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As formas de conceber o letramento: uma abordagem textual

5 PERSPECTIVAS DE LETRAMENTO: UMA ABORDAGEM INICIAL NA

5.1 O letramento em inglês na visão dos alunos e alunas de Letras

5.1.1 As formas de conceber o letramento: uma abordagem textual

Nas primeiras entrevistas da pesquisa, realizadas nos semestres letivos 2013.2 e 2014.1, conforme descrito nos procedimentos metodológicos (ver Seção 4.3.3), tivemos a oportunidade de perguntar aos participantes a respeito da sua compreensão sobre letramento. Para as transcrições das entrevistas na pesquisa, adotamos as seguintes convenções: as pausas são representadas nas transcrições por três pontos, e as interrupções no fluxo de fala são representadas por três pontos entre parênteses, que registram a complexidade da pergunta para os participantes naquele momento da abordagem do tema. Em alguns dos extratos de entrevistas que escolhemos para ilustrar as nossas análises, usamos três pontos entre colchetes para representar supressões que fizemos naquele trecho do exemplo citado para a análise.

No que concerne à concepção de letramento, percebemos que, em geral, os alunos e alunas que entrevistamos receberam a pergunta “o que significa ser letrado ou letrada em uma língua estrangeira” com hesitação, demonstrando dificuldade para elaborar uma resposta. Conforme as concepções expressas pelos alunos e alunas que entrevistamos, ser letrado ou letrada em uma língua estrangeira corresponde ao desenvolvimento de capacidades comunicativas para a compreensão e o cumprimento de tarefas na língua, enfocando, conforme as escolhas lexicais dos participantes, a “capacidade”, a “competência”, as “habilidades” para “saber como se comunicar”. Dessa forma, quando questionados sobre como uma pessoa pode se tornar letrada em uma língua estrangeira, os alunos e alunas sinalizam em suas respostas, predominantemente, no sentido do letramento formal, administrado em instituições de ensino. Como foi mencionado pelos participantes, a “escola”, os “cursos”, o “professor”, a “instrução formal” parecem ser os principais agentes e meios para que as pessoas possam se tornar letradas em uma língua estrangeira. Contudo, em algumas respostas, foram consideradas as possibilidades de se aprender uma língua estrangeira por meio de esforços individuais, sem a intervenção direta da instrução formal, embora esses empreendimentos pessoais, feitos de forma autodidata, sejam possivelmente orientados em função de estudos ou contatos sistemáticos com a língua, de forma similar ao que acontece nas agências de letramento formal. Na sequência à essas duas perguntas anteriores, as respostas dos alunos à pergunta “como você define o termo letramento” associam a concepção do letramento à perspectiva do desenvolvimento da

“capacidade” linguística, da “aquisição de habilidades” e da “proficiência”, que se realiza em uma “processo de aprendizagem” na língua.

O aspecto social do letramento é levado em consideração, nas falas de alguns participantes, considerando a sua natureza socialmente situada. Contudo, há casos em que o letramento é visto com uma forma de distinção social, um recurso que diferencia as pessoas que são letradas em inglês das outras pessoas que não são letradas na língua estrangeira. Essa concepção é considerada inclusive em uma perspectiva intrapessoal, na qual o letramento na língua inglesa propicia o sentimento de transformação, no sentido de que “você realmente parece que não é mais você... é uma nova pessoa” (Ronaldo109, aluno de Estágio I – 2013.2), em função, conforme o aluno entrevistado, do sotaque assimilado por falar a língua inglesa. Os exemplos a seguir serão enfocados para aprofundar a nossa análise dos aspectos textuais das falas dos alunos e alunas que entrevistamos.

Um dos aspectos textuais que parece dar forma às falas dos alunos e alunas sobre letramento é a modalidade. Os seguintes exemplos ilustram a modalidade nas respostas dos participantes:

(1) “...eu creio que um aluno que desenvolve aquelas quatro habilidades... o escrever, né... não o escrever perfeito... mas que pode transmitir seu... seu pensar... é... no... no falar também, na oralidade... se ele consegue transmitir o seu pensamento de forma a o outro compreender.... nessas... as quatro habilidades... o ouvir... ah... também, né... no ler... compreender a mensagem... pelo menos a superficial... contextual... trazer... pode ser considerado letrado…” (Eugênio, aluno de Estágio I – 2013.2).

