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Com base nas argumentações anteriormente apresentadas, podemos considerar o letramento como um fenômeno social, gerado em função da necessidade que as pessoas têm de se estabelecer comunicativamente em uma comunidade. Em conformidade com Wenger (1998), compreendemos o termo ‘comunidade’ como um sistema complexo no qual as pessoas podem compartilhar interesses e objetivos comuns, por meio de

62 Tradução nossa do original: “Social practices can be seen as articulations of different types of social element which are associated with particular areas of social life – the social practice of classroom teaching in contemporary British education, for example” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 25).

engajamento em atividades específicas. Dessa forma, a comunidade pressupõe a participação de membros que interagem entre si para construir e negociar sentidos em processos de reificação de conceitos, nos quais são definidos os objetos das práticas sociais. Nessa ótica, a comunidade não consiste meramente em um conjunto de ações que fazem parte de uma prática ou na presença de pessoas em uma determinada localidade, agremiação ou classe, mas fundamenta-se nas relações interpessoais que se estabelecem com foco nos recursos disponíveis e compartilhados e nos critérios que organizam e orientam a prática no grupo. Nessa esteira, Wenger (op. cit.) discute o conceito de “comunidades de prática” que reflete o seguinte entendimento:

Como um lugar de engajamento na ação, relações interpessoais, conhecimento compartilhado, e negociação de empreendimentos, essas comunidades têm o potencial para a realização de uma real transformação – aquela que tem efeitos concretos nas vidas das pessoas63 (1998, p. 85).

Nesse sentido, entendemos que a sala de aula constitui-se como uma comunidade, na qual o letramento é uma prática essencialmente social que se configura na interação entre as pessoas em eventos específicos para atender às demandas que surgem em diversos contextos de atividades na sociedade. Assim, o letramento pode ser compreendido como um recurso de reificação do mundo, no qual são construídos sentidos e definidas orientações para a participação das pessoas no convívio social. Barton e Hamilton (1998, p.3) argumentam:

O letramento é fundamentalmente algo que as pessoas fazem; é uma atividade, situada no espaço entre pensamento e texto. O letramento não reside simplesmente nas cabeças das pessoas como um conjunto de habilidades a serem aprendidas, e não se encontra simplesmente no papel, capturado como textos a serem analisados. Como toda atividade humana, o letramento é essencialmente social e situa-se na interação entre as pessoas64.

Dessa forma, devemos considerar que existem diferentes formas de letramento que não se limitam ao letramento escolar. Dentre os vários possíveis contextos sociais,

63 Tradução nossa do original: “As a locus of engagement in action, interpersonal relations, shared knowledge, and negotiation of enterprises, such communities hold the key to real transformation – the kind that has real effects on people’s lives” (WENGER, 1998, p. 85).

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Tradução nossa do original: “Literacy is primarily something people do; it is an activity, located in the space between thought and text. Literacy does not just reside in people’s heads as a set of skills to be learned, and it does not just reside on paper, captured as texts to be analysed. Like all human activity, literacy is essentially social, and it is located in the interaction between people” (BARTON e HAMILTON, 1998, p. 3).

Letramento como prática social

• O letramento é melhor compreendido como um conjunto de práticas sociais; estas podem ser inferidas de eventos que são mediados por textos escritos. • Há diferentes formas de letramento associadas aos diferentes domínios da vida. • As práticas de letramento seguem os padrões das instituições sociais e das

relações de poder e algumas formas de letramento são mais dominantes, visíveis e influentes do que outras.

• As práticas de letramento têm propósitos definidos e são encaixadas em objetivos sociais e práticas culturais.

• O letramento é historicamente situado.

• As práticas de letramento mudam e novas práticas são frequentemente adquiridas em processos de aprendizagem informal e construção de sentidos. podemos pensar no letramento familiar, profissional, religioso, político, e artístico. Cada um desses apresenta os seus próprios vieses e pode relacionar-se com outras várias formas de letramento, mantendo abertas as possibilidades de interação entre os campos da atividade humana.

Nessa perspectiva, firma-se a concepção social do letramento, desenvolvida em contextos de atuação humana específicos nos quais se consolidam as práticas entre as pessoas nas comunidades em que se situam. De uma forma didática, Barton e Hamilton sintetizam a natureza social do letramento, listando as suas características. Na presente pesquisa, valemo-nos das seguintes proposições conceituais para orientar a nossa compreensão do letramento como prática social:

Fonte: (BARTON e HAMILTON, 1998, p. 7)65

As seis proposições citadas delineiam a natureza social do letramento, compreendendo que ser letrado ou letrada constitui-se como um fenômeno enredado nas práticas das quais as pessoas participam. Nesse sentido, com base na primeira proposição considera-se que as práticas são regidas por regras sociais que regulam o uso

65 Tradução nossa do original: “Literacy as social practice:

• Literacy is best understood as a set of social practices; these can be inferred from events which are mediated by written texts.

• There are different literacies associated with different domains of life.

• Literacy practices are patterned by social institutions and power relationships, and some literacies become more dominant, visible and influential than others.

• Literacy practices are purposeful and embedded in broader social goals and cultural practices.

• Literacy is historically situated.

