• Nenhum resultado encontrado

Letramento em inglês como língua estrangeira: formação ou alienação?

4.1 Sobre as fases iniciais da pesquisa

4.1.1 Resultados das fases iniciais da pesquisa

4.1.1.1 Letramento em inglês como língua estrangeira: formação ou alienação?

Na primeira fase inicial da pesquisa, os dados foram analisados na perspectiva da teoria da Representação dos Atores Sociais (VAN LEEUWEN, 2008), na qual é proposto um inventário sócio-semântico das formas pelas quais os atores sociais podem ser representados no discurso. Uma vez que, como foi dito anteriormente, o letramento pode ser considerado uma forma de discurso, consideramos relevante apresentar as dez categorias de representação dos atores sociais, sendo importante lembrar que em um mesmo texto não se encontram necessariamente todas essas categorias. Assim, conforme Van Leeuwen (2008), na representação dos atores sociais podem ser utilizados recursos de:

a) exclusão: consiste na supressão dos atores sociais ou de suas ações no discurso, ou na alocação dos atores sociais em segundo plano no texto. Neste segundo caso, os atores sociais não se encontram totalmente suprimidos do texto e há marcas da sua presença no discurso a qual pode ser inferida por meio de alguma atividade ou informação que remete à sua existência;

b) distribuição de papéis: consiste nos papéis que são atribuídos aos atores sociais que podem ser ativos (ativação), quando os atores sociais são representados como sujeitos ativos nas atividades, ou passivos (apassivação), quando os atores sociais são representados como receptores, submetidos às atividades;

c) genericização e especificação: consiste na escolha entre a referência genérica e a específica na representação dos atores sociais que podem ser vistos no discurso como classes ou como indivíduos específicos e identificáveis;

d) assimilação: consiste na representação dos atores sociais como grupos (assimilação) e não como indivíduos (individualização). A assimilação pode ser de dois tipos: a agregação, que quantifica os grupos de participantes dando-lhes tratamento estatístico, e a coletivização, que trata os grupos de participantes na perspectiva do conjunto no qual se situam e do qual compartilham conhecimentos, valores, desejos;

e) associação e dissociação: consiste em uma outra forma de representar os atores sociais como grupos. A associação corresponde a grupos formados por atores sociais ou por grupos de atores que podem ser referidos genérica ou especificamente. Quando a associação é desfeita, ocorre a dissociação e passa-se a considerar os atores sociais separadamente ou na perspectiva do coletivo; f) indeterminação e diferenciação: consiste na representação dos atores sociais

como indivíduos ou grupos anônimos (indeterminação) e na distinção entre um ator social ou grupo de atores sociais e outro ator ou grupo de atores, estabelecendo a diferença entre eles (diferenciação);

g) nomeação e categorização: consiste na representação dos atores sociais pelas suas próprias identidades (nomeação) ou pelas identidades e funções que eles compartilham com outros (categorização);

h) funcionalização e identificação: consiste na representação dos atores sociais pela sua categorização, podendo ocorrer pela referência aos atores sociais em função de alguma atividade que eles desempenham (funcionalização), ou pela definição dos atores sociais com base no que eles são (identificação). A identificação pode

ser de três tipos: classificação, quando os atores sociais são identificados em termos de categorias por meio das quais a sociedade diferencia classes de pessoas; identificação relacional, quando os atores sociais são representados em função das relações de parentesco, pessoais, ou profissionais, entre outras, que têm entre si; identificação física, quando os atores sociais são representados pelas suas características físicas que os identificam em um dado contexto;

