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O estágio curricular supervisionado: espaço dialógico de (trans)formação?

Em complemento às Resoluções29 que disciplinam a estruturação do curso de Letras na UPL, o projeto político-pedagógico do curso também está pautado no Parecer número 28/2002, do CNE/CP. Conforme esse Parecer, o estágio curricular supervisionado30 é “entendido como o tempo de aprendizagem que, através de um período de permanência, alguém se demora em algum lugar ou ofício para aprender a prática do mesmo e depois poder exercer uma profissão ou ofício” (p. 10). Portanto, nessa perspectiva, o estágio corresponde ao momento de preparação para a prática profissional, compreendido em um caráter transitório, com o fim de constituir-se em reconhecimento acadêmico da capacidade para o trabalho. Há, nesse sentido, uma lógica disciplinar que norteia os papéis e as ações das pessoas envolvidas nas atividades relativas ao estágio. Nesse aspecto, o mesmo Parecer, referido anteriormente, afirma que o estágio curricular supervisionado “é o momento de efetivar, sob a supervisão de um profissional experiente, um processo de ensino-aprendizagem que tornar-se-á concreto e autônomo quando da profissionalização deste estagiário” (p. 10) e “só pode ocorrer em unidades escolares onde o estagiário assuma efetivamente o papel de professor” (p. 10), posto que tem em vista o conhecimento de situações reais de trabalho, consolidando-se, quando de sua efetiva realização, como o “coroamento formativo da relação teoria- prática” (p.11). Nessa esteira, nos temos do projeto político-pedagógico do curso de Letras da UPL, o estágio curricular supervisionado “supõe a relação pedagógica entre

29 Resolução CNE/CP 1/2002, Resolução CNE/CP 2/2002, Resolução CNE/CES 18/2002. 30

Além desses dispositivos reguladores, a Lei N.º 11.788, de 25 de setembro de 2008, dispõe sobre o estágio de estudantes, definindo-o, em seu artigo 1º, como “ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho”, visando “ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho”.

professor (estagiário) e aluno, em Instituições Escolares de Ensino Fundamental e Médio, com a supervisão de um profissional reconhecido” (p. 7).

Em face desse contexto prescritivo-regulamentador e da perspectiva adotada para designar os destinatários das práticas formativas, consideramos relevante refletir sobre o(s) termo(s) no(s) qual(is) podemos compreender a constituição do aluno e da aluna do curso de Letras no âmbito das práticas de estágio curricular supervisionado, contexto em que se situa o enfoque da nossa investigação. Até aqui empregamos em nosso trabalho os termos ‘professor em formação’, ‘alunos e alunas do curso de Letras’ que remetem a um outro termo – ‘estagiário’ – igualmente empregado. Percebemos que essa variação terminológica também está presente nos documentos oficiais que regem o projeto político-pedagógico do curso de Letras e, consequentemente, o estágio supervisionado. O próprio Parecer do CNE/CP, que citamos anteriormente, refere-se ao “estagiário” que deve assumir o papel de “professor” na prática do estágio, devidamente supervisionado por um “profissional experiente” – que é denominado por Tardif (2014) como “professor de profissão”. O projeto político-pedagógico do curso de Letras, na sua descrição curricular, menciona a figura do “professor” – devidamente categorizada pelo termo “estagiário”, que segue entre parênteses – sob a supervisão de um “profissional reconhecido”, cujo reconhecimento pode-se atribuir a uma posição hierarquicamente assumida na relação acadêmica – sem tencionar gerar um outro termo designador – com o agente de docência supervisionada. Parece-nos, então, que há espaço para um contínuo diálogo e uma permanente ressignificação entre o ‘eu-aprendiz’ e o ‘eu- professoral’ que se encontram em um mesmo ser socialmente constituído na interação com outros participantes do processo de formação sócio-profissional. Nesse sentido, ao enfocar a natureza dialógica do estágio supervisionado, Pennycook (2012) aborda o professor em formação designando-o por meio de termos similares – “aluno-professor”, “aprendiz-professor”, “professor-aprendiz”31 – que convergem para o mesmo conceito, o de ser-social em processo de constante (re)elaboração do seu papel educacional na sociedade. Essas ponderações sugerem a compreensão de uma bidimensionalidade constitutiva do ser-professor, onde o “professorando” (TARDIF, 2014) e o ‘professor’ constituem um mesmo indivíduo no qual se amalgamam esses conceitos fronteiriços. Em outras palavras, o professor em formação, em função das atividades desenvolvidas

31 Tradução nossa do original: “student teacher”, “learner teacher”, “teacher-learner” (PENNYCOOK, 2012, p. 127-135).

no estágio curricular supervisionado, transita entre universos de saberes, ora desempenhando o papel de aluno ou aluna, ora assumindo tarefas próprias da docência.

