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A prática de sala de aula: observações docentes no contexto do estágio

6 LETRAMENTO E FORMAÇÃO DOCENTE NA ÓTICA DOS

6.2 A prática de sala de aula: observações docentes no contexto do estágio

Conforme descrito no capítulo metodológico (ver Seção 4.3.3), iniciamos o acompanhamento de aulas no curso de Letras, no segundo semestre letivo de 2013, na disciplina Estágio I: Fundamentos Teóricos para o Ensino de Língua Inglesa. No mesmo semestre letivo, acompanhamos aulas na disciplina Estágio II em Ensino de

Língua Inglesa, uma vez que havia alunos e alunas de Letras cursando ambas as

disciplinas naquele período. Continuamos as observações de aulas durante o primeiro semestre letivo de 2014 – tanto para dar sequência à investigação iniciada na turma de

127 Concepção que se alinha ao que é estabelecido nos dispositivos reguladores do estágio supervisionado e no projeto político-pedagógico do curso de Letras da UPL (ver Seção 2.2).

Estágio I em 2013.2 quanto para estender a geração de dados a uma nova turma de Estágio I – e finalizamos as observações no Estágio II, em 2014.2. Paralelamente ao acompanhamento de aulas no curso de Letras, observamos aulas de professores e professoras na ELI, participantes de atividades relacionadas aos estágios supervisionados. Portanto, tivemos o objetivo de conhecer as perspectivas de letramento no contexto das práticas docentes, tanto na sala de aula do curso de Letras quanto na ELI.

Nesta seção, apresentamos as nossas considerações sobre os dados provenientes das observações de aulas (ver instrumento para notas de observação de aula no Apêndice F), nas quais foram feitas notas de campo. Analisamos aqui dados relacionados aos conceitos expressos pelos professores formadores sobre ‘tornar-se letrado’ e ‘letramento’, bem como à expectativa dos professores formadores sobre a participação dos professores em formação no contexto dos estágios curriculares supervisionados, conforme as perspectivas que discutimos na seção anterior. Nas aulas observadas, registramos a predominância da concepção do letramento escolar como um contexto de aplicação de saberes docentes, em uma perspectiva que sugere a adoção de um modelo de racionalidade técnica (SCHÖN, 2000) para a formação e a prática docente (ver Seção 2.1). Nesse sentido, as discussões na sala de aula de Estágio I e Estágio II têm no seu eixo temático questões como “o desenvolvimento de habilidades na língua estrangeira e a capacidade de cognição”128, e “o que faz um bom professor” e “métodos de ensino” 129, com ênfase em técnicas e estratégias que podem ser empregadas no ensino de línguas estrangeiras, o que sinaliza uma abordagem prescritiva na qual a prática formativa de professores parece ser enfocada.

Os seguintes extratos de transcrições de falas registradas em aulas de Estágio I e Estágio II ilustram os eventos de letramento que acompanhamos em nossa pesquisa, nas salas de aula do curso de Letras:

128 Conforme registrado durante as aulas de Estágio I, em 2013.2. 129 De acordo com os temas abordados nas aulas de Estágio I, em 2014.1. Tradução nossa do original: “What makes a good teacher”; “Teaching methods”.

(1) “Quando vocês forem à ELI, vocês verão isto... pede-se aos alunos para compreender textos em todas as suas palavras”130 (Milene, professora do curso de Letras).

(2) “Nós vamos testar a escrita dos nossos alunos; então como podemos testar se não ensinarmos?”131 (Flávia, professora do curso de Letras).

(3) “...a nossa aula sempre baseia-se na aula de alguém...”132 (Flávia, professora do curso de Letras).