• Literacy practices change, and new ones are frequently acquired through processes of informal learning and sense making” (BARTON e HAMILTON, 1998, p. 7).

e a distribuição de textos na sociedade. Contudo, como Barton e Hamilton destacam, as práticas não são diretamente observáveis e podem ser compreendidas pelo estudo de eventos específicos que são moldados conforme as práticas vigentes na sociedade. É na conjugação desses três elementos – práticas, eventos e textos – que reside a compreensão da natureza social do letramento.

Essa compreensão nos leva à segunda proposição transcrita, que dá conta do aspecto situado das práticas de letramento que, conforme Barton e Hamilton (op. cit.), consistem “nos usos que as pessoas fazem do letramento”66 (p. 6). Dessa forma, as práticas de letramento não são exclusivas de uma agência específica, como a escola, mas podem ser intermediadas por várias outras agências, tais como na família, no trabalho, na religião, nas quais o letramento também é promovido na sociedade. Assim, podemos considerar que em decorrência de diferentes práticas sociais podem haver diferentes formas de ser letrado ou letrada, conforme as necessidades comunicativas que se configuram nos contextos específicos, o que caracteriza ‘letramento’ como um tema plural. Como afirma Wenger (1998, p. 6), “todos pertencemos à comunidades de práticas” e “as comunidades de prática às quais pertencemos mudam no curso de nossas vidas”67. A participação em distintas comunidades é responsável pelos letramentos que constituem o nosso repertório sociocultural, uma vez que quando nos situamos como parte de um determinado contexto social adotamos os comportamentos, os modos de falar, de agir, e de interagir com textos que são característicos daquele grupo. Em alguns contextos, as práticas de letramento são promovidas por agências que gozam de uma maior reputação social do que outras, por terem uma estrutura padronizada formalmente estabelecida e hierarquizada na qual são conferidos certificados e títulos, como acontece na escola. Em função disso, há a possibilidade de que algumas práticas de letramento sejam valorizadas em detrimento de outras, o que está relacionado à terceira proposição que citamos.

De fato, como destacam Barton e Hamilton (op.cit.), algumas formas de letramento, como o letramento escolar, adquirem maior visibilidade e influência do que outras formas de letramento extraescolar. Isso se deve ao fato de que as agências de

66 Tradução nossa do original: “In the simplest sense literacy practices are what people do with literacy” (BARTON e HAMILTON, 1998, p. 6).

67 Tradução nossa do original: “We all belong to communities of practice. (…) And the communities of practice to which we belong change over the course of our lives” (WENGER, 1998, p. 6).

letramento formal, como a escola, configuram-se com o suporte de instituições socialmente empoderadas, sendo reconhecidas e referenciadas pela sua responsabilidade formativa na sociedade, ao passo que outras instituições das quais as pessoas fazem parte no seu cotidiano, como a família, têm aparentemente menor reconhecimento e respaldo social, no que diz respeito às práticas de letramento ali desenvolvidas. Nessa esteira, as práticas promovidas nas agências de letramento formal tornam-se dominantes em relação às demais práticas de letramento que têm sua origem e desenvolvimento nos outros domínios da vida social. Todavia, essa argumentação não invalida a relevância social e os significados que os letramentos vernaculares carregam, como podemos perceber com base na quarta proposição citada.

É necessário compreender que o letramento é um fenômeno que se situa nas vidas das pessoas, na construção e negociação de sentidos para a realização de diversas tarefas, conforme as culturas específicas e os objetivos traçados. Nessa ótica, todos os letramentos são significativos, estão intrinsecamente relacionados às vivências das pessoas e, de tal forma, devem ser considerados como socioculturalmente relevantes. Um ponto a ser considerado é que o letramento, no seus aspectos formais, tende a ser enfocado como uma realização individual, associada às capacidades cognitivas que são desenvolvidas por cada pessoa. Contudo, além do desenvolvimento da cognição, o que não é um atributo exclusivo do letramento formal, como em toda experiência de aprendizagem, é importante mudar o foco do indivíduo para o grupo do qual se faz parte, o que pode trazer a compreensão das práticas de letramento como um recurso compartilhado na comunidade e não como uma propriedade individual. A argumentação da natureza socialmente contextualizada e significativa do letramento está relacionada à quinta proposição, que aborda o aspecto historicamente situado das práticas de letramento na sociedade. Essa ponderação contribui para a compreensão da fluidez e do dinamismo das práticas de letramento que acompanham, influenciam e ao mesmo tempo são moldadas pelas mudanças operadas na sociedade. Ou seja, em função das evoluções sociais, que podem ser motivadas por fatores políticos, econômicos, culturais, entre outros, o letramento passa por constantes atualizações, uma vez que como prática social se encaixa nos contextos das vidas das pessoas e, assim como as pessoas mudam, também mudam as práticas de letramento.

A sexta proposição apresentada por Barton e Hamilton (op. cit.) indica que as transformações pelas quais o mundo social passa fomentam o enriquecimento da

compreensão dos modos de aprendizagem com os quais as pessoas têm contato. Portanto, para compreender as práticas de letramento, “é necessário examinar como as pessoas aprendem, suas teorias sobre letramento e educação, as estratégias vernaculares que adotam para aprender novos letramentos”68 (p. 13). É nesse sentido que buscamos gerar conhecimento em nossa pesquisa, tendo em vista compreender as perspectivas dos professores em formação sobre letramento em língua estrangeira; e com esse objetivo em foco consideramos o caráter essencialmente social do letramento, como um fenômeno que tem uma orientação discursiva na sua realização. Desenvolvemos esse argumento na próxima seção deste capítulo.