i) personalização e impersonalização: consiste na representação dos atores sociais por outros meios que – diferentemente dos meios que identificam os atores como seres humanos (personalização) – não incluem o aspecto semântico ‘humano’ (impersonalização). A impersonalização pode ser de dois tipos: abstração, quando a representação dos atores sociais é feita por meio de uma qualidade que lhes é atribuída; objetivação, quando os atores sociais são identificados por uma referência a um local ou objeto associado às suas pessoas ou às suas atividades. A objetivação apresenta três tipos que são de comum ocorrência: a espacialização, na qual os atores sociais são representados pela referência a um dado lugar com o qual são associados em um contexto específico; a autonomização do enunciado, na qual os atores sociais são representados por meio de uma referência aos seus enunciados; a instrumentalização, na qual os atores sociais são representados por uma referência a um instrumento que eles utilizam na realização de uma atividade à qual estão relacionados;

j) sobredeterminação: consiste na representação dos atores sociais que participam simultaneamente em mais de uma prática social. A sobredeterminação pode ser de quatro tipos: a inversão, que ocorre quando os atores sociais estão ligados a práticas sociais que se opõem; a simbolização, que ocorre quando atores sociais fictícios representam atores sociais em práticas sociais não-fictícias; a conotação, que ocorre quando há uma única determinação (nomeação ou identificação física) que corresponde a uma classificação ou funcionalização; a destilação, que ocorre por meio de uma combinação de generalização e abstração.

Essas categorias de representação dos atores sociais serviram de guia para as nossas análises dos dados gerados na ELI em nossa primeira fase inicial da pesquisa. A seguir, apresentamos as nossas considerações sobre as perspectivas dos alunos e alunas,

da professora da turma, e da amostra dos eventos de letramento na sala de aula de Inglês I, com base nos dados do estudo.

Na perspectiva dos alunos e alunos da disciplina Inglês I, a língua estrangeira faz parte do dia-a-dia, estando presente de forma habitual em filmes, na televisão, em músicas, na internet, entre outras possibilidades. Assim, a língua inglesa parece ser um bem comum ao convívio em sociedade, sendo possível nos cercar dela porque ela faz parte das nossas vidas, porque ela integra as atividades socialmente situadas com as quais nos envolvemos. Cria-se assim uma relação dialética, na qual o letramento na LE é ao mesmo tempo estimulado pelo contato com o mundo globalizado e motiva a ampliação desses contatos com outras culturas e pessoas. A resposta de uma das alunas participantes do estudo ilustra a nossa análise: “(...) sinto-me empolgada para aprender. Ouço músicas, quando tem palestras com algum americano, aproveito a oportunidade para escutar. Ex: Josh McDowell”. Em termos das categorias propostas por Van Leeuwen, observamos que nessa resposta da aluna há o emprego de recursos de categorização e nomeação. A categorização ocorre quando a aluna se refere a “algum americano”, evocando a identidade nacional do palestrante estrangeiro. Logo em seguida, para concretizar essa categorização, a aluna nomeia um exemplo de palestrante com o qual o contato linguístico lhe interessa, citando especificamente o palestrante Josh McDowell, por ocasião da sua então recente visita à cidade. Podemos, assim, ver o letramento local influenciando e sendo influenciado pelo letramento formal na língua estrangeira. A língua inglesa parece estar em toda parte e adquirir a habilidade de interagir com outras pessoas por meio dessa ferramenta torna-se um objeto de consumo para muitas pessoas, o que pode ser motivado por ambições profissionais, acadêmicas ou pessoais. Esse ponto é referendado pela percepção do papel que a língua inglesa assume na sociedade, conforme o depoimento de um outro aluno participante do estudo: “Nós temos a língua inglesa presente em todos os momentos do nosso dia. Convivemos com inglês na internet, restaurante, negócios...”. No argumento desse aluno, percebe-se o recurso da coletivização (“Nós temos...”), expressando a ideia de compartilhamento do contexto linguístico na sociedade e representando os atores sociais em uma perspectiva de assimilação desses valores. Nesse contexto, o papel do curso de língua estrangeira também é considerado relevante para o desenvolvimento de habilidades e competências, destacando-se, conforme a resposta de uma outra aluna, o aspecto da ativação desse papel institucional: “Ele me ajuda realmente desenvolver aspectos que