Nesse contexto, faz-se necessária a construção social do conhecimento na prática formativa, ou seja, o olhar prático reflexivo, para compreender o estágio supervisionado em uma dimensão dialógica, o que significa “pensar diferentemente, desenvolver uma forma de resistência crítica, ver outras possibilidades (...). É uma questão do inesperado e de tornar-se Outro”32 (PENNYCOOK, 2012, p. 139). Nessa visada, a reflexão bakhtiniana sobre a alteridade, na qual o outro em nós está incluído, expressa o sentido da compreensão epistemológica do ser-professor, necessária à concepção crítica da formação docente:

Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos

do outro (BAKHTIN, 2011, p. 341, grifos do autor).

A noção da alteridade constitutiva do ‘eu’ põe o estágio curricular supervisionado em foco como um espaço que compreende possíveis transformações de saberes, crenças, perspectivas e atitudes. O professor em formação deve situar-se nesse espaço em diálogo com os outros e consigo, no qual compartilha perspectivas do fazer professoral e pelo qual precisa passar em caráter experimental, para se firmar como profissional aos olhos da sociedade e, provavelmente, aos seus próprios. É na fronteira dos saberes explorados e consolidados nas práticas formativas que se desenvolve uma concepção crítica do ser-professor. Contudo, como alerta Pennycook (2012), “a tentativa de tornar-se um educador crítico consiste em dar conta de pequenos e inesperados momentos nos quais se desvela uma perspectiva mais crítica”33 (p. 147). Nesse ponto, destaca-se a importância da formação do professor prático reflexivo que “se serve muito mais de sua intuição e seu pensamento é caracterizado por sua capacidade de adaptar-se a situações novas e de conceber soluções originais” (TARDIF, 2014, p. 302). Compreendemos que neste sentido deve ser promovido o diálogo no estágio curricular supervisionado, como parte das práticas formativas: no fito de

32 Tradução nossa do original: “…to think otherwise, to develop a form of critical resistance, to see other possibilities (…). It is a question of the unexpected and of becoming Other” (PENNYCOOK, 2012, p. 139).

33 Tradução nossa do original: “…trying to be a critical educator is more often about seeking and seizing small, unexpected moments to open the door on a more critical perspective” (PENNYCOOK, 2012, p. 147).

desenvolver com os professores em formação, pela exploração, objetivação e consolidação de saberes experienciais, o senso de “lidar com situações relativamente indeterminadas, flutuantes, contingentes, e de negociar com elas, criando soluções novas e ideais” (op. cit., p. 302), tendo em vista promover uma integração dialógica dos saberes docentes.

Nessa esteira, trazemos os relatos de alguns estudos brasileiros nos quais o estágio curricular supervisionado é enfocado nas práticas formativas de professores. Iniciamos pelo artigo de Lüdke (2009) no qual a pesquisadora considera o estágio como “ponto nevrálgico” (p. 101) na formação docente. Nessa perspectiva, a autora destaca e apóia a iniciativa de estudos que propiciam a compreensão dos contextos em que se situam os estagiários e os professores, para “desvendar os obstáculos que se interpõem e dificultam o desempenho desses atores e contribuir com sugestões, ou pelo menos reflexões mais próximas de possíveis soluções aos clássicos problemas que cercam o estágio” (p. 101). Dessa forma, Lüdke sinaliza nos sentidos do rompimento com modelos de racionalidade técnica (SCHÖN, 2000) na formação de professores, de uma maior aproximação entre os domínios da universidade e da escola, e da necessidade de promover práticas formativas dialógicas nas quais sejam consideradas as perspectivas dos participantes do estágio supervisionado.

