• Nenhum resultado encontrado

O Projeto Nossa Casa foi uma experiência de planejamento participativo da moradia e envolveu famílias residentes em Nova Viçosa e Posses, bairros periféricos e contíguos, localizados em Viçosa, MG.

Essa experiência aprofundou a problemática das disjunções na produção do espaço como produção da vida e escancarou as contradições daí decorrentes, acrescentando uma outra, muito menos evidente nos assentamentos rurais: a produção de espaço é reprodução de espaço de reprodução. A reflexão com as famílias sobre os aspectos mais corriqueiros da arquitetura e da construção se exercitou, como exemplo, através do cultivo de um olhar mais atento à trajetória solar, aos sentidos do vento e às características do solo, bem como do desenvolvimento da noção geométrica dos espaços dos cômodos e da distribuição de objetos dentro deles, e da abstração dos desenhos técnicos, com seus códigos e suas vistas recortadas e bidimensionais. Nesse processo, outras dimensões se colocam e cada vez mais se colocam como inseparáveis e determinantes das demais.

O histórico de formação dos bairros traz em si a perversidade dos jogos políticos que reproduzem a reforçam os processos históricos de opressão criticados por Freire. Nos bairros em questão, a família do prefeito da cidade comprou uma fazenda na borda do perímetro urbano, a preço de terra rural, fez loteamentos ilegais, vendeu centenas ou até milhares de parcelas de cerca de 100 metros quadrados a preços muito baixos, depois alterou oficialmente o perímetro urbano e urbanizou parcialmente a área com recursos públicos, extraindo dividendos financeiros e políticos da operação.

Todas as atividades do Projeto foram permeadas por uma relação muito próxima com as famílias envolvidas, para além dos resultados imediatos de cada

Participação e planejamento

dinâmica de pesquisa/diagnóstico, oficina de desenho/projeto ou dinâmica de planejamento. Havia um foco especial nas nuances do processo, naquilo que era dito e também na linguagem dos corpos, nas expressões e nas pausas. Esse aspecto do trabalho trouxe elementos relevantes à análise, que não são encontrados a partir de um conjunto de resultados de cada técnica.

Um exemplo é o desenho, pelas famílias, de um mapa dos bairros onde moram. A técnica, chamada mapeamento, é uma junção da técnica de mapeamento coletivo dos assentamentos (já utilizada no DRPE) com a exploração dos aspectos simbólicos envolvidos no desenho de um mapa mental, aplicado em trabalhos de urbanismo, especialmente a partir da abordagem de Lynch (1960). Por um lado, essa junção trouxe ao DRPE a possibilidade de explorar, no processo de elaboração coletiva do mapa e na análise do produto, muitas questões que estão para além da simples apresentação do assentamento aos técnicos. Por outro, essa maneira de fazer o mapa mental-social, conversando sobre a sua constituição, trouxe uma série de aspectos novos à maneira de analisar a dimensão simbólica do espaço urbano, tal como era feita na técnica do mapa mental, e mesmo desconstruir alguns pressupostos que essa técnica costuma carregar ou reforçar.

Um aspecto importante da técnica do mapeamento coletivo é a riqueza de discussões que permite, pois é possível estimular reflexões sobre os vários elementos que compõem o espaço e influenciam na vida dos moradores, ressaltando questões sociais e ambientais, como a questão da saúde, que não são contempladas em um mapa mental feito sem muita discussão e apenas com uma análise psicológica do produto final.

É interessante também observar a carga subjetiva dessas descrições, explicitadas nas suas expressões faciais ao falarem, ou na forma de descrever o “seu” espaço.

Essa articulação do mapa individual do urbanismo com o mapa social do DRPE já havia sido discutida na elaboração dos PDAs dos assentamentos e chegou a ser incorporada na metodologia original, tornando mais rica a realização dos mapeamentos e sua análise posterior. A experiência realizada no Projeto Nossa Casa aprofundou a reflexão, no sentido de reforçar a crítica de que determinadas características simbólicas possam ser atribuídas a

Participação e planejamento

determinadas características físicas dos objetos construídos, como se já existissem neles como imanência.24F

25 Nesses mapas, o traçado viário, o tamanho,

a forma e as cores das edificações são irrelevantes, diante da maneira como os trajetos e os edifícios entram ou não entram na vida das pessoas.

As sucessivas visitas à área onde residiam as famílias descortinavam um conjunto de relações que ampliava o debate das condições de moradia para uma reflexão sobre as condições de vida:

