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Os movimentos sociais no campo na América Latina têm uma íntima relação com a pedagogia emancipadora e os diagnósticos e planos participativos no meio rural. O aumento da produção de abordagens críticas de questões sociais e políticas que ocorre a partir da década de 1960, em relação a temas urbanos, ocorre também em relação a temas rurais. A mobilização em torno da Reforma Agrária inspirou e influenciou a configuração inicial do ideário do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Atualmente, em relação ao planejamento rural, a ideia de que o planejamento participativo é de fato um co- planejamento está relativamente estruturada e tem uma certa aceitação nos meios institucionais. Há, na formação profissional, a possibilidade efetiva de capacitação nesse tipo de planejamento, dentro dos campos disciplinares. Há também, na prática profissional, demanda por esse tipo de serviço, cujo produto reflete essa lógica, especialmente por uma certa simplicidade. Os Planos de Desenvolvimento, os projetos de atividades produtivas, os projetos de parcelamento, entregues para formalizar os assentamentos ou para acesso a financiamentos demonstram isso19F

20.

A diferença estrutural, lógica e funcional entre os planos urbanos e regionais e a abordagem dos planos e do planejamento no meio rural não decorre apenas da diferença entre as especificidades da cidade e do campo20F

21.

20 Isso não quer dizer que não existam planos convencionais, complexos e tecnocráticos para o

meio rural. Eles existem, especialmente no âmbito do empresariamento rural, representado pelo agronegócio. Ocorre que, quando a proposta é fazer algo diferente disso, existe toda uma estrutura que torna possível, sem sair daquilo que já é institucionalizado.

21 Existe todo um debate quanto aos conceitos de campo e cidade, rural e urbano, inclusive

quanto às limitações desses conceitos para pensar o espaço atual, que, pelos limites deste trabalho, não é objeto de nossa reflexão. Entre os autores que discutem a problemática rural- urbano no Brasil, no âmbito dos estudos urbanos e regionais, destacamos, Monte-Mór (1994, 2003), Oliveira (1977, 1981) e Santoro (2014).

Participação e planejamento

A noção de participação praticada aqui incorpora de maneira efetiva o diálogo e a construção conjunta. Há uma mudança na forma de perceber as pessoas às quais o plano se destina. Parte-se do pressuposto de que as pessoas sabem o que elas querem, sabem do que elas precisam, estão preparadas para formular problemas e discutir soluções.

Um dos métodos utilizados no planejamento de assentamentos de Reforma Agrária é o Diagnóstico Rápido Participativo Emancipador (DRPE). Ele se baseia nos Diagnósticos Rápidos Participativos (DRPs), que ganharam força principalmente a partir da década de 1980, como forma de, através de técnicas participativas, incluindo dinâmicas de grupo e técnicas de pesquisa qualitativa, levantar um conjunto suficiente de dados em um curto período, dinamizando os processos de planejamento.21F

22 O DRPE, além disso, busca transformar o

processo de produção desses dados em um processo de construção ou fortalecimento das pessoas envolvidas enquanto sujeitos. Ele é estruturado através do diálogo de saberes, provocando e ou incentivando a reflexão dos agentes sociais sobre a realidade em que vivem, colocando o saber técnico especializado como mais um agente desse diálogo. O método busca contribuir para a formação de consciência crítica, elemento fundamental na construção dos sujeitos. No planejamento dos assentamentos, o DRPE é combinado com o Método Altadir de Planejamento Popular (MAPP), articulando a reflexão crítica sobre a realidade com a construção conjunta de alternativas e o comprometimento pessoal e coletivo com sua realização22F

23.

A elaboração do plano é uma sistematização de dados em um documento, mas ela não traz nada novo. Os técnicos devem se posicionar a partir de seu conhecimento especializado, construir seus argumentos e explicá-los de maneira que as famílias possam se posicionar criticamente. Elas são incentivadas a refletir, a observar, a construir problemas e soluções, que não são pré-definidas. Não há uma proposta apresentada para avaliação. Todas as famílias do assentamento participam de todos os debates e são incentivadas a falar. O documento final, o Plano, é muito menor e muito mais simples que os 22 Para uma síntese sobre os DRPs ver, entre outros, Chambers e Guijt (1995).

23 Uma abordagem mais detalhada sobre o DRPE e o MAPP, bem como uma descrição das

experiências de aplicação do método relatadas neste texto e outras mais, se encontra em Pereira (2017).

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planos do planejamento urbano e urbano e regional mais comuns, é composto de registros das atividades coletivas e todas as pessoas o reconhecem e se reconhecem nele.

Há, no entanto, uma disjunção na relação entre o planejamento, o espaço e a vida no (do) assentamento. O espaço da produção é compreendido como espaço da (constituição da) autonomia, e o exercício consciente dessa autonomia é entendido como condição para construção eficaz da (nova) vida coletiva no (do) assentamento. O processo de planejamento desse espaço é estruturado a partir de uma pedagogia emancipadora, que vai desde a reflexão conjunta sobre a realidade do assentamento ao planejamento mais direto (inclusive financeiro) da produção propriamente dita, e o produto que o sintetiza, o plano, é um documento no qual todos os envolvidos se reconhecem. A produção de espaço (no sentido mais literal da expressão) na constituição dos assentamentos, por outro lado, é explicitamente heterônoma. O parcelamento do solo e a distribuição das famílias no assentamento, a definição das áreas de proteção ambiental e demais áreas coletivas, o projeto arquitetônico das moradias, via de regra são estabelecidos sem qualquer participação da comunidade, e na maioria dos casos já estão definidos no momento da realização daquele referido processo de planejamento. O parcelamento do solo, muitas vezes, não é colocado como uma questão. Em geral, o profissional especializado marca as áreas de reserva legal e permanente a priori e distribui as famílias na área restante da forma que lhe parece mais eficiente ou equitativa. Quando o assentamento está ligado a movimentos sociais politizados, em geral, há uma pressão para que as parcelas das famílias sejam rigorosamente iguais ou por áreas de cultivo coletivo. Quase sempre, é como se a constituição material daquele território derivasse naturalmente do tamanho do terreno e do número de famílias23F