(2) “...se a pessoa consegue se comunicar, eu acho que ela já pode ser considerada minimamente letrada...” (Mariana, aluna de Estágio I – 2013.2). (3) “Ahn... pra mim, seria ter um... ter domínio sobre... sobre aquele... aquela

área de conhecimento...” (Elisa, aluna de Estágio I – 2014.1).

(4) “...a partir do momento que as quatro habilidades... estão... desenvolvidas e que você percebe que você consegue se comunicar... e que... essas... você utiliza essas quatro habilidades pra se comunicar... e que você se sai bem... você é competente nessas quatro habilidades... eu acho que você é letrado” (Selma, aluna de Estágio I – 2014.1).

109 Todos os nomes próprios dos participantes da pesquisa são pseudônimos, tendo em vista preservar as suas identidades.

(5) “... ser letrado, pra mim, acaba sendo muito relativo... eu não tô falando... não sei, em teoria... as pessoas falaram sobre letramento, mas eu penso em português... tem muitas pessoas que são alfabetizadas mas não são letradas porque não... não conseguem interpretar... não conseguem ou não... não interpretam textos, ou não conseguem refletir sobre aquilo que elas tão fazendo” (Noélia, aluna de Estágio I – 2014.1).

Halliday (1978, p. 223) considera que pela modalidade o falante manifesta a “sua avaliação da validade do que está dizendo”110. Com base nas categorias analíticas de Fairclough (2003), podemos afirmar que, nos exemplos transcritos, a modalidade é a epistêmica, associada à função de fala de afirmação. Contudo, as modalizações empregadas nas afirmações dos participantes sugerem uma carga de avaliação pessoal, subjetivamente modalizada (“...eu creio...”; “...eu acho...”; “...pra mim...”), sem o intento de teorizar objetivamente sobre o tema em foco (diferentemente de uma asserção do tipo ‘ser letrado ou letrada é...’ ou ‘ser letrado ou letrada significa...’). Nesse sentido, percebemos que, ao falar sobre o que significa ser letrado ou letrada, os participantes parecem não assumir um alto nível de comprometimento com a verdade ou certeza das suas colocações. Registramos também, no que diz respeito às relações semânticas estabelecidas nos textos dos participantes, o emprego de relações condicionais (‘... se a pessoa consegue se comunicar...”; “... você se sai bem... você é competente...”) sinalizam no sentido da compreensão do letramento condicionado a resultados ou performances linguísticas no sentido de, por exemplo, ter um bom desempenho em eventos comunicativos na língua. Essa noção orientada por resultados sugere a compreensão do letramento como um recurso de inclusão (ou de não-inclusão) social: conforme esse entendimento, aqueles que conseguem desempenhar tarefas na língua são “competentes” para participar de determinadas práticas sociais. Nessa esteira, o que poderia ser dito dos que não conseguem ter o mesmo nível de desempenho? É pertinente observar que a relação entre letramento e competência linguística é sustentada nas escolhas lexicais dos participantes, nos exemplos citados: “habilidades”; “domínio”; “desenvolvidas”. O emprego dessas palavras gravita em torno da concepção do letramento como uma ferramenta para o desempenho de competências individuais que, nessa perspectiva, seriam aferidas e atestadas com base em (auto)avaliações das “habilidades” comunicativas do usuário da língua.

