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planejamento, legislaçao e arenas de lutas urbanas pós-constituição de

A construção de uma práxis urbana

A proposta de Emenda Popular à Constituição de 1988 trazia uma separação expressa entre o direito de propriedade e o direito de construção, condenava a retenção especulativa da propriedade imobiliária urbana, enfatizava os direitos sociais urbanos e propunha a figura do “Plano de Ação”, um instrumento menos complexo e ao mesmo tempo mais eficaz que o Plano Diretor, no caminho para uma Reforma Urbana.

Apesar de sua redução e de sua reelaboração no processo de incorporação à Constituição Federal de 1988 ter sido amplamente criticada e ter contribuído, em parte, para o enfraquecimento dos movimentos sociais urbanos, a Carta Magna trouxe avanços significativos em relação às legislações anteriores e ficou conhecida como “Constituição Cidadã”. Desse processo e desses avanços, exaustivamente debatidos, problematizados e revisitados na literatura, destacamos a função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII) e da cidade e o protagonismo dos planos diretores (art. 182).

Além da função social da propriedade, a CF/1988 institui o princípio da função social da cidade, pela primeira vez na legislação brasileira. Ela vincula expressamente a função social da propriedade ao plano diretor. E não estabelece uma perda da propriedade pelo não cumprimento da sua função social, mas algumas “punições” que, no limite, levam à desapropriação (como é também o que ocorre no meio rural).

A noção de função social da propriedade decorre da percepção de que o valor de uso e o valor de troca da propriedade imobiliária urbana são coletivamente construídos, são “função” da atuação de uma coletividade117F

118. Por

isso, ela tem também um papel específico no desenvolvimento dessa coletividade, numa relação que, uma vez estabelecida, é de mutua e contínua 118 O conteúdo que define as possibilidades de uso e apropriação da propriedade imobiliária

como urbana é essencialmente definido coletivamente. Tendo em mente a cidade capitalista, não apenas o valor de troca, mas até mesmo o valor de uso da propriedade imobiliária depende da coletividade – não há uso urbano possível para uma propriedade imobiliária flutuando no vazio. O que traz a dimensão do aproveitamento da propriedade é a dinâmica coletiva de construção e uso de outras propriedades. Portanto, se ela é socialmente definida, ela também é socialmente caracterizada, isto é, toda propriedade urbana desempenha um papel na configuração e no desenvolvimento da cidade como um todo. Esse papel configura um direito-responsabilidade, isto é, um direito que só existe no âmbito da responsabilidade do seu exercício, de acordo com os interesses da coletividade que o constituiu. A dinâmica urbana produz problemas e custos, que são socializados. Os moradores da cidade não apenas pagam pela instalação e manutenção da infraestrutura, dos equipamentos e dos serviços urbanos necessários ao seu funcionamento como definem, como exemplo, padrões de mobilidade de acordo com padrões de crescimento urbano.

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determinação nas dinâmicas urbanas. O direito à propriedade urbana é um direito-responsabilidade, que implica comprometimento com tal processo coletivo. Uma vez que o Estado representa os interesses da coletividade e o plano urbano é a forma de representação da distribuição desses interesses no território, o plano cria o perfil desse direito. Isto é, antes do plano não há direito

urbano imanente à propriedade. O plano cria e caracteriza o direito de construir

para a propriedade imobiliária urbana. Essa é a concepção apresentada pela CF/1988, como afirmam Gaio e Fernandes:

Portanto, a delimitação do conteúdo essencial do direito de propriedade urbana é determinada não apenas pela utilidade econômica ou qualquer outro critério similar, mas também pelo conjunto de necessidades sociais de uma cidade que são percebidos e reconhecidos em um dado momento histórico. (...)

Por conseguinte, o direito de construir não é um direito subjetivo imanente à propriedade, mas apenas uma das faculdades jurídicas que se subordinam às determinações do Estado tendo em vista a totalidade dos valores constitucionais a serem salvaguardados.

(...)