Na mesma ótica, Gimenez (2012) reivindica “maior contextualização e sensibilidade a questões locais”, reconhecendo “a necessidade de se rever o que tradicionalmente estamos fazendo na formação de educadores para atuarem nas escolas brasileiras” (p. 17). A pesquisadora defende que é necessária uma ressignificação conceitual na base de conhecimentos dos profissionais da educação em línguas estrangeiras e argumenta que essa base de conhecimentos “vem sofrendo (re)definições a partir de iniciativas que articulam a relação universidade-escola, especialmente em contextos de estágio” (p. 18). A nosso ver, essa redefinição de conceitos compreende, na realização do estágio curricular supervisionado, o desenvolvimento da perspectiva crítica dos professores em formação sobre o seu papel nas práticas formativas, enfocando esse letramento do professor como um fenômeno socialmente situado, conforme Gimenez afirma:

Parece, portanto, que a definição da base de conhecimento profissional resulta de um processo de negociação do qual participariam muitas vozes, não necessariamente uníssonas, com a

participação de integrantes de diversos graus de experiência (2012, p. 21).

O “processo de negociação” nas práticas formativas pode constituir-se como um recurso para a construção dialógica do conhecimento sobre os papéis dos participantes no estágio curricular supervisionado, contribuindo assim para a (trans)formação do ser- professor em um possível e contínuo diálogo de saberes docentes.

Ao tratar do “tornar-se professor”, Medrado (2012) discute “uma compreensão do ensino como uma atividade que pode ser reelaborada e avaliada por aquele(a) que a desempenha e, ao avaliá-la ou avaliar-se, aprende ao (re)fazer” (p. 152). Há, portanto, nessa perspectiva, o enfoque no saber experiencial como fonte de contextualização e ressignificação dos saberes docentes, que é defendida pela autora com base no argumento de que “formar um aluno como profissional do ensino implica encorajá-lo na busca da compreensão do seu próprio agir” (p. 158). A compreensão discutida por Medrado alinha-se ao conceito de prático reflexivo, na perspectiva de uma ecologia de saberes34, segundo a qual:

O estudo do ensino numa perspectiva ecológica deveria fazer emergir as construções dos saberes docentes que refletem as categorias conceituais e práticas dos próprios professores, constituídas no e por meio do seu trabalho no cotidiano (TARDIF, 2014, p. 260).

A ecologia de saberes parece, então, propiciar um ambiente para o desenvolvimento das percepções do professor em formação sobre o ensino, permitindo- lhe aprender a ‘ser’ para ‘fazer’, conforme os contornos que as práticas sociais atribuem ao ensino em contextos de atuação docente. Ou seja, na concepção defendida por Medrado (2012), “tornar-se professor” consiste em realizar práticas formativas de modo colaborativo, dialógico, orientando-se pela reflexão sobre experiências vivenciadas no contexto de ensino, como forma de gerar conhecimento socialmente situado sobre o fazer docente. Dessa forma, compreendendo que as práticas formativas devem ser essencialmente dialogadas, torna-se imprescindível conceber o estágio curricular

34 O conceito de “ecologia de saberes” é de Boaventura de Sousa Santos e significa uma oposição à perspectiva monocultural da ciência, “em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês” (SANTOS, 2007, p. 32-33). Nessa “ecologia”, como afirma Santos (2007), “o importante não é ver como o conhecimento representa o real, mas conhecer o que determinado conhecimento produz na realidade; a intervenção no real” (p. 33).

supervisionado como um espaço no qual as vozes dos participantes podem colaborar para a construção dos sentidos do ser-professor.

É nesse sentido que Valsechi e Kleiman (2014) abordam a “voz social do estagiário” no contexto das práticas formativas de professores. Com o enfoque do estudo na “prática social do estágio” (p. 16), as autoras definem o estágio como uma “prática social letrada” e afirmam que a prática desenvolvida pelo estagiário é de natureza “simultaneamente, acadêmica e profissional” (p. 17), o que sinaliza a compreensão da bidimensionalidade constitutiva do professor em formação. Dessa forma, compreende-se que as práticas formativas desenvolvidas no estágio curricular supervisionado constituem – em parte – o letramento docente que vai orientar o exercício da prática profissional. Contudo, conforme Valsechi e Kleiman (2014) destacam “para que o estágio possa colaborar para o letramento profissional do professor, (...) é preciso que as práticas acadêmicas exigidas nesse espaço estejam bem articuladas às práticas exigidas pelo local de trabalho docente” (p. 17-18).

Considerando a concepção do estágio curricular supervisionado, como um espaço no qual podem ser realizados eventos socialmente orientados e dialogicamente constituídos, voltados para o letramento profissional do professor, na próxima seção, abordamos, em uma perspectiva sócio-discursiva, as relações entre formação docente e letramento.