• Nenhum resultado encontrado

A produção da cidade na urbanização sem (ou antes da) industrialização

A formação do Brasil urbano tem como pedra de toque o paradigma da propriedade privada absoluta, desde a legislação instituinte do Brasil Império. A Constituição do Império, de 1824, estabeleceu o direito de propriedade no Brasil:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

XXII. E' garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnização (BRASIL, Constituição, 1824).

Entre as inúmeras diferenças entre a lei francesa paradigmática (o Código Napoleônico de 1804) e a Constituição de 1824, vale destacar uma: “The exercise of civil rights is independent of the quality of citizen, which is only acquired and preserved conformably to the constitutional law.” 45F

46 No Brasil,

apenas aqueles considerados cidadãos poderiam gozar de direitos civis, entre eles o de propriedade, enquanto, no Código Francês, uma coisa independe da outra. Isso limitou não apenas os direitos dos escravos, privados deles por definição, mas também, entre outros, dos índios, das mulheres, dos homens pobres e dos imigrantes que chegavam ao Brasil (mesmo que melhorassem de condição econômica, o processo de reconhecimento de cidadania era pouco acessível e lento). Ainda que, no seu artigo 6o, que estabelece quem são os

cidadãos, a Constituição pareça apontar para uma inclusão maior, posteriormente, nos artigos 92 a 94, ela especifica quem é o sujeito dessa

46 FRANCE, The French Civil Code, 1804. (Literally Translated from the Original and Official

Edition, Published at Paris, in 1804. By a Barrister of the Inner Temple. Translation attributed to George Spence). London: Published by William Benning, Law Bookseller, 1827. xix, 627 pages. Disponível em: napoleon-series.org. Último acesso em 15/01/2018.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

“cidadania plena” e, na prática, dos direitos civis: os libertos, os que atendem a critérios de renda, os que não entram nos critérios de exclusão.

A Constituição do Império expressa a projeção de uma ideia de Modernidade, a criação das condições para um certo Estado Moderno, que implica na formação de um tipo particular de liberalismo. Vale destacar, além do regime de escravidão e da cidadania restrita, que não havia no país uma classe burguesa buscando aliar poder político ao seu poder econômico, mas uma oligarquia aristocrática cujo poder econômico e político se baseava em relações de produção semi-capitalistas ou pré-capitalistas.

Nesse período, a propriedade especialmente valorizada no Brasil, do ponto de vista econômico, eram os escravos46F

47. No que se refere à propriedade

imobiliária, as fazendas têm seu valor econômico definido inicialmente pela sua produtividade já estruturada (fazendas “formadas”).47F

48

Nas cidades, todo o processo de construção e funcionamento das atividades era fortemente dependente dos escravos e, por isso, a paisagem urbana era socialmente heterogênea e a setorização social dos espaços era mais claramente percebida na escala individual (do lote, da edificação)48F

49.

Dando continuidade ao que ocorria no período colonial, a Constituição do Império manteve o nível local como esfera privilegiada da regulação mais direta dos aspectos urbanísticos. Como destaca Silva (2012, p.51-53):

“Regras gerais e simples de direito urbanístico já encontramos no velho direito Luso-Brasileiro. As ordenações do Reino fixavam princípios básicos e genéricos sobre a ordenação das povoações, como aquele que determinava que: ‘Aos vereadores pertence ter encargo de todo o

47 Em meados do século XIX, o tráfico de escravos já estava em decadência e, ainda que fossem

poucas, algumas cidades brasileiras desenvolviam atividades econômicas não mais tão incipientes, enquanto aquelas novas ideias sobre uma reestruturação desejável do espaço urbano começavam a se delinear com maior clareza. As operações bancárias mais significativas até esse período envolviam o financiamento para formação das fazendas dando os escravos como garantia, como aponta Martins (2010). A constituição de uma nova fase de desenvolvimento do país implicava um novo cativeiro, o da terra, como o autor define.

