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O projeto político-pedagógico do curso de Letras da UPL está pautado, entre outros dispositivos reguladores, na Resolução número 1/2002, do CNE/CP20, que institui diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica. Essa Resolução – que orienta a integralização curricular no curso de Letras21 – estabelece que o “preparo para o exercício profissional” deve ter como um de seus fundamentos “a aprendizagem como processo de construção de conhecimentos, habilidades e valores em interação com a realidade e com os demais indivíduos, no qual são colocadas em uso capacidades pessoais” (p. 2). Nessa esteira, a Resolução número 18/2002, do CNE/CES22, que estabelece as diretrizes curriculares para os cursos de Letras, e, portanto, também é referida no projeto político-pedagógico, estipula que o projeto pedagógico do curso de Letras deve explicitar “as competências gerais e habilidades específicas a serem desenvolvidas durante o período de formação” (p. 1). Nesse sentido, o curso de Letras da UPL assume como um de seus objetivos o de desenvolver no professor em formação o “conhecimento das diferentes línguas e literaturas nas suas manifestações orais e escrita, assim como das teorias e dos métodos que fundamentam as investigações sobre a linguagem e a arte literária e facilitam a solução dos problemas nas diferentes áreas de saber”23 (p. 6).

20 Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. 21

O projeto político-pedagógico do curso de Letras da UPL afirma que a sua “proposta de integralização curricular inspira-se nas Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores, conforme Resolução CNE/CP 1/2002, e na Resolução do CNE/CP 2/2002” (p. 6).

22 Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior. 23

Compreendemos, então, que as diretrizes e os preceitos que orientam a formação de professores no curso de Letras ensejam o debate sobre a formação profissional, os saberes docentes e as experiências que constituem o arcabouço teórico-prático na preparação e no exercício da profissão. A discussão que consideramos pertinente trazer para a reflexão relaciona-se ao ‘ser’ e ‘fazer’ docente, o que pode implicar a solução de problemas em situações que não estão contidas nas categorias teóricas e técnicas ao alcance do profissional, ou seja situações em que o caso “não está no manual” (SCHÖN, 2000, p. 17). Essa discussão compreende também a “epistemologia da prática profissional” (TARDIF, 2014), em diálogo com os saberes docentes, sem perder de vista o enfoque prático reflexivo, orientado pelas experiências vivenciadas em situações específicas de trabalho.

Na perspectiva das diretrizes referidas anteriormente, as práticas formativas parecem seguir uma orientação prescritiva, baseada em modelos aplicacionistas (TARDIF, 2014), nos quais deve-se aprender a ‘fazer’ para ‘ser’. Nessa ótica, a formação profissional teria como fundamento o conhecimento científico, tendo em vista o desenvolvimento de padrões teóricos e técnicos nos quais os conhecimentos disciplinares poderiam ser mobilizados e manipulados para a resolução dos problemas no exercício da profissão. Compreendemos, todavia, que é necessário ponderar sobre orientações que podem levar à adoção de um modelo de racionalidade técnica (SCHÖN, 2000, p. 15), segundo o qual “os profissionais são aqueles que solucionam problemas instrumentais, selecionando os meios técnicos mais apropriados para propósitos específicos”. A limitação da racionalidade técnica, como aponta Tardif (op. cit.), reside no fato de que as situações de trabalho exigem que “os trabalhadores desenvolvam, progressivamente, saberes gerados e baseados no próprio processo de trabalho” (p. 58) e não podem ser reduzidas a prescrições de soluções para problemas, uma vez que a exploração e a consolidação dos saberes – conforme Tardif – dependem de uma conjugação de fatores que incluem prática e experiência24. Essa é uma perspectiva plural dos saberes profissionais dos professores – da qual voltaremos a falar nesta seção

24 Dewey (1976) compreende experiência como um fenômeno socialmente situado caracterizado pela continuidade – entendida no seu potencial de transformação – e pela interação social, na qual se relacionam os indivíduos nos meios aos quais estão integrados. Portanto, para Dewey “toda experiência modifica quem a faz e por ela passa e a modificação afeta, quer o queiramos ou não, a qualidade das experiências subsequentes, pois é outra, de algum modo, a pessoa que vai passar por essas novas experiências” (p. 25-26).

de capítulo – e dialoga com Schön25, no sentido de que há diferentes enfoques teóricos para conceber a mesma situação, o que promove a ideia de uma construção conceitual, em oposição à resolução instrumental e técnica, do problema. Assim, a concepção e a designação do problema são fundamentais para a compreensão epistemológica de questões que não estão pré-definidas no repertório de conhecimentos do profissional e que se configuram como “zonas indeterminadas da prática” (SCHÖN, 2000, p. 17), onde há incertezas, singularidades e conflitos de valores aos quais o profissional precisa fornecer uma resposta que atenda à demanda situacional.