(4) “...tornar as aulas mais dinâmicas e atrair os alunos para a sua aula, não apenas os mais inteligentes...”133 (Flávia, professora do curso de Letras). Nos exemplos citados, observamos que há tanto o emprego da modalidade epistêmica, nas funções de fala de afirmação (“...vocês verão...”; “...vamos testar...”) e de pergunta (“...como podemos testar...?”), quanto a modalidade deôntica, na função de fala de demanda (“...tornar as aulas mais dinâmicas...”), em que se registra o enfoque prescritivo nas falas das professoras. As afirmações são elaboradas de forma assertiva (“...pede-se aos alunos...”; “...nossa aula sempre baseia-se...”) o que parece confirmar a compreensão do papel dos professores formadores na “conscientização”, na “orientação” dos professores em formação, no sentido de atuarem como fontes para o compartilhamento de saberes (ver Seção 6.1.2). As escolhas lexicais (“compreender”; “testar”; “ensinar”; “atrair”) sugerem a concepção do ensino orientado para resultados, o que na perspectiva do ‘letramento’ associa-se ao Modelo Autônomo de Letramento (STREET, 1984, 2012) – conforme descrito na Seção 3.1.1 – compreendendo ‘tornar-se letrado’ como um empreendimento orientado em práticas escolares para o desenvolvimento de habilidades linguísticas. Dessa forma, percebemos que as falas das professoras nas sala de aula de Estágio I e Estágio II parecem endossar as concepções expressas pelos professores formadores, com relação a ‘letramento’ (ver Seção 6.1.1) e ao papel docente nas práticas formativas, conforme discutimos anteriormente.

No aspecto sócio-discursivo, destaca-se o significado que a prática de letramento escolar assume para o professor ou professora, estando relacionado ao desempenho e à

130 Tradução nossa da fala da professora de Estágio I, em uma das aulas, em 2013.2: “When you go to ELI, you will see this... students are asked to understand texts fully with their words”.

131 Tradução nossa da fala da professora de Estágio I, em uma das aulas, em 2014.1: “We’re going to test our students in writing; so how can we test if we don’t teach?”.

132 Tradução nossa da fala da professora de Estágio I, em uma das aulas, em 2014.1: “...our class is always based on someone’s class...”.

133 Tradução nossa de uma orientação da professora de Estágio II, em uma das aulas, em 2013.2: “...make classes more dynamic and attract students to your class, not only the most intelligent ones...”.

avaliação da performance linguística (“...compreender textos...”; “...testar a escrita...”). Um outro aspecto sócio-discursivo diz respeito à percepção do contexto social no qual as práticas formativas ocorrem, associado à sala de aula da escola na qual se realizam as atividades do estágio (“Quando vocês forem à ELI...”). Contudo, a compreensão das realizações concretas nesse contexto de práticas docentes parece ser violada pelo “depósito” (FREIRE, 2014) antecipado de conhecimento que a professora oferece na sua fala (“...vocês verão isto...”), comprometendo a isenção da percepção que poderia ser obtida nas perspectivas dos alunos e alunas de Letras, na prática de letramento docente. Por outro lado, com base nos registros feitos, percebemos que as realizações concretas e socialmente situadas das práticas formativas (“...a nossa aula...”) relacionam-se com a concepção defendida por Tardif (2014, p. 69), no sentido da “sedimentação temporal e progressiva, ao longo da história de vida, de crenças, de representações (...)” na formação docente (“...sempre baseia-se na aula de alguém...”). Observamos, ainda, que as realizações concretas das práticas de letramento (“...tornar as aulas mais dinâmicas e atrair os alunos...”), conforme orientação apresentada em uma aula da disciplina de Estágio II, dialogam com a concepção do papel do professor em formação, do qual se espera que “alcance o aluno” (ver Seção 6.1.2), como forma de sinalizar, na perspectiva da professora formadora, o desenvolvimento de um bom trabalho docente, o que seria caracterizado pelo ensino de forma “dinâmica”, capaz de captar as atenções e os interesses dos aprendizes da língua.

