entanto, nos outros discursos (Sujeito 3 e Sujeito 9) o profissional de psicologia aparece como aquele que realiza um estudo mais objetivo, “técnico”, do perfil do apenado.

4 De acordo com a Resolução CFP n° 007/2003, que institui o Manual de Elaboração de Documentos Decorrentes de Avaliação Psicológica, o relatório ou laudo psicológico é uma apresentação descritiva acerca de situações e/ou condições psicológicas e suas determinações históricas, sociais, políticas e culturais, pesquisadas no processo de avaliação psicológica. Como todo DOCUMENTO, deve ser subsidiado em dados colhidos e analisados, à luz de um instrumental técnico (entrevistas, dinâmicas, testes psicológicos, observação, exame psíquico, intervenção verbal), consubstanciado em referencial técnico-filosófico e científico adotado pelo psicólogo.

Se a intervenção do psicólogo objetiva “a análise do perfil” (BRASIL, 2002, p. 10) do cumpridor e a adequação da pena às aptidões deste, abre-se espaço para questionar a atuação do psicólogo junto à PSC. Para alguns autores, nesse contexto, o profissional de psicologia sai do lugar de emitir laudos e pareceres e passa a vigiar a punição. Seguindo esse raciocínio é importante trazer o questionamento trazido por Deleuze (1992) de que “pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados” (p. 219).

Conforme mencionaram os entrevistados, no caso de haver descumprimento da pena, são realizadas intervenções como visitas domiciliares, institucionais, atendimentos à família, com o intuito de que o cumpridor retorne à prestação de serviços. Caso o descumprimento continue, o juiz é informado acerca da situação. Alguns entrevistados enfatizaram a importância do acompanhamento atento que permita efetivar o cumprimento da pena.

“O que é importante: as Penas Alternativas não são difíceis de serem cumpridas, mas você precisa tá diretamente junto à rede social. Então, o monitoramento na rede social, se ele não for bem feito, isso dificulta e muito a aplicação das penas [...]” (sujeito 9).

“[...] e aí faz o encaminhamento pra entidade que se adequa ao perfil daquele cumpridor e aí fica acompanhando pra ver se esse cumpridor realmente tá cumprindo efetivamente a medida e se é preciso ser encaminhado para outros serviços né... se ele precisa ser acompanhado de outras formas” (Sujeito 10).

Os entrevistados pontuaram que as visitas às instituições parceiras objetivam o acompanhamento e monitoramento da pena. O Sujeito 9 destaca que “o monitoramento na rede social, se ele não for bem feito, isso dificulta e muito a aplicação das penas”, o sucesso no fiel cumprimento da PSC estaria atrelado ao constante monitoramento junto à rede parceira, para tanto, são necessárias visitas constantes a essas instituições. Esse monitoramento meticuloso fica evidente no Relatório de Gestão do ano de 2012 (gráfico 2) produzido pela Gepais em que se apresenta o quantitativo de visitas institucionais, bem como de visitas domiciliares.

Fonte: Centrais de Apoio às Penas e Medidas Alternativas (2012)

Alguns autores argumentam que o trabalho desempenhado pelo psicólogo no contexto de Penas Alternativas está pautado no regime de vigilância e de fiscalização. “Liberdade vigiada” é o termo utilizado por Flores (2009, p. 95) para caracterizar essa proposta de trabalho em que, caso haja o descumprimento, cabe ao psicólogo motivar o cumpridor e lembra-lo de que o benefício da pena alternativa pode ser revogado, convertido em pena privativa de liberdade. O autor pontua ainda que na medida em que o profissional tem que repassar ao juiz as informações sobre o cumprimento ou não da pena, subordina-se ao poder do Juiz, e insere-se numa “matriz policialesca” (p.96).

O elevado número de visitas institucionais apontado no gráfico acima evidencia essa atividade de fiscalização e monitoramento constante do psicólogo e essa atividade é apresentada por alguns entrevistados como de suma importância.

“Eu acho de extrema importância, primeiro, quando ele vem todo mês trazer a, a frequência da escola a gente faz outra entrevista... é tipo outra entrevista, então esse acompanhamento tá assegurando que ele não está só, que é uma, uma forma de não descumprir, né, a, a prestação de serviço. E, o acompanhamento na... na própria entidade quando, muitas vezes a gente vai quando ele tá no horário de trabalho que é pra verificar se ele tá lá, a gente procura saber não só da entidade, mas também do cumpridor se ele tá, como é que se está aqui nessa instituição, se tá sendo, tá tendo algum tipo de

preconceito, se tá sendo maltratado de alguma forma, ou tá sendo muito explorado, entendeu, você foi encaminhado pra função que foi determinada. Então é muito próximo esse acompanhamento, então na execução da, da pena alternativa eu acho que a importância é de tá perto, sabe, de tá acompanhando de perto, tanto com a instituição como com o cumpridor” (Sujeito 5).