não faria, como escrita e fala”. Observa-se, portanto, que, na fala dessa aluna, há o emprego do recurso de ativação – na definição de um papel ativo – do curso de línguas que é representado numa perspectiva pessoal (“Ele”) como se estivesse tratando de uma pessoa, o que pode caracterizar uma humanização do curso por meio do recurso de personalização, representando no curso de línguas a figura humana do professor ou da professora que é quem, supostamente, “ajuda” o(a) aluno(a). Nesse sentido, percebemos que, em função do papel ativo que é atribuído à escola de língua estrangeira, o(a) aprendiz parece assumir uma posição passiva, esperando ser guiado, orientado, em outras palavras, ensinado na língua inglesa, no cumprimento de tarefas que, muitas vezes, tendem a ser primordialmente comandadas pelo professor ou professora. Essa aparente apassivação do(a) aluno(a) é, talvez, fruto da instrução formal orientada pelo Modelo Autônomo de Letramento (STREET, 1984, 2012) à qual, possivelmente, os(as) aprendizes têm sido submetidos em distintas instituições de ensino. Feitas essas considerações sobre algumas das perspectivas dos alunos de língua estrangeira, é oportuno trazer ao debate algumas das perspectivas da professora.

No que concerne à professora da turma de Inglês I na ELI, em uma de suas respostas ao questionário de sondagem foi revelado um conceito sobre o letramento na língua inglesa do qual não podemos compartilhar: o do conhecimento ‘zero’. Ao se referir às dificuldades que surgem no contexto de letramento formal em inglês, a professora afirma que há o caso de alunos que, nas palavras da professora, “nunca tiveram a chance de estudá-la – conhecimento ‘zero’”. Entendemos que essa observação feita pela professora pressupõe uma alienação dos atores sociais, uma vez que desconsidera as possibilidades de contatos habituais que alunos e alunas podem ter com a língua estrangeira e que também constituem uma forma de letramento na língua. Há, nessa fala da professora, o emprego do recurso de classificação dos aprendizes, que podem ser identificados e categorizados em função da sua suposta inabilidade linguística e, também, o recurso da apassivação destes atores sociais que, uma vez sendo enquadrados nessa categoria do conhecimento ‘zero’, são representados como receptores dependentes dos conhecimentos linguísticos fornecidos pela prática de letramento formal na ELI. Essa perspectiva da professora da ELI sobre o letramento formal na língua inglesa, no contexto de uma turma de Inglês I, reforça a noção do papel ativo da escola como o lugar onde se realiza o processo de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades e competências na língua estrangeira. A tarefa da

escola de língua estrangeira é, conforme a professora participante dessa fase inicial da pesquisa, “encaminhar os alunos para a cultura, sons, vocabulário(s) e estrutura(s) da língua”, e o curso de língua estrangeira é “um ativador do conhecimento da(s) cultura(s) da língua inglesa”. Percebemos, novamente, a representação dos atores sociais – os aprendizes – por meio da apassivação, que também é manifestada no uso do termo “ativador” para se referir ao curso de língua estrangeira. Esse termo denota uma representação ativa do professor ou professora, enquanto agente da difusão do conhecimento linguístico, em contrapartida à representação passiva dos alunos e alunas, que assumem a posição de pacientes, destinatários finais, ou meros receptores, dos conhecimentos fornecidos na prática de letramento formal. Vale lembrar nesse ponto o conceito de “educação bancária” de Paulo Freire (2014), segundo o qual educar consiste na transmissão mecânica de conteúdos do educador ao educando. Nessa perspectiva, “a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante” (FREIRE, 2014, p. 80), constituindo-se uma relação de opressão em que há uma “alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro” (op. cit., p. 81) e na qual o professor ou professora assume o papel de agente do saber enquanto os alunos ou alunas são aqueles que precisam dos depósitos de conhecimento. Assim, pareceu-nos que os alunos e alunas da ELI têm sido bem orientados, no sentido de assimilar os papéis propostos pelo modelo escolar que molda e estipula saberes e capacidades conforme os parâmetros estabelecidos em programas de ensino específicos. Foi em busca da confirmação ou refutação dessas percepções que realizamos a observação de aulas na turma de Inglês I da ELI.