Portanto, ao contrário do que defende parte da doutrina nacional, não há como considerar que a proteção constitucional do direito de propriedade garante de modo geral e irrestrito o direito de construir. (GAIO, 2015, p.195-197)

... na nova ordem jurídica, o plano urbanístico não é tão somente um instrumento técnico de ordenamento territorial, já que é o plano urbanístico – o plano diretor – que define o que é o direito de propriedade imobiliária na ordem jurídica brasileira.

Na nova ordem jurídico-urbanística, o direito de propriedade é um direito vazio, cujo conteúdo vai ser dado pelo plano urbanístico. (FERNANDES, 2008, p.128)

No entanto, a Constituição Federal, nesta matéria, como em várias outras, não é a expressão de um novo pacto social amplamente construído, mas o resultado da expressão das lutas entre os vários agentes envolvidos na reprodução do espaço na arena de produção da legislação, em que nem todos os agentes participam e nem participam da mesma forma. Essa característica também ocorre no processo de elaboração simbólica da legislação, que estabelece o seu sentido no senso comum especialista e geral. A representação social da função social da propriedade imobiliária vai configurar diferentes aspectos do empobrecimento da dimensão coletiva do princípio em diferentes grupos sociais.

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Vale lembrar que a consolidação do princípio da função social da propriedade na Constituição Federal de 1988 expressa a continuidade de um processo, cujo marco inicial foi a Constituição de 1934, de conflitos entre a busca por uma apropriação do sentido coletivo constitutivo da propriedade imobiliária, já reconhecido em vários países, e a persistência de uma concepção privatista do direito de propriedade. Nesse período, as sucessivas configurações desse princípio nas Constituições de 1937, 1946 e 1967 expressam simbolicamente as dinâmicas particulares da evolução desse campo de lutas. Nesse sentido, podemos destacar a posição de algumas referências na literatura do direito urbanístico brasileiro. Enquanto alguns autores, como Alochio (2005), Pinto (2010), Lyra (1997) e Silva (2012) destacam suas análises do princípio da função social da propriedade tendo como marco a CF/1988, outros autores procuram reforçar uma linha de continuidade e de progressividade em relação a esse princípio a partir da Constituição de 1934, entre os quais mencionamos Castro, Gaio, Fernandes e Mattos:

A Constituição de 1934 refletiu uma mudança de enfoque, ao abordar a matéria do direito de propriedade. Sua principal inovação foi quanto à inserção do interesse social em seu conteúdo. (...) A nova redação do dispositivo, no nosso entender, traduz uma nova aspiração social, um novo tratamento do direito de propriedade, refletido na norma constitucional. Não obstante o momento de inquietação político-social que atravessava o país na época, verdade é que havia os condicionantes sociais e culturais que permitiam esta nova visão do direito de propriedade, a ponto de ser introduzido na Constituição Federal, e que veio a ser basicamente reproduzido na Constituição de 1937.

Já a Constituição de 1946 ainda incluiu o elemento ‘interesse social’ em sua redação. Mencionou a garantia do direito de propriedade junto ao direito à vida e à segurança individual. Omitindo a expressão ‘plenitude do direito de propriedade’, só encontrada nas constituições de 1824 e 1891, especificou, no seu artigo 147, que o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social.

Finalmente, a Constituição de 1967 (com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 1/69) não fez qualquer inovação mais profunda na questão do direito de propriedade, garantindo-a constitucionalmente como princípio da ordem econômico-social. Explicita, entretanto, em seu texto, que esta ‘ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, tendo como base, entre outros, a função social da propriedade (CASTRO, 1981, p.168-169). No caso brasileiro, por exemplo, não são perceptíveis diferenças significativas entre as Constituições de 1934 e 1946 no que se refere à proteção ambiental. Embora o tratamento normativo dado ao princípio da função social da propriedade tenha apresentado variações, não foi suficientemente relevante para fundamentar uma redefiniçao do direito de propriedade. (....)

