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5 O PAPEL DO PSICÓLOGO NA EXECUÇÃO DA PSC

5.3 Relação com outros profissionais

5.3.1 Com o Assistente Social

É sabido que a Psicologia Jurídica tem-se dedicado a estudar e a trabalhar com as questões psicológicas relacionadas à prática legal, levando-se em consideração os fatores psicológicos envolvidos em determinada situação judicial. No caso da atuação do psicólogo junto às Penas Alternativas, de acordo com o que foi visto nas entrevistas, essa prática é exercida juntamente com a participação de outros profissionais, como do Direito e, em especial, do Serviço Social.

Nos discursos de alguns sujeitos entrevistados, foram verificados repertórios diferentes quanto à relação no trabalho de execução da PSC com outros profissionais. Por um lado, verificou-se uma visão dicotômica no que se refere à atuação do profissional de Psicologia juntamente com o profissional de Serviço Social. Por outro, a relação de trabalho com os assistentes sociais foi caracterizada como uma prática inter e multidisciplinar. Esses conceitos serão discutidos posteriormente.

Percebeu-se no discurso de apenas um dos sujeitos entrevistados uma preocupação excessiva em delimitar e separar o que seria atribuição da psicologia e o que seria atribuição do psicólogo.

“Geralmente, sempre é com ela (assistente social), então a visita às instituições quando não precisa a minha pessoa ir, quem vai é ela, contato com as outras, quem tem é ela, é sempre 50% de cada. Quando é uma entrevista, que a gente faz entrevista em conjunto, né... é regra da instituição, das Ceapas fazer essas entrevistas juntas para que eu tenha uma visão social e ela uma visão psicológica, mas ela não interfere na minha, nem eu interfiro na dela. Mas quando eu preciso ter um atendimento só, aí eu peço para que ela se retire e me aprofundo mais no atendimento psicológico” (Sujeito 4).

O sujeito estabelece claramente o que cabe ao Serviço Social. A demanda pessoal, singular apontada pelo cumpridor será abarcada pelo psicólogo, enquanto que a demanda junto às instituições, à comunidade será abrangida pelo assistente social, como se fosse possível dissociar o social do psicológico. Apreende-se que o discurso do entrevistado e o modo como ele coloca a atuação do psicólogo e do assistente social fazem parte de uma construção discursiva com objetivos mais ou menos visíveis e, consequentemente, criam as

diferenças entre estes saberes, posicionando o que é “atribuição” de um e de outro profissional.

Assim, fica claro o limite de atuação entre os profissionais, onde cada um tem seu campo de trabalho específico, não podendo o assistente social “interferir” no aspecto psicológico em questão, nem o psicólogo adentrar em searas mais voltadas ao aspecto social.

É interessante destacar que em outro momento da entrevista o mesmo sujeito procura aproximar o trabalho da Psicologia e do Serviço Social, a atuação dos profissionais ocorreria de forma conjunta, respeitando as limitações éticas de cada área.

“Eu trabalho diretamente com a assistente social, sou eu e ela. A equipe é formada no interior por dois técnicos, tanto o psicólogo quanto o assistente social. Então a gente entrevista psicossocial, é tudo feito com o psicólogo e com o assistente social. Nada é feito individual, a não ser que seja um caso a parte, que eu precise aprofundar na minha área, aí sim, mas raramente isso acontece” (Sujeito 4).

O termo “entrevista psicossocial” também é utilizado, de acordo com o Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas do ano de 2002, como modelo de instrumento de trabalho do apoio técnico na avaliação do cumpridor. É importante mencionar que este roteiro baseia a entrevista psicossocial, discriminando como social tópicos de composição e renda familiar, situação habitacional, relacionamento sócio-comunitário, religião, saúde, percepção quanto ao delito, dificuldades e expectativas para o cumprimento da pena. No tópico atribuído à Psicologia tem-se a história de vida, relações interpessoais, fatos marcantes na vida, caso de violência doméstica, função cognitiva, saúde mental, uso de álcool e outras drogas, indícios de transtornos mentais, características da personalidade, avaliação de interesse, auto-estima, expectativa quanto ao futuro, comportamento manifesto e necessidades de tratamento. Por fim, apesar de a entrevista ser realizada conjuntamente, há espaço específico para um parecer social e para um parecer psicológico, separadamente.

Essa relação entre os profissionais que atuam na execução de Penas e Medidas Alternativas nos leva a repensar sobre as possibilidades de atuação que permitam uma melhor intervenção entre os saberes. A partir da demanda solicitada e da complexidade do trabalho de cada profissional, pode-se fazer referência ao conceito de atuação multidisciplinar e interdisciplinar, as duas formas mencionadas pelos sujeitos dessa pesquisa.