No que concerne às observações de aulas realizadas na ELI, registramos eventos de letramento orientados primordialmente para o conhecimento e o uso de estruturas formais da língua, tendo em vista o desenvolvimento de habilidades técnicas, com enfoque prescritivo-comunicativo, ou seja, adotando modelos de situações controladas através das quais pretende-se realizar o intento de capacitar aprendizes a comunicar-se com outras pessoas na língua estrangeira. Portanto, a mobilização e a articulação de elementos de ‘gramática’, ‘vocabulário’, e ‘pronúncia’ na língua estrangeira sugerem um eixo temático no qual são definidos os usos da linguagem na construção e na negociação de sentidos, conforme os conteúdos programáticos do curso. A avaliação das habilidades no uso da língua parece ser um momento fundamental, para consolidar o evento de letramento formal, atestando competências na capacidade comunicativa comprovada no contexto escolar. Analisamos, a seguir, dados obtidos nas observações

de aulas na ELI, relacionados à concepção dos professores e professoras sobre ‘tornar-se letrado’ e sobre o significado de ‘letramento’.

Os seguintes extratos de transcrições de falas dos professores e de diálogos registrados durante as aulas ilustram os eventos que observamos em nossa pesquisa, na sala de aula da ELI:

(1) “Decorem isso! Porque vai estar na sua prova!”134 (Silmara, professora da ELI).

(2) Silmara: “Primeiro, você aprende o jeito difícil; depois, o jeito fácil”135 [de como dizer as horas em inglês].

Aluno: [falando somente em português] “Na prova, vai querer o fácil ou o difícil?”

Silmara: “O difícil!”

(3) Melissa: “Se você não estudar, você vai passar nas suas provas?”136 Aluno: “Sim, vou.”

Melissa: “Claro que não!” [professora tenta dar um tom de humor a essa fala]

Aluno: “Eu faço as minhas tarefas, presto atenção às aulas...”

Melissa: “Isso é importante: fazer as tarefas, prestar atenção às aulas!” (4) Aluna: “Eu falo inglês!”137

Manuela: “Um pouco de inglês! Semestre 1...”

Nos extratos citados, observamos a modalidade epistêmica, nas funções de fala de afirmação (“...vai estar na sua prova...”; “Se você não estudar...”) e de pergunta

134 Registro da fala da professora, em uma aula de Semestre 1, nível inicial do curso básico de língua inglesa na ELI: “Memorize it! Because it will be in your exam!” Logo após a sua fala, a professora traduziu para o português o que ela havia dito em inglês aos alunos da turma,

135 Registro da fala da professora que, da mesma forma como havia feito anteriormente, falou em inglês: “First, you learn the hard way; then, the easy way”. Em seguida, a professora traduziu a sua fala para o português, e procedeu da mesma forma ao responder a pergunta formulada por um aluno da turma. 136

Este diálogo foi registrado durante uma das aulas na ELI, na qual a professora Melissa teve como enfoque o uso de relações condicionais em orações.

Tradução nossa do diálogo desenvolvido na sala de aula: Melissa: “If you don’t study, will you pass your exams?” Aluno: “Yes, I will.”

Melissa: “Of course you won’t!” [trying to sound humorous] Aluno: “I do my homework, I pay attention to class…”

Melissa: “That’s important: do your homework, pay attention to class!” 137

Tradução de um diálogo registrado em uma aula de Semestre 1 na ELI, no qual uma aluna respondeu a pergunta formulada no livro de curso, sobre conhecimentos linguísticos, e recebeu o comentário complementar da professora Manuela:

Aluna: “I speak English!”

(“...você vai passar...?”), bem como a modalidade deôntica, na função de demanda (“Decorem...”; “...fazer as tarefas...”), na qual são elaborados comandos prescritivos pelos professores, no sentido de orientar os aprendizes da língua a estudar e se preparar para as avaliações. As prescrições dos professores são marcadas em relações semânticas condicionais (“Se você não estudar, você vai passar...?”) e causais, indicando consequência (“Claro que não!”) e razão (“Porque vai estar na sua prova!”). Além disso, as escolhas lexicais feitas (“prova”; “difícil”; “fácil”; “importante”; “tarefas”; “aulas”) reafirmam a concepção, expressa pelos professores e professoras nas suas entrevistas (ver Seção 6.1.1), de que para tornar-se letrado(a) é necessário dedicação para “estudar” e “aprender”, o que demanda esforços que, orientados pelo ensino formal, têm em vista a obtenção de resultados em avaliações e o reconhecimento institucional de habilidades comunicativas. Nessa ótica, ‘letramento’ pode ser compreendido em termos de uma capacidade gradativamente desenvolvida, cabendo à escola administrar e reconhecer os níveis (“...Semestre 1...”) de conhecimentos linguísticos (“Um pouco de inglês!”) aos quais o aluno e a aluna tem acesso, desenvolvendo-os de forma supervisionada. Essa concepção dialoga com o conceito de ‘letramento’, apresentado pelos professores e professoras em suas entrevistas, como uma prática comunicativa de construção de sentidos, orientada por princípios e procedimentos formativos na agência escolar (ver Seção 6.1.1).