Apenas sob a vigência da Constituição de 1967, e nitidamente influenciada pela literatura jurídica italiana, a doutrina brasileira a partir

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dos anos 70 progressivamente adere ao entendimento de que o princípio da função social incide sobre o conteúdo do direito de propriedade. (...) Nesse contexto, foi acolhida por renomados juristas e urbanistas na Carta de Embu a tese apresentada por Eros Grau, na qual estabelecia que ‘o direito de propriedade’, assegurado na Constituição, é condicionado pelo princípio da função social da propriedade, não devendo, assim, exceder determinada extensão de uso e disposição, cujo volume é definido segundo a relevância do interesse social.

Ainda que naquele momento a correlação de forças políticas tenha sido desfavorável à aplicação das propostas contidas na Carta de Embu, o fato de um grande jornal brasileiro ter classificado o Anteprojeto de Lei apresentado pela Prefeitura de São Paulo como ‘intervenção na propriedade’ ilustra de maneira evidente o fortalecimento da concepção que vincula a atribuição da propriedade urbana à satisfação dos interesses do conjunto da cidade.

Ressalta-se ainda que a mudança de percepção acerca da propriedade urbana é em boa parte também devida às próprias circunstâncias da realidade. (....)

Portanto, ainda que o significado atribuído ao princípio da função social da propriedade seja objeto de disputa ideológica, vê-se que o seu alcance pode ser avaliado por meio do grau de intensidade das restrições ao conteúdo do direito de propriedade (GAIO, 2015a, p. 154- 159).

Trata-se de princípio que vinha sendo repetido por todas as constituições brasileiras desde 1934, sem que tivesse sido claramente definido ou devidamente operacionalizado através de mecanismos constitucionais e legais que permitissem e garantissem seu cumprimento. Somente na Constituição Federal de 1988, o princípio da função social da propriedade encontrou uma fórmula consistente. (...) Culminando um processo de reforma jurídica que começou na década de 1930, o que a Constituição de 1988 e o Estatuto a Cidade propõem é exatamente essa mudança de ‘olhar’, isto é, de paradigma conceitual de compreensão e interpretação, substituindo o princípio individualista do Código Civil pelo princípio da função social da propriedade – que, diga-se de passagem, se encontra presente de maneira central nas ordens jurídicas de muitos dos países capitalistas mais avançados (Fernandes, 2001, p. 14-16).

De início, registre-se que a função social da propriedade é um princípio jurídico plasmado no ordenamento jurídico brasileiro, isso é, que tem sua matriz juspositiva no texto constitucional, no qual se faz presente desde a Carta de 1934 até a atual, de 1988, quando passou a se afirmar como princípio constitucional de contornos bem mais determináveis (MATTOS, 2006, p.37).

A concepção do princípio da função social da propriedade, que segue em disputa, no entanto, não expressa, para a maioria da sociedade brasileira, uma apropriação efetiva daquilo que a CF/1988 estabelece, enquanto o direito à

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propriedade ser constituído, e não limitado, socialmente118F

119. Para o senso comum

jurídico e para o senso comum em geral, em que o direito de propriedade é naturalmente ilimitado, engendra um direito de construir naturalmente ilimitado e, com isso, toda forma de regulação é uma limitação artificial119F

120, o plano diretor

(mais especificamente, a regulação de parcelamento, uso e ocupação do solo) será apenas um novo nome para essa limitação. Para o senso comum urbanístico, em que planejamento e regulação urbana é desenho – mapa da cidade, projeto urbano, zoneamento – e forma, e não processo, a função social da propriedade será um novo nome e uma nova proteção jurídica ao seu trabalho de zoneamento e parametrização. Para os movimentos sociais urbanos, em que o “social” tem um aspecto político ligado às massas, aos direitos sociais, à social- democracia, a função social tem o papel (único) de trazer mudanças sociais à cidade.