Nas observações de aulas, registramos em notas de campo momentos nos quais as interações em sala de aula sugerem o uso da língua inglesa dissociado do contexto sociocultural dos alunos e alunas. Observamos que o objetivo, em uma das aulas observadas, era praticar o uso do presente simples de verbos para falar sobre profissões, conforme o programa do livro de curso adotado na ELI. Dessa forma, em uma atividade proposta em sala, o seguinte diálogo85 foi iniciado pela professora:

P: I’m a teacher. ‘A’?

Al1: ‘P’ is a teacher and I’m a student. ‘E’?

85 Nas transcrições das falas nas fases iniciais da pesquisa, utilizamos as iniciais dos nomes dos atores sociais que participaram das interações. As pausas são representadas por três pontos. As interrupções no fluxo de fala são representadas por três pontos entre parênteses. Os colchetes registram comentários ou observações do pesquisador.

Al2: ‘P’ is a teacher, ‘A’ is a student, and I’m an engineer. ‘J’?

Al3: ‘P’ is a teacher, ‘A’ is a student, ‘E’ is an engineer, and … I’m.... é pra

inventar professora?

P: Yes, don’t repeat jobs! Ninguém mais fala ‘student’. Al3: I’m ... a builder.

Esse foi um dos momentos nos quais pudemos observar, naquela turma da ELI, como se realiza a regência da aula, na qual a professora condiciona as produções linguísticas dos alunos ao sabor dos conteúdos que são julgados como necessários e relevantes no processo de letramento. O recurso de representação dos atores sociais marcante aqui, como já indicado, é a distribuição de papéis onde a professora é a agente no processo, estipulando tarefas, comentando, corrigindo e avaliando o desempenho em sala de aula. Os alunos e alunas, por sua vez, são os receptores apassivados dos comandos da professora e em função deles interagem, respondendo aos estímulos fornecidos na medida em que são solicitados a fazê-lo. Em uma outra aula, a professora dedicou bastante tempo à explicação de aspectos fonológicos da língua inglesa, detendo-se na explicação de alguns sons e padrões de pronúncia de orações. Em um dado momento, a professora chamou a atenção dos alunos para uma característica de um som da língua estrangeira, atribuindo-lhe um valor subjetivo: “Olha que chique esse som.... ‘Beautiful’... Olha o charme do ‘think’!”. Nesse caso, percebemos o uso do recurso de categorização quando a professora atribui valores à pronúncia da língua inglesa (“Olha o charme do ‘think’...”), estabelecendo uma relação de identificação entre falar a língua inglesa e ser “chique”. Dessa forma, os comentários da professora sugerem a ideia de que os atores sociais que desenvolvem a habilidade de pronunciar os sons da língua estrangeira corretamente podem ser classificados como membros de um grupo que se identifica por um estilo privilegiado, o da pronúncia da língua inglesa. Ao longo das observações realizadas, pudemos perceber que nos eventos de letramento realizados – nos diálogos orientados, nas repetições de padrões de sentenças e nas leituras de textos do material didático – há uma produção linguística mecanizada. A língua é abordada como uma ferramenta técnica, cuja prática repetitiva é estimulada pelos comandos da professora, propiciando o aperfeiçoamento da pronúncia e do uso de formas gramaticalmente corretas. Assim, com base nos dados nessa primeira fase inicial da pesquisa na ELI, o letramento na língua estrangeira parece seguir a perspectiva do Modelo Autônomo (STREET, 1984, 2012), no qual o contexto sociocultural tem pouca ou nenhuma relevância e o que realmente importa é praticar a língua para aprimorar o domínio das habilidades que se pretendem desenvolver durante as aulas.