110 Tradução nossa do original: “...his assessment of the validity of what he is saying” (HALLIDAY, 1978, p. 223).

No que concerne à natureza social do letramento, devemos observar nos exemplos transcritos que há um viés que sinaliza a compreensão de que ser letrado ou letrada consiste em comunicar-se efetivamente na língua, de forma a estabelecer e negociar relações de sentido com o(s) interlocutor(es). Essa compreensão do letramento dialoga com a perspectiva do Modelo Ideológico de Letramento (STREET, 1984, 2012) – ver Seção 3.1.2 – e pode constituir-se como um possível ponto de partida para o questionamento e a crítica das relações que são feitas entre os conceitos de letramento e a prática docente na sala de aula de língua estrangeira. Nesse sentido, observamos em (1) que a relação condicional (“...se ele consegue transmitir o seu pensamento de forma a o outro compreender...”) e em (5) a relação causal (“...tem muitas pessoas que são alfabetizadas mas não são letradas porque não... não conseguem interpretar...”) sugerem uma perspectiva socialmente orientada da prática de letramento, no sentido de compreender o letramento como uma das dimensões da prática social.

Todavia, apesar do caráter socialmente situado do letramento, a perspectiva que associa o letramento às agências formais ganha fôlego nas respostas dos alunos e alunas à pergunta seguinte: como uma pessoa se torna letrada na língua estrangeira.

Conforme as respostas dos participantes, o letramento tende a ser relacionado aos afazeres e aos atores sociais que atuam no contexto escolar, embora esse não seja reconhecido como o único ambiente no qual o letramento se desenvolve. Exemplificamos esse pensamento com base nas seguintes colocações dos alunos e alunas:

(1) “Bom, tem várias formas, né? Eu, por exemplo, eu... eu... aprendi a falar inglês sozinha... [...] ou então...pela via formal mesmo que é estudar, né... escolher uma escola e fazer um curso...” (Vivian, aluna de Estágio I – 2013.2).

(2) “...eu falo isso pros meus alunos... se eles querem aprender a língua... se desenvolver com um grau muito bom de... de proficiência... é a leitura... eles têm que tá imerso à leitura... a diferentes tipos de leitura... porque com a leitura eles desenvolvem...” (Eugênio, aluno de Estágio I – 2013.2).

(3) “Através de... de..., talvez também, de... de convivência... não sei... convivência... a pessoa vai... porque assim só ir pra... pra... pra um país fora não significa também que a pessoa é letrada. Então, eu acho que... várias... vários... abrange vários fatores: a convivência, o estudo, entender sobre a cultura” (Mariana, aluna de Estágio I – 2013.2).

(4) “Ahn... através... primeiramente, através do contato com a língua... que... no caso... nesse contexto que nós estamos... [...] se inicia na sala de aula, né... com o professor... mas que se estende para outros âmbitos da... da... da vida... vida pessoal...” (Plínio, aluno de Estágio I – 2014.1).

Nos extratos citados, observamos que há uma compreensão do letramento como um fenômeno que ultrapassa os limites da sala de aula; todavia, as afirmações dos alunos e alunas sugerem que o contexto escolar é necessário para as pessoas que pretendem tornar-se letradas. Percebe-se, que as escolhas lexicais (“imerso”; “escola”; “aluno”; “estudo”; “professor”) delimitam o contexto no qual o letramento tende a ser – pelo menos inicialmente – desenvolvido. As relações semânticas expressas nos textos dos alunos e alunas também sinalizam no sentido de compreender o letramento de forma condicionada aos objetivos dos aprendizes (“...se eles querem aprender a língua...”) ou de forma causal, significando a razão do letramento escolar (“...porque assim só ir pra... pra... pra um país fora não significa também que a pessoa é letrada...”). Nessa ótica, o conhecimento linguístico é assimilado a uma prática na qual a aprendizagem é realizada mediante a inserção do aprendiz (“imerso à leitura”) em situações que lidem com o uso da língua, sobretudo em aspectos formais, uma vez que “só” ter uma experiência em um país estrangeiro não constitui o letramento, por mais que – devemos reconhecer – as experiências socialmente situadas sejam culturalmente significativas. Dessa forma, o letramento é enfocado como uma atividade prioritariamente escolar, como se fosse necessário passar pela escola para tornar-se letrado(a) para, então, fazer uso desse conhecimento linguístico na sociedade, o que constitui a compreensão do letramento como um complexo de fatores em que não se pode prescindir do “estudo” (formal) da língua estrangeira. O ponto de fundamental relevância, no nosso entendimento, é como estabelecer relações significativas entre o letramento escolar e os letramentos vernaculares que se desenvolvem além da sala de aula, de forma a promover um diálogo entre o que se faz na escola e o que se realiza nos outros contextos de atuação social.