“[...] eu vejo a importância de forma geral, de acompanhar, de monitorar, de orientar, de aconselhar, de procurar uma melhora para aquele cumpridor, saber entender as razões da infração dele e ver se a gente pode melhorar ou ajudá-lo a não reincidir ou a evitar outra [...]” (Sujeito 8).

O Sujeito 5 representa esse acompanhamento desenvolvido pelo psicólogo (e pela equipe técnica) como um procedimento que objetiva verificar se o sujeito está cumprindo ou não a pena ou medida alternativa. Ou seja, que procura verificar se o sujeito está cumprindo as determinações do Estado. Posiciona o psicólogo, assim, como um agente do Estado, como alguém a serviço dos interesses do Estado. Por outro lado, em outro momento, também posiciona o psicólogo como alguém que se preocupa com o cumpridor, que quer saber se ele está sofrendo algum tipo “preconceito”, se ele está sendo “maltratado”, “explorado”. O sujeito 8, por sua vez, representa o monitoramento como um procedimento cujo principal benefício seria evitar que o cumpridor da pena possa reincidir. Para atingir esse objetivo, o psicólogo deve “entender as razões da infração”, penetrar na subjetividade do apenado para melhorá-lo como cidadão.

De acordo com o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2009), o verbo monitorar refere-se a “acompanhar, para consideração (informações fornecidas por instrumentos técnicos); monitorizar. / Dirigir ou submeter a controle através de monitor(es); monitorizar” (p. 562). Apesar dos entrevistados não utilizarem explicitamente o termo controle, a prática desses profissionais no contexto da PSC é representada como uma prática de controle. Ao falarem sobre o seu papel no contexto da PSC dessa forma, eles reproduzem o que a própria instituição CENAPA (Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas) prescreve, no ano de 2002, para a equipe técnica da qual o psicólogo faz parte.

“A Metodologia de Apoio Técnico é composta da concepção do monitoramento e envolve três módulos consecutivos de procedimentos técnicos:

• avaliação, corresponde ao procedimento técnico que faz a análise do perfil do beneficiário e da entidade parceira.

• encaminhamento, corresponde ao procedimento técnico que assegura a relação formal entre o juízo da execução, o beneficiário e a entidade parceira.

• acompanhamento, corresponde ao procedimento técnico que garante a fiscalização do fiel cumprimento da pena ou medida alternativa” (p.10). Desse modo, o monitoramento é uma cobrança que faz parte do trabalho de execução da PSC, cabendo ao profissional da equipe técnica, nesse caso o psicólogo ou o assistente social. É fundamental que se faça uma reflexão profunda sobre os efeitos da atuação desses profissionais no contexto das penas alternativas para que o trabalho do psicólogo não se restrinja a práticas burocráticas e a atividades de mera vigilância.

Cabe pontuar que as práticas psicológicas nesse contexto (e em todos de uma forma geral) devem ser pautadas numa ideologia ética e social, na potencialização da construção de diversos caminhos para este cumpridor, frisando a importância da (re) inserção do indivíduo em diferentes redes sociais.

Coimbra (2010) aponta que o desafio da Psicologia no âmbito Jurídico talvez seja o de

“encontrar formas de atuação baseadas em um paradigma ético-político que afirme subjetividades críticas de sua realidade, com algum grau de autonomia perante suas vidas, condição que historicamente lhes vem sendo retirada” (p. 44).

Ao passo em que o ideário das Penas Alternativas está atrelado à minimização dos efeitos da prisão, a uma nova possibilidade de construir caminhos, de reintegrar ao convívio social, faz-se necessário refletir sobre que práticas estão sendo efetuadas e se elas não estão simplesmente reproduzindo procedimentos que aprisionam e que vigiam. A nós, psicólogos, cabe o dever de perceber e refletir sobre essas formas de atuação e questionar, incessantemente, o nosso lugar e, numa postura ética, refletir sobre os efeitos e repercussões da nossa prática. O questionamento deve ser constante.