48 Nesse contexto, também se expressa um certo protagonismo do agente financeiro. A criação

das condições nas quais se constitui um primeiro projeto moderno (e urbano) do Brasil se define também com uma nova regulamentação do financiamento, expressa no sistema de hipotecas. A Lei n. 317, de 1843, que regulava as despesas e planejava as receitas do Império nos anos de 1843 a 1845, criou o registro das hipotecas (art. 45), que foi regulamentado em 1846 pelo Decreto n. 482. A criação e a regulamentação do registro das hipotecas preparam as condições para os processos que se definirão com o novo marco regulatório.

49 Sobre a construção e o funcionamento de edifícios e cidades nesse período, ver, entre outros,

Maricato (1997), Reis Filho (2006), Sevcenko (1998). As pinturas de Debret também são expressivas desses aspectos.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

regimento da terra e das obras do Concelho, e de tudo que puderem saber, e entender, por que a terra e os moradores dela possam bem viver, e nisso hão de trabalhar’. Nisso estaria, ainda, a ideia de que as imposições urbanísticas eram de competência das autoridades locais. Normas genéricas sobre a estética das cidades são encontradas nas Ordenações Filipinas (L. 1, T. 1, §§6, 13, 14 e 17) e outras sobre as relações de vizinhança e direito de construir. (...) Aliás, as posturas municipais na Colônia determinavam, além dos arruamentos, obrigações de alinhamento, desapropriações ‘para aí ficar a Vila mais enobrecida e a Praça dela’. (...) Grande parte dessas normas perdurou no Império, dada a vigência das Ordenações nesse período, com modificações que foram sofrendo, ao longo a Monarquia. A Constituição do Império nada dispôs sobre o assunto, mas declarou que existiriam Câmaras em cada cidade e vila, a que competiria o governo econômico e municipal delas (art. 167), cujas atribuições seriam decretadas por uma lei regulamentar, que veio a ser a Lei de 1.10.1828, que atribuiu aos vereadores competência para ‘tratar dos bens e obras do Município e do governo econômico e policial da terra, e do que neste ramo for a prol dos seus habitante’(art. 40)”.

Nesse contexto, a Lei de 01/10/1828, que regulamentou as Câmaras Municipais, também regulou os Códigos de Posturas:

Art. 66. Terão a seu cargo tudo quanto diz respeito á policia, e economia das povoações, e seus termos, pelo que tomarão deliberações, e proverão por suas posturas sobre os objectos seguintes:

§ 1º Alinhamento, limpeza, illuminação, e desempachamento das ruas, cães e praças, conservação e reparos de muralhas feitas para segurança dos edificios, e prisões publicas, calçadas, pontes, fontes, aqueductos, chafarizes, poços, tanques, e quaesquer outras construcções em beneficio commum dos habitantes, ou para decôro e ornamento das povoações.

§ 2º Sobre o estabelecimento de cemiterios fóra do recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade ecclesiastica do lugar; sobre o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera.

§ 3º Sobre edificios ruinosos, escavações, e precipicios nas vizinhanças das povoações, mandando-lhes pôr divisas para advertir os que transitam; suspensão e lançamento de corpos, que possam prejudicar, ou enxovalhar aos viandantes; cautela contra o perigo proveniente da divagação dos loucos, embriagados, de animaes ferozes, ou damnados, e daquelles, que, correndo, podem incommodar os habitantes, providencias para acautelar, e atalhar os incendios. § 4º Sobre as vozerias nas ruas em horas de silencio, injurias, e obscenidades contra a moral publica.

§ 5º Sobre os damninhos, e os que trazem gado solto sem pastor em lugares aonde possam causar qualquer prejuizo aos habitantes, ou lavouras; extirpação de reptis venenosos, ou de quaesquer animaes, e insectos devoradores das plantas; e sobre tudo o mais que diz respeito á policia.