Enquanto o abastecimento de água, disponível em determinada área da cidade, é conquista suficiente para muitas estatísticas nesse quesito do saneamento básico, dentro das casas o que se encontra são as velhas latas d’água, buscadas em fontes de origem duvidosa, porque a renda das famílias não tem regularidade suficiente para manter em dia o pagamento desse serviço. Latas menores estão sobre o fogão para ferver a água, porque o filtro de barro também não existe na residência, ou por falta absoluta de recursos (famílias que sobrevivem de doações) ou porque esse item não figura nas prioridades de consumo da família (perdendo lugar para televisão e sofá, entre outros). E essas latas estão sobre um fogão a lenha, porque o gás de cozinha ou não existe ou não é suficiente para toda a demanda da família e, como a área em questão está na borda da cidade, existe o acesso à lenha, ainda que informal. Com isso, algumas paredes estão cobertas de fuligem. E há pequenos jardins, áreas externas cujo cuidado anuncia áreas internas igualmente bem cuidadas e hierarquias outras, apresentadas por aquela velha fala que diz “é simples, mas é limpinho”, na vida que procura seu ritmo entre agradecer e cuidar do pouco que se tem e sonhar com que se tenha mais, algum dia, de alguma forma. E há casas difíceis de descrever, onde moram pessoas que se perderam de sua vida e se tornaram pacientes intermitentes do atendimento, igualmente intermitente, da psiquiatria e dos remédios psiquiátricos fornecidos pelo sistema de saúde dito gratuito. Crianças que caem das lajes habitam o cotidiano e o imaginário como quase que uma parte constitutiva da infância. (Trecho extraído das anotações de campo da autora, na elaboração do Projeto Nossa Casa, 2004)

A realização das técnicas de construção conjunta de reflexão e planejamento da moradia fazia emergir muitos aspectos da cultura construtiva popular. O saber prático do operário de construção civil conhecido como servente de pedreiro, ao mesmo tempo em que expressa um saber efetivo e uma facilidade adquirida em discutir determinados aspectos da construção de uma casa, como calcular e criticar cálculos de consumo de tempo e material para uma determinada tarefa, também expressa uma representação social sobre materiais, sistemas e formas, cuja reprodução é mais benéfica ao sistema como

25 Como exemplo, a imageabilidade ou capacidade de criar uma imagem forte (um dos aspectos

analisados por Lynch que, na sua abordagem, define uma propriedade do objeto) não se realiza se esse objeto não tem qualquer relação com a vida cotidiana das pessoas.

Participação e planejamento

um todo que a ele individualmente. Um exemplo é o consumo excessivo de cimento e ferragens em estruturas em concreto armado (que, de acordo com vários professores de arquitetura e engenharia civil, nem sequer demandam esse tipo de estrutura), por pessoas pobres, a quem esse custo pesa muito, por acreditarem que é isso que vai trazer segurança estrutural à edificação.

O desenvolvimento do processo de planejamento com as famílias, ao entrar na fase de projeto, por sua vez, trouxe questionamentos mais profundos quanto a elementos da própria constituição do campo da arquitetura. Por um lado, estava claro que o campo disciplinar de arquitetura e urbanismo não fornecia métodos, técnicas, linguagens ou instrumentos capazes de gerar um diálogo efetivo quanto ao planejamento coletivo da casa. Por outro, também estava claro que, por diversos fatores, as opiniões e expectativas expressas em relação à casa apontavam para representações sociais cristalizadas, e que era pertinente provocar a reflexão crítica sobre o que eu acho, por que eu acho, o

que eu quero, por que eu quero. Assim, houve algumas provocações no sentido

de colocar em xeque o senso comum em relação à casa (habitação de interesse social, em sentido estrito), apresentar e discutir informações e referências, trazer novas possibilidades para avaliação. Ao final do processo de planejamento conjunto, as famílias decidiram experimentar o adobe como material.

Agentes das instituições envolvidas na realização do processo adotaram o projeto e buscaram viabilizar as construções e reformas planejadas no Projeto Nossa Casa. Inicialmente, houve uma tentativa de inserção das famílias no Programa Crédito Solidário, um programa do Governo Federal de financiamento para construção e reforma de moradias para famílias com renda de até três salários mínimos (tentativa que acompanhamos, em 2004). No entanto, as famílias que apresentavam as maiores e mais urgentes demandas habitacionais não conseguiram ter acesso ao crédito, por não se enquadrarem nos pré- requisitos adotados pela CEF, gestora do recurso. Para aquelas que conseguiam transpor essa etapa, o crédito para reforma em geral não era aprovado, uma vez que a edificação não atendia os requisitos, e o projeto arquitetônico para uma nova moradia era padronizado. Posteriormente, outras alternativas foram buscadas e novas parcerias foram constituídas, no sentido de produzir adobe de boa qualidade para as obras. Durante o processo de produção dos adobes, uma

Participação e planejamento

manobra eleitoreira de um agente local consistiu na doação de blocos de cimento mais que suficientes para todas as construções. Os tijolos de adobe ficaram abandonados ao tempo, demonstrando a força de processos arraigados como limites às possibilidades efetivas de mudança.

Em uma parte da cidade construída para a passividade, todo um trabalho no nível da reflexão crítica é muito pouco diante de toda uma vida. Uma vida cansada e endurecida que participa de encontros regulares à noite para conversar sobre o planejamento da sua casa – reforma ou nova construção – está vivendo um processo de emancipação ou sendo ainda mais violada?

A produção de espaço, que é produção da vida e produção da reprodução, envolve mais aspectos e dimensões que o fornecimento de alguma liberdade para produzir o espaço material da casa.