A essa reflexão teórica, trazemos o conceito de Tardif (2014) sobre a epistemologia da prática profissional, que consiste no “estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas” (p. 255, grifos do autor). Ao empregar o termo ‘saberes’, no plural, Tardif explicita a compreensão de que a prática formativa não pode ser orientada em uma perspectiva monodisciplinar. Portanto, faz-se necessário reconhecer os saberes mobilizados na formação e na prática docente: os disciplinares (que constituem os conteúdos das matérias ensinadas, tais como matemática, geografia, literatura); os curriculares (relacionados aos programas de ensino a serem cumpridos pelos professores); os saberes da formação profissional (que incluem os conhecimentos pedagógicos, da ciência da educação); e os saberes experienciais (que compreendem os conhecimentos gerados pela própria prática no cotidiano de trabalho). A articulação entre esses saberes gera o sincretismo que caracteriza o saber docente em três sentidos: (1) os saberes do professor não se encontram encapsulados em uma unidade teórica, de forma que um professor pode ter diferentes concepções da sua prática, conforme a realidade cotidiana na qual se situa; (2) por ser socialmente situada, buscando atender às demandas do contexto de ensino e aprendizagem, a relação entre os saberes e a prática docente não pode ser compreendida no modelo aplicacionista da racionalidade técnica; (3) na realidade cotidiana da prática profissional, o professor precisa mobilizar “um vasto leque de saberes compósitos” (TARDIF, 2014, p. 66) para desempenhar as atividades docentes, e, ao fazê-lo, põe em jogo, também, os seus valores, as suas crenças, as suas experiências – inclusive as que resultam de vivências com outros

25 Para Schön (2000, p. 17), “os profissionais competentes devem não apenas resolver problemas técnicos, através da seleção dos meios apropriados para fins claros e consistentes em si, mas devem também conciliar, integrar e escolher apreciações conflitantes de uma situação, de modo a construir um problema coerente, que valha a pena resolver”.

professores ao longo das práticas formativas realizadas – razões pelas quais os saberes docentes podem ser concebidos como “saberes apropriados, incorporados, subjetivados” e, portanto, indissociáveis “das pessoas, de sua experiência e situação de trabalho” (TARDIF, 2014, p. 265). Nessa esteira, Tardif aponta dois problemas para fundamentar a inadequação do modelo aplicacionista, que, orientado à aplicação de conhecimentos teóricos e técnicos no contexto de atuação profissional, prescreve modos de desenvolver o trabalho docente na prática: primeiro, esse modelo é idealizado pelo conhecimento disciplinar que tende a ser limitado quando não é orientado, também, pelo saber experiencial; segundo, sendo limitado por estar encapsulado em seu universo teórico- técnico, o modelo aplicacionista “trata os alunos como espíritos virgens e não leva em consideração suas crenças e representações anteriores a respeito do ensino” (TARDIF, 2014, p. 273), o que encontra relação com a concepção de “educação bancária” (FREIRE, 2014). Nesse sentido, considerando a natureza heterogênea e sincrética dos saberes profissionais do professor, é pertinente refletir sobre a ponderação de Tardif:

O professor não é somente um “sujeito epistêmico” que se coloca diante do mundo numa relação estrita de conhecimento, que “processa” informações extraídas do “objeto” (um contexto, uma situação, pessoas, etc.), através de seu sistema cognitivo, indo buscar em sua memória, por exemplo, esquemas, procedimentos, representações a partir dos quais organiza as novas informações. Ele é um “sujeito existencial” no verdadeiro sentido da tradição fenomenológica e hermenêutica, isto é, um “ser-no-mundo”, (...) uma pessoa completa com seu corpo, suas emoções, sua linguagem, seu relacionamento com os outros e consigo mesmo (2014, p. 103-104, grifos do autor).

A citação de Tardif sinaliza no sentido da compreensão do ser-professor na perspectiva de uma epistemologia do ser-social que transcende os limites teóricos dos conhecimentos técnicos e se (re)atualiza constantemente na sociedade em que se situa. Podemos, então, compreender o professor como um ser em formação que, em contato com o outro, constrói a sua percepção do mundo e com base nela contribui para a construção das representações de mundo que o outro pode elaborar. Há, nessa percepção do ser-professor, uma lógica bakhtiniana de constituição do ‘ser’ com base na alteridade que o completa. “Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim” (BAKHTIN, 2011, p. 342). Por conseguinte, essa concepção propicia o enfoque da formação do professor em sua prática docente como um ser-reflexivo, em outras palavras, um prático reflexivo.