§ 6º Sobre construcção, reparo, e conservação das estradas, caminhos, plantações de arvores para preservação de seus limites á commodidade dos viajantes, e das que forem uteis para a sustentação dos homens, e dos animaes, ou sirvam para fabricação de polvora, e outros objectos de defesa.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

§ 7º Proverão sobre lugares onde pastem e descancem os gados para o consumo diario, em quanto os Conselhos os não tiverem proprios. § 8º Protegerão os criadores, e todas as pessoas, que trouxerem seus gados para os venderem, contra quaesquer oppressões dos empregados dos registros, e curraes dos Conselhos, aonde os haja, ou dos marchantes e mercadores deste genero, castigando com multas, e prisão, nos termos do titulo 3º art. 71, os que lhes fizerem vexames, e acintes para os desviarem do mercado.

§ 9º Só nos matadouros publicos, ou particulares, com licença das Camaras, se poderão matar, e esquartejar as rezes; e calculado o arrobamento de cada uma rez, estando presente os exactores dos direitos impostos sobre a carne; permitir-se-ha aos donos dos gados conduzil-os depois de esquartejados, e vendel-os pelos preços, que quizerem, e aonde bem lhes convier, com tanto que o façam em lugares patentes, em que a Camara possa fiscalisar a limpeza, e salubridade dos talhos, e da carne, assim como a fidelidade dos pesos.

§ 10. Proverão igualmente sobre a commodidade das feiras, e mercados, abastança, e salubridade de todos os mantimentos, e outros objectos expostos á venda publica, tendo balança de ver o peso, e padrões de todos os pesos, e medidas para se regularem as aferições; e sobre quanto possa favorecer a agricultura, commercio, e industriados seus districtos, abstendo-se absolutamente de taxar os preços dos generos, ou de lhes pôr outras restricções á ampla, liberdade, que compete a seus donos.

§ 11. Exceptua-se a venda da polvora, e de todos os generas susceptiveis do explosão, e fabrico de fogos de artificio, que pelo seu perigo, só se poderão vender, e fazer nos lugares marcados pelas Camaras, e fóra de povoado, para o que se fará conveniente postura, que imponha condemnação, aos que a contravierem.

§ 12. Poderão autorizar espectaculos publicos nas ruas, praças, e arraiaes, uma vez que não offendam a moral publica, mediante alguma medica gratificação para as rendas do Conselho, que fixarão por suas posturas.

O Ato Adicional à Constituição (Lei n. 16, de 1834), criou as Assembleias Legislativas, nas Províncias, e definiu as suas competências, entre as quais:

Art. 10. Compete ás mesmas Assembléas legislar:

§ 3o Sobre os casos e a fórma por que póde ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial.

A estratégia mais emblemática do período, que confirmará as bases da entrada do Brasil na Modernidade, tem seu símbolo na Lei de Terras, de 1850, que:

Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara (BRASIL, Lei n. 601/1850).

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

Embora a Lei, de modo geral, se propusesse a reconhecer a posse efetiva das terras, discriminar o restante e, a partir daí, definir a compra como única forma de aquisição, na prática, os moradores pobres das cidades, os negros, as mulheres e os índios ficaram excluídos. Além de, pela Constituição em vigor à época, o direito à propriedade ser um direito civil restrito àqueles considerados cidadãos, as demais parcelas da sociedade não tinham acesso às condições necessárias – especialmente documentais e financeiras – para realizar o processo de conversão da sua posse em propriedade. Por isso, a Lei de Terras é amplamente reconhecida como marco da estruturação do Brasil em torno do acesso excludente à terra. Como demonstra Martins (2010), esse marco legislativo consolida uma dupla estratégia, tanto criando as condições para que a terra se tornasse um ativo econômico valorizado, capaz de substituir os escravos no mercado de créditos e garantias, quanto possibilitando que o trabalho dos imigrantes livres nas fazendas se estruturasse em condições pré- capitalistas, com muitas semelhanças com o regime de escravidão. Essa formalização seletiva da propriedade também consagrou a propriedade de terras como ícone de status social privilegiado e poder. A discriminação das terras públicas, tal como definida, não apenas não se completou como prevista naquela Lei como não se completou até os dias atuais, questão que se coloca como permanente desafio. A Lei n. 601 expressa, ainda, mais uma particularidade do liberalismo no Brasil, ao autorizar o governo a financiar (com recursos do Tesouro) a vinda de imigrantes europeus para o trabalho “livre” nas fazendas49F

50.