Em um modelo de (re)produção do espaço no qual a perda da noção de todo e de coletivo é uma construção histórica fundamental, em que a representação social do planejamento e da regulação é negativa e produz o distanciamento ou a rejeição da sociedade em relação à sua prática, em que o mito do valor de troca da propriedade dando origem a si mesmo é fundante e em que os urbanistas construíram seu trabalho de forma isolada das condições de reprodução do espaço e o estruturaram historicamente em termos de zonas e parâmetros idealizados, a função social da propriedade não foi apropriada da maneira como ela é concebida em outros lugares.

Além disso, parece alienígena à ciência do urbanismo no Brasil que estabelecer papeis sociais territoriais implica necessariamente pensar o espaço

119 Doutrinariamente, este conteúdo tem apreciações e considerações por vezes divergentes;

jurisprudencialmente, ainda não temos material suficiente para que se possa delinear um posicionamento mais firme e seguro quanto aos limites da ação do Estado na questão fundamental que para nós se coloca: até que ponto o poder público, em função do interesse social, pode intervir na propriedade, sem que isto ocasione a perda do direito pelo seu titular, demandando, dessa forma, o pagamento de indenização, conforme prescreve a Constituição Federal? (CASTRO, 1981, p. 170)

120 Melo (2016), como exemplo, afirma que:

Embora seja característico das limitações administrativas apenas impor deveres de abstenção, não se pretendendo por meio delas captar do particular ações positivas, em nosso Direito Constitucional há uma exceção notável, e que se constitui em candente expressão do art.170, III, onde se impõe o princípio da função social da propriedade. Esta, na conformidade com o art.5º, XXIII, cumprirá sua função social, em cujo nome o proprietário é obrigado a prepor a seu imóvel a uma função socialmente útil, seja em área urbana, seja em área rural (p.829, itálicos no original).

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em movimento – de valores imobiliários, de objetos, de pessoas e de ideias – e como um todo articulado, que significa que aspectos como coleta de esgoto, abastecimento de água, coleta de lixo, distribuição de escolas, hospitais, creches, delegacias de polícia, parques, praças, sistema viário, são fatores condicionantes desses papeis, e que deveriam, portanto, determinar a construtibilidade dos lotes urbanos. E, como tais condicionantes, bem como os demais elementos das dinâmicas urbanas não mudam significativamente em curto prazo, os papeis sociais territoriais também não.

Nesse contexto, o que acaba acontecendo é um reforço do Plano em torno de si mesmo, apenas fortalecendo o papel que ele já exercia no processo de (re)produção do espaço no Brasil (anteriormente à CF/1988).

O protagonismo conferido pela Constituição Federal de 1988 aos planos diretores acaba por recriar o problema da relação entre Plano e planejamento. Uma vez que, a rigor, planejamento urbano pressupõe um processo contínuo de análise urbana e uma produção contínua de conhecimentos sistematizados sobre as cidades que, entre outras coisas, subsidie a elaboração, a avaliação e as alterações nos planos diretores (COSTA, 2008), há que se perguntar até que ponto há no país um avanço em termos de planejamento ou uma sucessão de produção e reprodução dos planos.

Ao instituir um novo paradigma jurídico-urbanístico que, na prática social, continuava em disputa, e que definia uma nova ordem jurídico-urbanística sobre uma velha base de controle político, institucional e de constituição simbólica do espaço, a CF/1988 realçou a contradições e os conflitos pela (re)produção do espaço urbano. Particularmente, houve um aprofundamento das contradições na conformação da crítica teórica e prática do (e no) planejamento e das contradições na conformação de consciência e prática crítica dos agentes sociais urbanos. Com a nova liberdade e o novo protagonismo da construção democrática, essas contradições colocaram em disputa o sentido e o papel dos diversos agentes na reprodução do espaço.

Se a constituição simbólica do espaço fortaleceu uma cultura do planejamento pensado e discutido como um campo fechado em si mesmo, como uma questão essencialmente técnica, e uma cultura urbana alheia ao planejamento em particular e à vida publica em geral, a inserção do paradigma da CF/1988 na prática social implica a emancipação no planejamento e, de