O conceito do professor prático reflexivo situa-se nos contextos em que se discute a profissionalização da formação de professores e a valorização do trabalho docente. Apesar de adotarmos em nossos referenciais teóricos a percepção de Tardif sobre os saberes docentes, não tencionamos direcionar a nossa discussão para os aspectos político-ideológicos do contexto histórico referido por Tardif26, posto que esse não é o objetivo deste trabalho. Buscamos, sim, compreender o professor como um prático reflexivo na medida em que esse ser-reflexivo significa e (re)dimensiona a sua atuação docente pela objetivação dos saberes gerados na sua própria prática cotidiana subjetivamente constituída, sem, contudo, desconsiderar a importância dos componentes teóricos dos quais, como profissional, o professor também deve se valer. Nessa concepção, a prática docente possibilita a elaboração de um “saber original” ou “saber da ação” (TARDIF, op. cit.) que tem relação com o “conhecer-na-ação” e a “reflexão- na-ação”27 (SCHÖN, 2000), constituindo-se como uma fonte de conhecimentos que pode ser considerada na prática formativa de professores.

26 Tardif (2014) discute esse conceito, situando-o no contexto do movimento reformista realizado no Canadá e nos Estados Unidos na década de 1990 como parte de um projeto para promover a melhoria da qualificação profissional dos professores e incrementar a qualidade e a valorização do trabalho docente. Esse movimento reformista, orientado por cinco objetivos, foi alvo de críticas devido ao “grande leque de dificuldades e de problemas” (p. 281) obstando a sua realização. O movimento reformista em questão foi idealizado, entre outros, pelo Grupo Holmes que “era composto, inicialmente, pelos decanos das faculdades de educação de uma centena de universidades ditas de pesquisa, entre as 250 universidades americanas que oferecem o doutorado em Educação” (p. 278), tendo como objetivos: “(1) tornar a formação de professores intelectualmente mais sólida; (2) reconhecer as diferenças entre conhecimentos, habilidades, e comprometimento dos professores, na sua formação, certificação, e no seu trabalho; (3) criar padrões de admissão de professores – exames e requisitos educacionais – que sejam relevantes para a profissão e intelectualmente justificáveis; (4) estabelecer uma ligação entre as nossas instituições e as escolas; (5) tornar as escolas lugares mais propícios para o trabalho e a aprendizagem dos professores”. Tradução nossa do original dos objetivos: “1. to make the education of teachers intellectually more solid; 2. to recognize differences in teachers’ knowledge, skill, and commitment, in their education, certification, and work; 3. to create standards of entry to the profession – examinations and educational requirements – that are professionally relevant and intellectually defensible; 4. to connect our own institutions to schools; 5. to make schools better places for teachers to work and to learn” (TARDIF, 2014, p. 278).

27 Com base em Schön (2000), podemos compreender que o “conhecer-na-ação” consiste na mobilização de um repertório de conhecimentos, de forma dinâmica, em situações práticas e rotineiras, que possibilita a adaptação de conceitos ao contexto experiencial e permite a realização de “julgamentos habilidosos, decisões e ações que tomamos espontaneamente, sem que possamos declarar as regras ou os procedimentos que seguimos” (p. 31). Por “reflexão-na-ação” compreendemos um movimento que transcende o “conhecer-na-ação” quando surge uma situação inesperada, problemática, para a qual a mobilização de conhecimentos do “conhecer-na-ação” não proporciona os resultados esperados ou necessários, e somos instigados a fazer questionamentos e testar hipóteses, de forma crítica e ponderada, na busca de uma solução satisfatória para o problema. “Pensamos criticamente sobre o pensamento que nos levou a essa situação difícil ou essa oportunidade e podemos, neste processo, reestruturar as estratégias de ação, as compreensões dos fenômenos ou as formas de conceber os problemas” (p. 33).

Com as ponderações teóricas que discutimos até este ponto, consideramos pertinente trazer ao debate alguns dos estudos realizados no contexto brasileiro abordando a temática da formação docente no contexto do ensino de línguas. Dessa forma, podemos citar o estudo de Fogaça e Gimenez (2007) que tem por objetivo “discutir a relação entre o ensino de línguas estrangeiras e a sociedade” (p. 161) ao mesmo tempo em que apresenta uma perspectiva analítica da história do ensino de línguas estrangeiras no Brasil. No artigo, em sua percepção sobre a relevância do ensino de línguas e do professor de línguas estrangeiras em nossa sociedade, os autores afirmam que o “ensino de línguas, e, portanto, o professor de LE, está no centro da vida contemporânea, dada a importância que a linguagem tem na vida social” (p. 173) e completam:

O professor de línguas, nesse contexto, pode mediar a compreensão de como os discursos circulam nas práticas sociais, contribuindo para a desconstrução de discursos únicos, globais, e colaborando para a reconstrução de práticas sociais fundamentadas em princípios éticos (p. 174).

