• Nenhum resultado encontrado

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

Não há praticamente qualquer dimensão da vida nacional que não se reflita imediatamente num problema urbano ou num problema que se explore como urbano (...) uma lista interminável quase atordoante pela sua sucessão, seu nunca-acabar, seu revirar-se, transformar-se, reapresentar-se, ampliar-se, deixando o leitor quase sem fôlego, começando sem ponto, recusando o ponto e vírgula, já sendo demais a vírgula, para disparar sem nenhuma pausa até o estilhaçamento em mil partes do espelho urbano que reflete em cada um de seus mil pedaços a mesma imagem (OLIVEIRA, 1977, p. 67).

A urbanização brasileira tem como pilares a concentração fundiária, a industrialização com baixos salários e o crescimento urbano extensivo (que se expressa de maneira mais marcante na formação e no desenvolvimento das regiões metropolitanas), processo que está registrado em uma vasta bibliografia42F

43. O debate sobre planejamento, política e legislação urbana é antigo

e bastante conhecido no Brasil, tendo se fortalecido especialmente a partir da década de 1970. Os últimos 30 anos também têm sido exaustivamente problematizados e discutidos, com ênfase, a partir dos anos 2000, em temas como o papel das operações urbanas consorciadas, o mercado de habitação social, as novas formas de segregação urbana, os grandes projetos urbanos, os grandes eventos, o capitalismo em tempos de financeirização, os novos arranjos políticos e econômicos globais, as novas práticas sociais urbanas críticas43F

44.

Esse contexto (como vários autores também vêm apontando) tem estabelecido novas formas dos velhos processos de desenvolvimento desigual e segregação na (re)produção do espaço urbano. Não obstante, a necessidade já tão reconhecida de reconstruir sobre outras bases o planejamento no Brasil permanece como desafio.

A essência do planejamento urbano e regional concebido e praticado no Brasil atualmente, bem como sua dimensão urbanística (aquela mais

43 Podemos destacar, entre outros, Bolaffi (1992), Bonduki (2002), Camargo et al. (1976),

Kowarick (1979), Maricato (1982,1997, 2000, 2011, 2013), Ribeiro (1994), Monte-Mór (1994), Oliveira (1977, 1981, 2006).

44 Podemos mencionar, como exemplo, Alfonsin (2006), Alves (2015), Andrade, Mendonça e

Faria (2008), Arantes et al. (2000), Araújo e Costa (2007, 2012), Bezerra (2005), Avritzer (2004), Cardoso (2011, 2013), Carlos e Oliveira (2004), Compans (2004), Costa (2000, 2006a, 2006b), Costa, Costa e Monte-Mór (2015), Costa e Mendonça (2008), Davidovich (2004), Fernandes (2006, 2013), Fix (2004, 2007), Frúgoli Jr (2000), Ioris (2008), Klink (2010), Lacerda (2005), Lomar (2006), Magalhães (2007, 2009), Magalhães, Silva e Tonucci Filho (2011), Maricato e Santos Jr (2006), Mayer (2015), Mendonça e Godinho (2003), Melo (2010), Monte-Mór (2010), Moura (2004), Ribeiro (2004), Ribeiro e Lago (2000), Rolnik e Somekh (2003), Santos Júnior (2007), Shimbo (2012), Souza (2002, 2010), Vainer (2000, 2001, 2013).

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

diretamente relacionada à materialidade do espaço), e sua dimensão jurídica, tem permanecido historicamente, apesar das transformações significativas por que tem passado. O planejamento urbano e regional instituído, realizado pelo Estado, opera a partir de uma legislação que o legitima, traduz em práticas específicas ou sua ausência e obriga o seu cumprimento. Mesmo quando a dimensão do desenvolvimento econômico ou a dimensão da justiça social se colocam com mais força, elas operam através de formas específicas de produção de espaço e demandam a produção ou modificação e a aplicação de uma legislação. Talvez por isso a regulação urbana seja um campo de lutas tão expressivo das contradições e dos conflitos implicados na reprodução do espaço urbano.

