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O conceito de habitus traz uma contribuição no entendimento do condicionamento das práticas sociais na reprodução do espaço e das formas de leitura e elaboração das respostas pelos especialistas28F

29. Ele é uma referência

inicial e contribui para uma aproximação na reflexão quanto à dimensão simbólica do espaço.

De certa forma, a abordagem de Bourdieu está sintetizada no modelo gráfico que ele denomina espaço social, um gráfico bidimensional onde se distribuem indivíduos e práticas, gostos e valores, em função de quantidades de capital econômico e cultural (que são os dois “eixos” do gráfico). As quantidades de capital cultural e capital econômico definem as posições dos indivíduos e configuram cada classe social, entendida aqui como um grupo de pessoas que ocupam posições semelhantes nesse espaço social. Essas posições são chamadas relacionais, por se definirem sempre umas em relação às outras. Os indivíduos e as características sociais, distribuídos no mesmo espaço e segundo os mesmos critérios, definem as interseções que determinam as características sociais do indivíduo – práticas, gostos, valores, opiniões, toda a configuração de seu sistema simbólico. Esse conjunto de “características sociais” que determinam o indivíduo é chamado de habitus. Segundo o autor,

o conceito de habitus pode ser entendido como um sistema de disposições, no sentido ambíguo da palavra, que resulta de um processo biográfico, de uma história individual e coletiva, fazendo com que identifiquemos classes de habitus relativamente homogêneos (embora nunca idênticos), os quais possibilitam um comportamento relativamente homogêneo, no que diz respeito às suas práticas, seus

28 Para uma abordagem da instituição do direito urbanístico ver, entre outros, Lyra (1997), Pinto

(2011) e Silva (2008).

29 Essa abordagem não é nova, tendo sido discutida, em relação à academia em geral e a alguns

campos disciplinares, pelo próprio Bourdieu, e outros a partir dele.

A constituição simbólica do espaço

anseios, seus gostos e toda a configuração do seu sistema simbólico (BOURDIEU, 1989, não paginado).

Um aspecto essencial do habitus é ser naturalizado. Ele tem essas propriedades de determinação comportamental e de reprodução do sistema de posições porque não é percebido como tal. Os elementos que o compõem são aqueles definidos pelas características consideradas naturais, individuais ou pessoais. Os gostos, as preferências, as escolhas, a subjetividade, as disposições, as atitudes mais banais, as razões práticas (como ele denomina). E são habitus de classe, isto é, essas características que se pensam individuais ou naturais são características sociais – no sentido de socialmente construídas e de socialmente compartilhadas. Os habitus funcionam como “programas” que tornam os indivíduos pré-dispostos a determinadas escolhas e pré-dispostos a perceber o mundo de determinada maneira, ou perceber determinados aspectos do mundo. As razões práticas de que fala Bourdieu (1983) implicam a internalização das noções contidas nas ações e opiniões práticas consideradas verdadeiras, óbvias ou simplesmente naturais.

A consolidação e a perpetuação das relações de poder, como exemplo29F

30,

pressupõem a produção e a interiorização de percepções específicas. O habitus realiza essa operação. A produção social velada das práticas e comportamentos mais íntimos e pessoais consolida a reprodução do contexto caracterizado pelo “espaço social”, sem que as relações de dominação sejam questionadas, simplesmente porque não são percebidas na profundidade do seu alcance.

Para Bourdieu, o que torna possível essa reprodução pré-programada do espaço social (e das relações de reprodução que ele caracteriza) é a noção de

cultura. A cultura é o fator que legitima práticas sociais, que as torna “naturais” e

inquestionáveis, que incita e legitima sua reprodução, que permite criar similaridades entre situações diferentes e apagar as similaridades de situações semelhantes.

Esse conceito permite um certo movimento, incorporando o fato de que na dinâmica de reprodução do espaço, ocorrem transformações culturais. Há

30 Podemos mencionar, entre outros, o caso das vilas operárias brasileiras na discussão de Rago

(1987), que tem Foucault como principal referência. A produção do cotidiano controlado e esvaziado politicamente que caracteriza as vilas operárias tem como condição de eficácia que a dominação e o controle não sejam percebidos.

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assimilações e conflitos de habitus, contradições e imposições, que se expressam em diferentes medidas nesse processo. No entanto, isso ocorre dentro de certos limites, os quais possibilitam a onisciência do olhar teórico e a representação fechada do espaço social. O conceito de habitus tende a ser relativamente determinístico em relação aos comportamentos, práticas, percepções e aspirações que “cabem” a determinado grupo social, possibilitando a caracterização de um indivíduo a partir de um grupo ou de um grupo a partir de um indivíduo. As transformações, assim, são inteiramente definidas na desigualdade de forças simbólicas, isto é, ainda que haja mudança no habitus, essa mudança apenas confirma as relações simbólicas de poder que realizam a reprodução do status quo (muitas vezes, como exemplo, trata-se da apropriação de elementos do habitus de grupos que ocupam posições privilegiadas no espaço social).

A abordagem de Bourdieu traz uma contribuição para o entendimento da conformação dos processos e das noções que possibilitam que a constituição simbólica do espaço determine a sua reprodução a partir do condicionamento das práticas sociais. No entanto, a realidade social não é transparente ao olhar teórico e nem totalmente apreensível em sua amplitude. O autor também aponta que as experiências individuais e coletivas na vida cotidiana, a prática espacial, também podem romper com as determinações do espaço social. A reprodução do espaço social, em sua essência, não deve ser entendida como inexorável. Isso levaria, no limite, a uma impossibilidade da emancipação, que se realiza nas práticas espaciais críticas, na constituição da autonomia do sujeito social. Há que se pensar os processos de ruptura com tais determinações.

Se, por um lado, cada pessoa é criada e transformada pelo ambiente à sua volta, por outro, cada pessoa cria e transforma o ambiente à sua volta e esse é o seu mundo. Há um movimento entre criar (o sujeito que age) e ser criado (o sujeito que “é agido”, o sujeito sujeitado), entre ser condicionado e criar as condições, o que confere centralidade e também potencial à experiência (pessoal, social, física, corporal, cotidiana). Entre as aproximações que se dedicam a entender esse movimento, destaca-se a contribuição da psicologia social crítica.

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