Nesse sentido, Fogaça e Gimenez destacam a importância da problematização de questões socialmente relevantes no ensino de línguas estrangeiras, defendendo que faz parte do papel dos professores “propiciar o desenvolvimento de uma consciência crítica que permita uma maior participação social e política” (p. 179). Compreendemos, portanto, que o argumento apresentado por esses pesquisadores sinaliza no sentido de assumir a concepção do professor com um ser-social, cuja formação deve ser promovida em uma perspectiva heterogênea e sincrética dos saberes profissionais, levando em consideração o contexto sociocultural no qual professores e alunos se situam. Dessa forma, a prática docente poderá contribuir, como afirma Rajagopalan (2005, p. 154) para “empoderar o aprendiz de língua estrangeira”, por meio do acesso ao conhecimento e ao domínio crítico da língua.

Em um outro artigo, Mateus (2009) aborda “a prática social da pesquisa em Linguística Aplicada em sua relação dialética com as iniciativas de formação de professores de inglês” (p. 307). Na sua argumentação, a autora sugere que há um distanciamento entre pesquisadores e professores, acentuado pelas tensões entre teoria e prática, o que contribui para “socializar os professores num discurso alienado e mistificado que pouco tem a ver com as realidades de seu cotidiano” (p. 312). Nesse contexto, Mateus sugere como possibilidade para o desenvolvimento de pesquisas em

formação docente a “atividade crítico-praxiológica” que consiste na “teoria que, gerada na prática, retorna ao mundo da teoria para se consolidar e se renovar continuamente” (p. 316). Consideramos que essa perspectiva sugerida pela pesquisadora encontra correlação com a “objetivação parcial dos saberes experienciais”, conforme Tardif:

É através das relações com os pares e, portanto, através do confronto entre os saberes produzidos pela experiência coletiva dos professores, que os saberes experienciais adquirem uma certa objetividade: as certezas subjetivas devem ser, então, sistematizadas a fim de se transformarem num discurso da experiência capaz de informar ou de formar outros docentes e de fornecer uma resposta a seus problemas (2014, p. 52).

Nesse sentido, Mateus (2009) sugere que iniciativas de práticas formativas de professores, como a do Núcleo de Assessoria Pedagógica (NAP) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), sejam orientadas por ações que reconheçam os professores como produtores de conhecimentos sobre a prática docente, para incorporar esses saberes à prática formativa, ressignificando, desse modo, a produção, a distribuição e o consumo dos conhecimentos.

Com base no conceito de epistemologia da prática profissional (TARDIF, 2014), Diniz-Pereira (2010) 28 discute aspectos conceituais da formação de professores e desenvolve a concepção da “epistemologia da experiência” que o pesquisador descreve como “o estudo dos conhecimentos e saberes sobre a docência que são produzidos por meio da(s) experiência(s) dos professores ou, melhor dizendo, das reflexões individuais e/ou coletivas que estes fazem sobre sua(s) experiência(s)” (p. 84). O conceito apresentado pelo pesquisador constitui-se como uma proposta para a “superação da visão aplicacionista e do discurso prescritivo na formação de professores” (p. 84), o que sugere a realização de práticas formativas orientadas pelo fomento do pensamento prático reflexivo. No seu estudo, o pesquisador considera que a formação docente – em seu aspecto teórico-prático – situa-se no contexto das experiências vivenciadas, como atividades essencialmente sociais, dialogando com a concepção de Dewey, segundo a qual “toda experiência humana é, em última análise, social, isto é, envolve contacto e comunicação” (1976, p. 30). Nessa perspectiva, a formação de professores deve propiciar a geração de conhecimentos socialmente situados, conforme Diniz-Pereira (2010), como “práticas sociais construídas ao longo de toda a trajetória de vida – escolar

28

ou não – dos sujeitos, antes, durante e depois destes ingressarem em um processo formal de preparação de professores” (p. 92).

Nesse sentido, compreendemos a relevância dos processos dialógicos desenvolvidos nas práticas de formação de professores, entre eles os que se situam nos estágios curriculares supervisionados do curso de Letras, que podem contribuir para a formação do professor prático reflexivo em uma perspectiva socialmente orientada, ponto que abordamos na próxima seção deste capítulo.