Uma reaproximação histórica do processo de urbanização brasileira, com ênfase nas relações entre a dimensão institucional-normativa e a produção da cidade (moderna) no Brasil, e no papel do planejamento urbano nesse processo, pode indicar aspectos relevantes na busca dessas novas bases do planejamento. Se, por um lado, cada um desses temas – evolução legislativa, evolução político-institucional, urbanização, planejamento e movimentos sociais – constitui em si mesmo um universo de reflexão e um amplo conjunto de produção bibliográfica, por outro, as maneiras como eles se relacionam na (re)produção do espaço urbano e como o papel do planejamento se define nesse processo continuam abertas à interpretação e ao debate.

A investigação de caráter histórico quanto à constituição institucional- normativa do espaço no Brasil, com ênfase nas suas relações com o processo mais amplo de (re)produção do espaço urbano, se justifica na medida em que, ao indicar qual é o espaço produzido a ser reproduzido – principais agentes, aspectos e mecanismos – e como o planejamento atua nessa (re)produção, ela pode contribuir para uma crítica do planejamento para além da crítica das vicissitudes externas que definem seus (des)caminhos. Isto é, a partir de uma reflexão sobre a (re)produção do espaço em geral, buscamos discutir a estruturação e a reprodução do planejamento em particular, visando contribuir no debate sobre as possibilidades de uma redefinição crítica e de uma atuação política, no âmbito das condições atuais de reprodução do espaço.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

A constituição institucional-normativa do espaço não se separa de sua constituição simbólica nem das contradições objetivas de (re)produção do espaço. Nesse sentido, a investigação que articula a evolução da ordem jurídico- urbanística (no que se refere às normas gerais) e alguns aspectos, momentos, fatos, processos e elementos da urbanização brasileira visa entender os aspectos principais que configuram a arena de produção legislativa federal, e como nas relações entre o quê a legislação reconhece e o quê ela produz se expressa, se define e se estabelece um certo modelo de (re)produção do espaço urbano.

Partindo da evolução do arcabouço jurídico-urbanístico e de sua inserção na constituição institucional-normativa como elemento que cristaliza e redefine arenas de embate pela reprodução do espaço e atua nas suas dinâmicas objetivas, buscamos identificar que papel o planejamento (no sentido amplo, que inclui as formas especializadas de problematização das dinâmicas urbanas e as formas normativas-institucionais de intervenção – as leis, normas, regulamentos, os planos e as estruturas institucionais de planejamento, regulação e gestão urbana) tem, historicamente, na reprodução do espaço urbano no Brasil.

Essa investigação estabelece, como recorte temporal, o período que começa com a Constituição de 1824, que cristaliza um certo “projeto” de país, expressa algumas particularidades da construção da nossa “modernidade” e define os lugares dos principais agentes sociais nesse “projeto”. E vai até a Constituição de 1988, que marca um ponto de inflexão no processo histórico do nosso modelo de urbanização, com a consolidação, no âmbito jurídico, de um novo paradigma. Em que pesem os desafios, as incompletudes e as limitações de uma investigação com recortes temporais e temáticos tão amplos, o que ela propõe trazer de “novo” ao debate é uma forma de articular informações e ampliar articulações já propostas; sua pertinência se estabelece na ênfase em quais seriam as “velhas bases” do planejamento a serem rompidas e sua consistência se define em um certo rigor na escolha de fontes consolidadas e

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

reconhecidas e de exemplos expressivos, bem como na transparência da construção teórica quanto às suas próprias limitações.44F

45

As maneiras pelas quais o planejamento se articula a uma constituição simbólica do espaço e com a esfera das disputas na e pela reprodução do espaço urbano podem indicar até que ponto a permanência do distanciamento entre os objetivos e as consequências do planejamento decorre dos seus