No que concerne à perspectiva sócio-discursiva, observamos que o significado que o letramento assume nas falas dos participantes encontra-se intrinsecamente associado à preparação para avaliações formais, como forma de teste e comprovação de habilidades comunicativas. Portanto, a sala de aula da escola de língua estrangeira é o contexto social no qual esse letramento se realiza, e as realizações concretas dos eventos comunicativos compreendem as atividades desenvolvidas naquele contexto (“aprender”; “estudar”; “prova”; “tarefas”; “aulas”), no qual as práticas de letramento tendem a ser desenvolvidas de forma dissociada dos demais contextos socioculturais dos quais as pessoas participam. Dessa forma, considerando as observações de aulas realizadas, bem como as respostas dos professores e professoras nas entrevistas, a prática de letramento desenvolvida na sala de aula da ELI aproxima-se do Modelo Autônomo de Letramento (STREET, 1984, 2012), que considera a prática de leitura e de escrita como uma tecnologia neutra, desenvolvida de forma padrão, independente do contexto sociocultural no qual se situa. Nessa perspectiva, um outro aspecto sócio-discursivo que

registramos em nossas observações de aulas na ELI diz respeito aos repertórios dos usuários da língua que, conforme Blommaert (2005), são distribuídos de forma desigual na sociedade, constrangendo a participação das pessoas nos eventos comunicativos. Na escola, esse constrangimento parece ser definido conforme o nível de estudos na grade curricular do curso (“Um pouco de inglês! Semestre 1...”), contribuindo para a concepção de ‘letramento’ como um processo controlado de ‘aquisição’ 138 de conhecimentos linguísticos.

Nesse sentido, buscamos compreender o lugar de fala dos professores formadores, tanto no curso de Letras quando na ELI, que se situam em um contexto de prática profissional sistematicamente estruturado, no qual devem atender às demandas e às expectativas no trabalho formativo que lhes compete. Como Fairclough (2003) destaca, o lugar de fala – como uma posição enunciativa assumida nas relações sociais – compreende as posições institucionais, os interesses, os valores, os desejos e as intenções dos participantes na prática social. E, conforme a natureza da prática social, “trazemos para um evento de letramento conceitos, modelos sociais (...) que o fazem funcionar, dando-lhe significado” (STREET, 2012, p. 76). As análises e discussões que desenvolvemos até aqui, na presente investigação, nos levam à ponderação de que os conceitos e modelos adotados nas práticas de letramento sinalizam a necessidade de um reexame, para promover a sua adequação ao contexto das práticas de leitura e de escrita na sociedade contemporânea. Essa revisão de perspectivas de letramento pode fomentar uma ressignificação das práticas docentes às quais alunos e alunas têm sido submetidos, no sentido de procurar um alinhamento entre essas práticas e os contextos socioculturais nos quais as pessoas estão situadas.

Feitas essas considerações sobre a prática docente no contexto do estágio curricular supervisionado, tanto no curso de Letras quanto na ELI, compreendemos que é pertinente voltar o nosso enfoque para as implicações dessas práticas formativas nas perspectivas de letramento desenvolvidas pelos professores em formação durante a realização dos estágios supervisionados de regência de aulas na ELI. Nas próximas seções, abordamos essa questão.

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6.3 Vivências de sala de aula no estágio de regência: novas perspectivas de