Nessa esteira, ao responder a pergunta sobre a definição do termo ‘letramento’ os alunos e alunas retomam conceitos anteriormente abordados nas outras duas perguntas, o que sugere a compreensão do fenômeno na perspectiva de um processo orientado para o desenvolvimento de habilidades na língua estrangeira. Os exemplos a seguir ilustram as concepções expressas pelos participantes da pesquisa, no que concerne a essa terceira pergunta.

(1) “... eu acredito que seja o processo de aprendizagem de uma determinada língua e cultura...” (Mariana, aluna de Estágio I – 2013.2)

(2) “Letramento seria... a... essa capacidade de absorver, né... os elementos linguísticos formais... é... e a cultura da língua... e a capacidade de... de você conseguir falar, né... produzir essa língua com proficiência” (João, aluno de Estágio I – 2013.2).

(3) “É complicado... as três perguntas são complicadas. Ahn (...) vamos ver, seria... você estar... apto a... trabalhar com um determinado assunto...” (Elisa, aluna de Estágio I – 2014.1).

(4) “É esse processo, né, de desenvolvimento das quatro habilidades e... e... e da competência do... do... do estudante em falar e se comunicar na língua estrangeira” (Selma, aluna de Estágio I – 2014.1).

Com base nos exemplos transcritos, observamos que a dificuldade em formular um conceito é expressa nas pausas e nas interrupções do fluxo de fala – representadas, respectivamente, por três pontos e por três pontos entre parênteses, como dito anteriormente –, contribuindo para a percepção das lacunas conceituais que existem quando se aborda o tema do letramento no contexto da formação de professores. Além disso, em (3), encontramos um outro marcador de modalização, o adjetivo “complicado”, que denota a complexidade do tema para a entrevistada. Parece-nos também que as modalizações nas falas dos participantes sugerem as suas relutâncias em comprometer-se com as validades das suas proposições. Em (4), a aluna inicia a resposta com uma afirmação (“É esse processo...”) que, em seguida, assume a função de fala de pergunta pelo encaixe da expressão “né”, como forma de pedir uma confirmação da certeza da sua colocação. O mesmo pode ser observado em (2), exemplo no qual a modalização também é marcada na relação gramatical, pelo emprego da forma verbal (“Letramento seria...”) , manifestando que não há um alto nível de comprometimento do aluno com a sua definição de letramento. Além desses aspectos textuais, os marcadores coesivos nas relações lexicais (“processo”; “aprendizagem”; “absorver”; “proficiência”; “habilidades”; “estudante”) delimitam o campo semântico no qual as considerações sobre letramento estão situadas, sinalizando uma tendência a relacionar o conceito de letramento a contextos de ensino formal.

É possível que as falas dos alunos e alunas que entrevistamos sejam orientadas pelas práticas e pelos conceitos que esses professores em formação têm vivenciado nas suas experiências acadêmicas. Como já comentamos, Fairclough (2003) considera que

os processos de construção de sentidos compreendem a produção e a recepção dos textos na sociedade. Fairclough (op. cit.) afirma que, nesses processos,

(...) devemos levar em consideração a posição institucional, os interesses, os valores, as intenções, os desejos, etc. dos produtores; as relações entre elementos em diferentes níveis nos textos; e as posições institucionais, os conhecimentos, os propósitos, os valores, etc. dos receptores111 (p. 10-11).

Dessa forma, compreendemos que o lugar de fala do participante na prática social pode ser definido em função das relações que se estabelecem nas interações com outros participantes. Portanto, é ponderado considerar a possibilidade de haver relações intertextuais entre os professores formadores e os professores em formação, no sentido de promover uma assimilação e repetição de valores que, provavelmente, são transmitidos dos primeiros aos segundos. Retomaremos esse ponto no momento da análise dos dados referentes à participação dos professores formadores na pesquisa.

A seguir, apresentamos as nossas considerações sobre os aspectos relacionados à análise sócio-discursiva das falas dos participantes na primeira entrevista.