45 O “fio condutor” objeto “concreto” da análise é a evolução da legislação federal, mais

especificamente, as leis que incidem diretamente nas dinâmicas de urbanização, cujos textos “originais” (digitalizados e disponíveis nas páginas da WEB do Senado e da Câmara Federal) e modificações foram analisados. A evolução do planejamento lato senso e stricto senso é abordada em seus aspectos principais e gerais, partir de pesquisa na bibliografia sobre historia da arquitetura, do urbanismo e da cidade no Brasil – entre outros e além das referencias já mencionadas, podemos destacar Azevedo e Andrade (1982), Bardi (1977), Bernardes (1986), Blank (1979), Bruand (1997), Caldeira e Hudson (2004), Chaloub (1996), Costa (1995), Costa (2008), Martins (1994; 2000; 2010), Monte-Mór (2008), Lemos (1989; 1989), Rago (1987), Reis Filho (2006), Ribeiro (1997), Rolnik (1997), Santos (2008), Segawa (1996), Sevcenko (1998), Vasconcelos (1976) e Xavier (1987). Alguns temas específicos também demandaram pesquisa bibliográfica, como história do Brasil (LINHARES, 2000), aspectos sociais (CARVALHO, 1998; CHAUÍ, 1994, 1997; MARINS, 1998; PAOLI, 1986) e temas agrários (ALENCAR, 1990; DUPAS, 2000; LOUREIRO, 1981; MCMICHAEL, 2000; MOREIRA, 2000; PEIXOTO, 2008; SACHS, 1993). A discussão sobre as leis tem um foco urbanístico e um foco nos aspectos simbólicos, isto é, não temos a pretensão de fazer uma análise jurídica e nem estabelecer um debate sobre o Direito. As referências jurídicas utilizadas definem um recorte bibliográfico básico, especialmente no âmbito do direito urbanístico, entre as quais mencionamos Alfonsin (1997), Alochio (2005), Castro (1981), Correa Montoya (2012), Gaio (2015a, 2015b); Fernandes (1998, 2001, 2006a, 2006b, 2008, 2011, 2013), Fonseca (1989), Lomar (2006), Lyra (1997), Magalhães (2007, 2009), Mattos (2006), Mello (2016), Moreira (2006), Pinto (2011), Pessoa (1981), Reis (2016), Rocco (2009), Sandroni (2013), Silva (2008) e Walcacer (1981). A proposta dessa parte da pesquisa foi identificar relações entre aspectos amplamente conhecidos nos meios especializados da urbanização, da legislação federal que impacta diretamente na urbanização e no planejamento, e não recontar essa história ou questionar essa bibliografia. Por esse motivo, na maior parte das vezes, essas fontes estão implícitas no texto, evitando o excesso de menções a referências consolidadas. Aquelas que são explicitadas são, principalmente, de trabalhos que se propuseram uma análise de perspectiva histórica das relações entre legislação, política pública e produção do espaço e, por isso, são particularmente importantes na pesquisa, como os estudos de Rolnik (1997) para o caso de São Paulo, de Ribeiro (1997) para o caso do Rio de Janeiro e de Bonduki (2002) para a temática da habitação de interesse social, e trabalhos que sintetizam os principais aspectos históricos do planejamento, como Monte-Mór (2008), Costa (2008), os aspectos centrais da relação entre o arcabouço jurídico- urbanístico e sua apropriação nas elaboração dos planos urbanísticos, como Fernandes (2008) e outros aspectos marcantes do debate do direito urbanístico para a pesquisa, como Gaio (2015) e Pinto (2011), além de Maricato (1982, 1994, 1997a, 1997b, 2000, 2011, 2013) que tem uma extensa produção bibliográfica que trata de vários dos aspectos analisados, e Martins, que trata da formação da questão fundiária brasileira (2010) e das particularidades da nossa Modernidade (1994, 2000). Uma característica que destaca os trabalhos de Rolnik e Ribeiro em relação às demais fontes é que eles descrevem a estrutura fundiária e especificam nomes dos principais agentes envolvidos nos processos que discutem – donos das terras rurais e seus adquirentes para realização dos empreendimentos urbanos, acionistas das principais empresas loteadoras, urbanizadoras, construtoras, incorporadoras e de infraestrutura e serviços urbanos, agentes do poder público. No que se refere à especificação de outros documentos de época, como anúncios em jornais, música e literatura, Bonduki também se destaca.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

descaminhos, impostos pelos agentes privilegiados naquelas disputas, ou se tal permanência também decorre de características estruturais e de dinâmicas do próprio planejamento.

A produção da cidade na urbanização sem (ou antes da)