Como Rolnik (1997), entre outros, demonstra, uma parte considerável dos imigrantes que chegarão ao país nas décadas seguintes acabará por ficar nas cidades, muitos sem emprego. Os imigrantes europeus que ficaram nas cidades contribuíram de várias formas para a alteração das dinâmicas urbanas. Eles exerciam novas atividades produtivas e comerciais, ampliavam e modificavam as existentes. Trouxeram sua própria cultura profissional, como exemplo, na construção civil. A presença desses imigrantes era tão significativa em São

50 “Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo

numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos logares em que estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem” (BRASIL, Lei n. 601/1850).

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

Paulo, como exemplo, que chegaram a representar a maior parte dos moradores da cidade (ROLNIK, 1997). Essa nova massa de trabalhadores urbanos não configura, inicialmente, um operariado industrial, uma vez que a indústria no Brasil era incipiente. Eles vão se tornar elementos de uma nova estratificação social urbana – profissionais liberais, comerciantes, prestadores de serviços, fundadores ou funcionários de pequenas manufaturas etc., configurando especialmente os estratos populares e médios entre os habitantes.

Esses imigrantes trazem consigo, também, uma mentalidade social, econômica e política própria, que influencia em grande medida não apenas as maneiras como vão estabelecer suas estratégias de vida, mas também suas formas de socialização e a construção de uma determinada cultura urbana.

Com a contínua decadência da escravidão e seu esgotamento como atividade econômica, e com o crescimento urbano incrementado (não apenas em volume populacional, mas também em atividades, práticas, economia etc.) pela imigração europeia, aumenta a ênfase do governo na regulação e no fortalecimento do sistema de financiamento50F

51.

Com a abolição da escravidão, em 1888, a problemática do acesso à terra no Brasil se aprofunda, pois os ex-escravos são dispensados sem condições objetivas de adquirir moradia ou uma renda que lhes permita o acesso à propriedade imobiliária. No campo, as famílias desprovidas de propriedade continuavam vivendo em situações análogas à escravidão ou ocupavam pequenos terrenos informalmente, sem segurança de posse. Devido a um conjunto de condições econômicas, sociais, políticas, tecnológicas, produtivas e sanitárias, no final do século XIX, a paisagem das cidades brasileiras já estava marcada pela pobreza e suas correlatas condições precárias de vida.

A Proclamação da República, em 1889, resultou não da consolidação de uma elite burguesa em oposição à aristocracia, adicionando ao seu poder econômico o poder político e construindo um Estado segundo seus ideais. Ela se deu a partir de uma articulação entre partes da mesma elite oligárquica, com

51 Em 1864, a Lei n. 1.237 “Reforma a Legislação Hypothecaria, e estabelece as bases das

sociedades de credito real” (BRASIL, Lei n. 1.237, 1864).

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

a participação das gerações mais jovens que tiveram contato com os ideais das revoluções burguesas e os absorveram parcialmente.

A rigor, a base política continuava sendo constituída pela mesma elite agrária, aliada aos intermediários urbanos, que havia séculos dominava o país. Mas parte dela tinha incorporado os valores positivistas de conhecimento técnico e racionalidade, refletidos no

slogan que seria adotado pela República: Ordem e Progresso

(MARICATO, 1997, p. 26).