24. Embora não se possa superdimensionar as consequências dessa

maneira de formar o território propriamente dito, ela não deixa de indicar uma certa falta de relação ou uma relação muito limitada das famílias com o

24 Algumas vezes, há uma atribuição de caráter simbólico a posteriori, criando alguma forma de

familiaridade com o novo território. Como exemplo, no Assentamento Cachoeira, localizado no Município de Unaí (MG) e formado na sua maioria por famílias provenientes do Distrito Federal, a estrada principal, que cortava o assentamento no meio e dava acesso às parcelas, era chamada pelos moradores de “Eixão”.

Participação e planejamento

assentamento como um todo, ou mesmo com a ideia de um todo. As áreas de preservação se tornam o lugar do desconhecido, do distante. O que possibilita que em um assentamento com alguns anos de existência os moradores não conheçam de fato essas áreas: “Dizem que tem uma cachoeira bonita lá, mas nunca fomos não, dizem que tem onça”. Além disso, as famílias têm uma relação forte com sua parcela e fraca com o assentamento como tal. Essa não-relação mais profunda com o assentamento acaba por se tornar mais um fator de favorecimento de sua desintegração diante de períodos de dificuldade. É como se a nova vida de uma família estivesse inscrita em um pedaço individual de terra que está flutuando no vazio.

Nos assentamentos que são construídos a partir de uma mobilização política prévia mais estruturada, tem-se a situação inversa: um controle tão rigoroso das lideranças sobre aspectos como igualdade, uniformidade ou coletividade que acaba por afastar também a possibilidade da formação do assentamento como formação conjunta de seus sujeitos.

O caso do reassentamento das famílias removidas do Parque Nacional Grande Sertão Veredas (PNGSV), uma comunidade tradicional, por outro lado, permitiu criar um contraponto interessante e explorar essas questões, por uma conjunção de elementos, como: o apoio formal e direto do antigo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e da Fundação Pró-Natureza (FUNATURA), que trabalharam pelo reconhecimento da moradia (e do direito à moradia) dessas famílias, chamadas posseiras em discursos que buscavam desqualificá-las; o envolvimento da equipe de planejamento no processo desde o conflito em torno da constituição mesma do assentamento. A caracterização das famílias como comunidade tradicional propriamente dita e seu reconhecimento pelo INCRA possibilitaram a formação de um assentamento exclusivo e com uma área que permitisse às famílias, em números absolutos, ocupar a mesma área que ocupavam no Parque. O planejamento do parcelamento do assentamento aconteceu junto e com a mesma abordagem do PDA, tornando-se parte dele. Foram realizados vários percursos por toda a área, levantados e discutidos pontos de fragilidade ambiental, perfis das famílias, limitações e possibilidades de áreas de reserva. As famílias criaram três tipos de parcela, em função de água, área, fertilidade,

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vegetação e limites e possiblidades de uso, que foram distribuídas de acordo com número de pessoas e atividades agrárias preferenciais. No fim do processo, as famílias tinham muito conhecimento sobre todo o assentamento e sabiam exatamente os ondes, os comos, os para quems e os porquês do território que eles estavam construindo. Eles se identificaram sem problemas no mapa (projeto de parcelamento) que formalizou essa constituição.

Se, na configuração do território do assentamento, as frestas eram maiores e houve uma possibilidade de questionamento dos processos estabelecidos, na direção da pedagogia emancipadora proposta no PDA, a situação da moradia era uma grande e monolítica parede. A casa, nos assentamentos do INCRA, era a situação mais extrema: havia um projeto único, obrigatório para todo o país, que acompanhava uma lista de materiais de construção e deveria ser minuciosamente seguido, para que as famílias pudessem utilizar o financiamento disponibilizado pelo Governo Federal através CEF. Isso valia, inclusive, para comunidades tradicionais. Em 2002, enquanto para uma moradia social urbana de baixíssimo custo, o valor mínimo calculado eram cerca de quinze mil reais, o recurso disponibilizado para a construção de cada casa nos assentamentos era 2.500 reais. Isso tendo em conta que os assentamentos ficavam distantes dos centros urbanos, e a taxa de transportes ainda elevava o custo do material em relação a uma moradia urbana. O projeto padrão tinha 31 metros quadrados. O INCRA e a CEF contavam com um profissional para verificar em campo se a lista de materiais e o projeto foram seguidos, e havia uma concessão: o projeto previa telhado em fibrocimento e, como as condições térmicas da casa ficavam muito ruins, era permitido (extraoficialmente) que as famílias trocassem alguns itens específicos (como piso ou reboco) por telhas cerâmicas. E só. Assim como a terra mesma, as condições financeiras de começar as atividades e a assistência técnica, essa casa também não era doada às famílias. Trata-se de (mais) um financiamento. No caso do assentamento São Francisco, das famílias do PNGSV, não fez a menor diferença o fato de se tratar de uma comunidade tradicional. As famílias construíam suas casas com terra, madeira e palha havia gerações. Elas tentaram encontrar um projeto híbrido, com paredes em adobe, telhado em cerâmica e adoção do “Kit banheiro completo”, mas a CEF não aprovou e as

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famílias optaram por construir sem o financiamento, da forma como estavam acostumadas.

Essa disjunção entre espaço de produção e produção de espaço – que é também entre espaço de produção da produção e produção do espaço da vida – implica uma contradição entre autonomia e heteronomia.