A multidisciplinaridade, ou multiprofissionalidade, de acordo com Japiassu apud Mourão (1997) pode ser identificada junto aos profissionais de diferentes áreas que atuam

isoladamente, em geral, sem cooperação e trocas de informações entre si. Partindo desse entendimento, apreende-se que na atuação dos profissionais das Ceapas, tendo em vista a entrevista psicossocial e o fato de as intervenções serem realizadas conjuntamente, a intervenção não pode ser considerada apenas multidisciplinar, uma vez que “quando se fala de multidisciplinar, estamos falando de apenas uma justaposição dos recursos de uma ou várias disciplinas sem que haja um trabalho de equipe coordenado” (SHINE; STRONG, 2005, p. 196).

Entrevistadora: O trabalho com o assistente social é interdisciplinar?

É multi e interdisciplinar. Porque assim, a gente trabalha juntos, aqui a gente não tem um atendimento clínico, aqui já teve psicólogas que não se viam aqui porque elas tinham dificuldades em trabalhar com o serviço social. Tanto é que a entrevista é feita junta. Ela é dividida, didaticamente, como social e psicológica, mas por questão didática só. Mas assim, a inferência, as questões de trabalho são feitas juntas. Não dá pra você separar porque é um trabalho psicossocial. Então assim, o trabalho é perfeito, a gente tem uma relação muito boa. (sujeito 9).

De acordo com Shine e Strong (2005) o conceito de interdisciplinaridade não possui um sentido epistemológico único e estável. No Brasil, a década de 70 foi marcada pela busca de uma construção epistemológica da interdisciplinaridade, destacando-se autores como Japiassu (1979) e Fazenda (1994).

Mourão (1997) entende a interdisciplinaridade como algo estrutural, recíproco, com enriquecimento mútuo e com “tendência à horizontalização das relações de poder entre os campos implicados” (p. 141). Para o autor, há a exigência de uma problemática comum, com levantamento de uma axiomática teórica e de uma plataforma de trabalho conjunto, colocando-se em comum os princípios e os conceitos fundamentais, gerando uma aprendizagem mútua, que não se efetua por simples adição ou mistura, mas por uma recombinação de elementos internos.

“É uma relação muito próxima, a gente assim, tem muito uma preocupação dessa complementaridade entre as áreas. Uma coisa que a gente prioriza muito é de fazer a entrevista sempre com uma assistente social, se vai fazer uma visita domiciliar é sempre com uma assistente social para que haja essa interação de olhares, essa troca de impressões, de saberes mesmo” (Sujeito 1).

“Isso... aqui a gente tenta trabalhar de forma interdisciplinar mesmo. A entrevista só é feita com os dois profissionais, um de psicologia e um de serviço social, pra que a gente vá complementando mesmo né o olhar, e depois uma discussão para que chegue a essas conclusões, como eu te falei né... para que seja elaborado um relatório, para que chegue a uma, uma conclusão de sugestão de medida, pra que chegue a uma identificação de instituição, então tudo isso sempre é muito combinado né... [...]” (Sujeito 3).

“Como a nossa equipe lá sou eu e a assistente social, é totalmente ligado, é um trabalho muito vinculado, não funciona separadamente, porque cada profissional, na sua capacidade, na sua competência, trata da mesma queixa, mas com olhares diferentes e aí a gente só pode ajudar melhor esse cumpridor se a gente consegue abranger todos esses olhares. Então é importantíssima a interação da equipe. Na hora do perfil desse cumpridor, é importante fazer uma entrevista muito coesa, não pode... tanto eu como psicóloga, quanto a assistente social, a gente não gosta de fazer separada, nós fazemos a entrevista juntas porque as vezes o que eu psicólogo percebe, o assistente social não, mas as vezes o que o assistente social percebe, falta no psicólogo. E fazendo juntos, a gente consegue estender muito mais o perfil desse cumpridor e entende-lo melhor. São pequenas nuances, coisas, muitos detalhes assim, da vida do cumpridor que às vezes a gente acha que não tem a menor importância, mas pro cumprimento, na hora que ele cometeu aquele delito aquilo ali tem que ter um significado muito importante, entendeu? E aí a assistência social e a psicologia elas têm esse papel de perceber é... essas nuances de maneiras diferentes e que se complementam” (Sujeito 10).

Apreende-se, desses discursos, que os trabalhos do assistente social e do psicólogo são percebidos como campos que se cruzam, que se constituem e que se complementam, onde as fronteiras entre as disciplinas encontram-se relativizadas. A troca de saberes e o aproveitamento das diferenças permitem a riqueza mútua de disciplinas distintas e um esforço para a concretização de uma prática articulada.

De um modo geral, percebe-se no discurso dos entrevistados, que a atuação pautada numa prática interdisciplinar é vista de forma positiva. O trabalho na esfera penal com sujeitos que cometeram algum delito representa uma complexidade na forma de atuação, uma vez que o crime não é tido como algo da esfera individual, mas, e, sobretudo, das relações estreitas com o contexto sócio-econômico. Daí a importância de diversos saberes para abarcar esse objeto, encontrando-se na atuação interdisciplinar uma forma ampliada de execução da PSC.