A Constituição da República, de 1891, avançou pouco nos direitos dos negros, dos pobres, dos índios e das mulheres, na prática. A princípio, com o fim da escravidão, os negros poderiam ser cidadãos brasileiros e, por isso, gozar do direito à propriedade. No entanto, como tal sistema parte de uma lógica estruturalmente desigual, uma vez que a terra havia sido gratuitamente distribuída no Brasil quase meio século antes e agora era uma mercadoria cara, e que os ex-escravos são “jogados” nessa dinâmica mercantil da vida, sem que quaisquer condições de inserção justa lhes tivessem sido dadas, eles permanecem excluídos. Essa desigualdade estrutural, que conforma a dinâmica da propriedade no Brasil, contraria uma premissa básica do liberalismo recente (que se traduz em aversão às políticas sociais e redistributivas), segundo a qual, uma vez que a terra está no mercado e qualquer um pode comprá-la, não há que se falar em desigualdade de acesso:

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

O conflito entre a justiça formal e a igualdade formal perante a lei, por um lado, e as tentativas de realizar vários ideais de justiça e igualdade, por outro, também explica a confusão muito comum sobre o conceito de ‘privilégio’ e o consequente abuso desse conceito. Mencionaremos apenas o exemplo mais significativo de tal abuso: a aplicação do termo ‘privilégio’ à propriedade como tal.

Ela seria efetivamente um privilégio se, por exemplo, como sucedeu por vezes no curso da história, a propriedade da terra fosse reservada aos membros da nobreza. É privilégio também se, como sucede nos nossos tempos, o direito de produzir ou vender determinados bens é reservado pela autoridade a certos indivíduos. Mas chamar de privilégio a propriedade privada como tal, que todos podem adquirir segundo as mesmas normas, só porque alguns conseguem adquiri-la e outros não – é destituir a palavra privilégio do seu significado (HAYEK, 2010. p. 95).51F

52

Além disso, os agentes sociais que vinham sendo excluídos também não poderiam, na prática, almejar representatividade para participação de uma luta por seus direitos no cenário político pois, embora a Constituição de 1891 tenha acabado com a exigência de determinada renda para ter direito ao voto, ela excluiu desse direito os analfabetos. Apenas três anos após a abolição, em um país com acesso altamente limitado à alfabetização, é improvável que os ex- escravos tivessem de fato condições de acessar a vida política.

A Constituição da República, como a do Império, atribui caráter absoluto à propriedade: “Art. 72, § 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade, ou utilidade publica, mediante indemnização prévia” (BRASIL, Constituição, 1891).

52 Embora não seja objetivo deste trabalho discutir o liberalismo (nem o neoliberalismo), e nem

mesmo fazer uma análise profunda da obra de Hayek, é importante destacar essa parte. A dinâmica urbana brasileira foi construída sobre o acesso seletivo à propriedade (em especial, à propriedade da terra) e esse fato tem desdobramentos específicos até os dias atuais. Uma vez que o debate, bem como as políticas, em torno da questão fundiária urbana tem como dimensões relevantes uma noção do que é justo, do que é aceitável e do que é passível de escolha, é necessário ter sempre em mente tal “fundamento”. Essa passagem do livro de Hayek, além de sintetizar bem a sua posição quanto à igualdade e à justiça, no que se refere à terra, é ilustrativa de dois aspectos que a todo momento aparecem nas arenas de luta em torno da questão urbana brasileira: em primeiro lugar, Hayek tem sido considerado um autor importante na construção do chamado neoliberalismo, identificado a partir do governo Thatcher na Inglaterra. Em alguma medida, grande parte do discurso contrário às políticas sociais atualmente no Brasil diz se firmar no pensamento (neo)liberal, contra aquilo que classificam como tendências socialistas, que caminhariam, como defende Hayek, para um Estado totalitário (e pobre). Em segundo lugar, ela demonstra tanto a fragilidade histórica do argumento contrário à propriedade fundiária como privilégio, particularmente no caso brasileiro, quanto a fragilidade dos vínculos de um discurso alegadamente liberal com a obra desse autor, uma vez que, aplicando o conceito de privilégio dele mesmo ao contexto brasileiro, chamar a propriedade fundiária de ‘privilégio’ seria uma conclusão lógica. Essa particularidade do (neo)liberalismo à brasileira – o vínculo frágil com suas bases alegadas – é