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A mobilização social urbana e a busca do planejamento por novas bases

A industrialização brasileira, que marca o período em que o país se torna urbano, se realiza sobre uma base previamente definida de reprodução do espaço. Embora provoque mudanças profundas em vários aspectos dessa base, ela não altera essencialmente sua conformação e lógica. O capitalismo industrial no Brasil se estabelece a partir de articulações com o “capitalismo fundiário”, mas não contra ele. A configuração da produção do espaço moderno pré- industrial se constitui através de três ciclos básicos de produção do espaço (bem como das articulações entre eles e de suas reconstruções sobre si mesmos), marcados por recortes de classe. Ela implica um papel instrumental da dinâmica de (re)produção da cidade (e da metrópole e da região), no qual apenas os elementos diretamente relacionados à implementação do modelo e ao seu funcionamento (incluindo dividendos econômicos e políticos para seus principais agentes) são efetivamente considerados problemas de planejamento pelos gestores públicos. Essa forma específica de inserção da dinâmica urbana na produção do espaço pautou as maneiras pelas quais a esfera federal definiu

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

historicamente os aspectos que mereciam sua tutela nas dinâmicas de produção e reprodução do espaço urbano brasileiro. Os aspectos envolvidos na concepção e no funcionamento da cidade como um todo não faziam parte da abordagem, nem para cada cidade individualmente, nem para uma estruturação geral entre elas. Apesar das mudanças significativas no cenário internacional e mesmo no cenário nacional, a base agrária de sustentação do poder político e a dependência que os agentes nacionais têm da articulação com agentes do capitalismo internacional são fatores fundantes e permanentes, que atravessaram mais de cem anos de história urbana do país.

As mudanças que ocorrem nas cidades com a industrialização (e sequencialmente com os diversos processos de reestruturação produtiva global) não mudaram essa base fundante. Todo o esforço dos especialistas do planejamento em demonstrar a importância de estabelecer projetos globais de cidades e metrópoles, sistemas de cidades em redes, processos contínuos de planejamento urbano e regional de médio e longo prazo e adequações na regulação urbana nunca conseguiu de fato mobilizar a classe política e aproximar o plano não escrito e sempre praticado ao Plano sempre escrito e nunca praticado como um todo.

Mas esse lugar dado à cidade no projeto moderno brasileiro também nunca conseguiu calar a política da cidade. As contradições do espaço, suas resistências, seus conflitos nunca deixaram de existir e em alguma medida sempre impuseram algum limite, algum condicionamento ao projeto geral e às suas dinâmicas. As rugosidades do espaço nunca foram completamente aplainadas e suas ameaças concretas ou virtuais eram tais que, em certos períodos, precisariam ser violentamente combatidas para garantir a reprodução dessa configuração (os governos totalitários).

Alguns problemas urbanos, especialmente nas metrópoles, transbordavam a todo momento qualquer continente que os procurasse conter. As favelas, a precariedade dos loteamentos periféricos, as dificuldades da mobilidade urbana, a demanda por moradia, os problemas de saneamento ambiental eram expressivos e se misturavam aos problemas de educação, saúde, renda... A vida da cidade tem uma dinâmica própria e dá ensejo a lutas e mobilizações. Além disso, o modelo de produção do espaço no Brasil e sua

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reprodução engendram outras contradições. O apoio à organização dos produtores rurais, com vistas à universalização da “Revolução Verde”, contribuiu para maior mobilização e politização no campo, bem como favoreceu a atuação crítica da universidade. A (re)produção da cidade como negócio cria e fortalece estratos intermediários que crescem e passam a buscar representatividade política para seus próprios interesses. Lá onde a cidade nunca e jamais foi pensada como algo para todo mundo, pelo menos da mesma forma, e nem como algo a constituir vitalidade própria, ali mesmo as lutas mais significativas puderam nascer e crescer a despeito de serem cotidianamente massacradas, encolhidas, distorcidas. E foi nesse terreno das lutas urbanas que os técnicos também construíram sua luta em torno das formas de condução do urbano pelo Estado. A experiência na Ditadura permitiu aos especialistas críticos finalmente perceberem que a inclusão de certos aspectos como questão efetiva de atuação do Estado não viria no bojo de um debate técnico, mas de uma luta política.

As lutas pela redemocratização do país que se rearticularam a partir da década de 1970 vão também cada vez mais se constituir como lutas por direitos sociais, por direitos sociais urbanos e pela conquista do seu reconhecimento estatal e ganhar força na década de 1980. Nesse contexto, o fortalecimento da crítica no planejamento, bem como (e muitas vezes através da) sua aproximação dos movimentos sociais urbanos, também possibilitou a construção de uma reflexão e uma prática centradas na definição de novas bases e novas formas de atuação. O engajamento do planejamento, como forma de problematização e de luta urbana social, contribuiu para a redefiniçao do seu papel na constituição institucional normativa do espaço, com a ampliação da arena de lutas em torno da produção de uma nova ordem jurídico-urbanística.

Essa dinâmica contraditória, que cinde a aproximação crítica do planejamento e coloca em disputa o seu sentido e o seu papel na (re)produção do espaço urbano, vai se cristalizar na Constituição Federal de 1988 (CF/1988) que, ao mesmo tempo, estabelece o princípio da função social da propriedade como paradigma e consagra o poder do povo como a coletividade que esse “social” define, diretamente, e consagra também o modelo de planejamento e regulação centrado na produção de planos e no protagonismo de sua institucionalização, tal como vinha sendo praticada.

A constituição institucional-normativa na (re)produção do espaço no Brasil

A CF/1988 marca um ponto de inflexão na constituição institucional- normativa do espaço, que se estabelece como o aumento da permeabilização das fronteiras da arena de lutas sociopolíticas e abertura de novos horizontes, pelos quais se definirão ou se aprofundarão boa parte dos conflitos urbanos nas décadas seguintes.

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