Os discursos desses entrevistados constroem o acompanhamento da execução da PSC como um processo em que não há delimitação nas posições ocupadas por cada um dos

profissionais envolvidos, onde nenhum saber sobressai perante o outro. Como um processo em que ocorre, de fato, uma integração entre a Psicologia e o Serviço Social, objetivando a efetividade do cumprimento da pena/medida.

5.3.2 Com o operador do Direito

Em 2002, no Brasil, a CENAPA (Central Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas), do Ministério da Justiça, lançou o Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas. O documento foi construído mediante contribuições de técnicos de várias regiões do país que possuíam experiência no tema, inclusive profissionais de Psicologia. O Manual resume as atividades consideradas próprias do Direito e as atribuições da equipe técnica, composta por profissionais de Serviço Social e de Psicologia, conforme o quadro a seguir:

MUNDO JURÍDICO MUNDO PSICOSSOCIAL

Conduta Comportamento

Fiscalização Acompanhamento

Cumprimento da pena/medida Reinserção Social

Fonte: Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas (2002)

No contexto de acompanhamento da execução das Penas Restritivas de Direito, o psicólogo e o assistente social compõem a equipe técnica, estabelecendo a interação entre o mundo jurídico e o mundo social.

Nas searas jurídicas a Psicologia traz como contribuição “uma leitura complementar, importante e ampliada dos fatos tratados pela esfera legal” (OLIVEIRA, 2009, p.43), implicando num crescimento do campo de atuação para os profissionais de Psicologia, uma vez que estes técnicos são necessários para o trabalho de execução da pena alternativa seja em programas conduzidos, em Pernambuco, pelo Poder Executivo (tem-se as Ceapas), seja do Poder Judiciário (VEPA – Vara de Execução de Penas Alternativas, também em Pernambuco).

A integração buscada no trabalho entre os profissionais de Psicologia, Serviço Social e Direito no que se refere à execução das Penas Restritivas de Direito, centra-se,

principalmente, no objetivo histórico de revisão dos paradigmas que reduziram e aprisionaram o regime de reintegração social como objeto exclusivamente punitivo, segregador, pautado na prisão. Além disso, essa integração não interfere diretamente na autonomia e na criatividade interna de cada disciplina integrante do campo. A proposta de interdisciplinaridade, ao reconhecer a complexidade dos fenômenos, está implicitamente reconhecendo de forma dialética a necessidade de olhares diferenciados para um mesmo objeto, nesse caso, e, sobretudo, para o cumpridor. Alguns entrevistados endossaram essa visão.

“Eu acho que assim, psicólogo, assistente social e o advogado é o casamento perfeito, tem que existir essa equipe, essa interação porque um conhecimento soma ao do outro, né... então assim, um psicólogo só não funcionaria, um advogado só, um assistente social... então, se completam, é importantíssimo” (Sujeito 8).

“Com o advogado também, é muito importante, eu até brinquei num último encontro da gente com a gerência de que falta deve fazer um advogado numa Ceapa, até porque a gente tá lidando com processo. Para conseguir ler um processo é uma coisa que demanda tempo e demanda habilidade e que a gente infelizmente não tinha essa prática ainda e com o advogado o processo facilita muito. O processo fica muito mais rápido porque ele sabe das leis, ele compreende aquele universo, tanto para os cumpridores quanto para a equipe, que trocando conhecimentos a gente consegue trabalhar melhor. Porque você trabalhando com Penas Alternativas, você precisa da Psicologia, do Serviço Social, que a Psicologia também é social, né? Precisa do advogado, do administrativo, cada um tem um papel importante no funcionamento do trabalho, do monitoramento, da questão da rede que a PSC só funciona se você tiver um parceiro ali do lado que lhe dê também um suporte [...]” (Sujeito 7).

O sujeito 8 usa a metáfora do “casamento” e ainda por cima “perfeito” para falar da relação entre esses três profissionais. Fica subtendido na sua fala que sem esse casamento o sistema não funcionaria. O sujeito 9 situa a importância do advogado no sentido de “traduzir as letras da lei”, uma vez que, inicialmente, o psicólogo não se encontra familiarizado com os termos jurídicos. O entrevistado também apontou a otimização do seu trabalho mediante o trabalho mútuo com outros profissionais.

Nos discursos desses profissionais, a interdisciplinaridade, no que se refere às Penas Alternativas, abarca três campos distintos, mas que se interligam: a Psicologia, o Serviço Social e o Direito. Nesse cenário, segundo eles, não é possível pensar o trabalho da Psicologia

e do Serviço Social no âmbito jurídico sem levar em consideração as especificidades, as demandas e o aparelho conceitual e técnico do Direito.