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A metodologia focada no desenvolvimento das potencialidades individuais a partir reconhecimento e do fortalecimento do patrimônio material e imaterial expressa a contradição entre a concepção geral das propostas e as especificidades de sua execução e ou de seu monitoramento.

Essa metodologia foi desenvolvida por uma instituição não- governamental internacional, em parceria com instituições públicas e privadas 15 Foram escolhidos casos vivenciados anteriormente à realização desta pesquisa, para explicitar

a formação da problemática. Parte da reflexão apresentada neste capítulo, no entanto, decorreu também do desenvolvimento inicial da pesquisa, e foi objeto das primeiras publicações realizadas no âmbito do doutorado. Uma reflexão sobre o processo recente da recentralização no planejamento no Brasil e as questões que impõe à participação se encontra em Lelis e Gaio (2014) e uma discussão sobre a politização na construção do processo participativo na IV Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte foi publicada em Araújo, Gaspar e Lelis (2015).

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locais, desde o final da década de 1990, até pelo menos o final dos anos 2000 no Brasil, em cidades como Belo Horizonte (MG), Ipatinga (MG), Governador Valadares (MG), Recife (PE) e Salvador (BA). Ela amplia a lógica mais utilizada nas intervenções em assentamentos precários para uma noção de redução da pobreza urbana. Parte do conceito de que pobre “é aquela pessoa que não tem possibilidade de desenvolver os talentos que recebeu, isto é, não possui o acesso às reais oportunidades que lhe permitiriam desenvolver todas as próprias potencialidades” (NOVARA, 2003, p. 25). Os projetos se dedicam a identificar e fortalecer os elementos que constituem o patrimônio dos indivíduos, através de processos que provocam ou incentivam o protagonismo deles na identificação e na solução dos seus problemas. Nessa abordagem, os elementos capital social, relações familiares, educação, trabalho, saúde, habitat e meio ambiente, considerados em conjunto, definem o patrimônio. O pressuposto é que a redução da pobreza não se realiza com uma intervenção parcial. As partes do patrimônio tendem sempre ao equilíbrio, portanto, se uma intervenção tem pouco sucesso em poucos elementos e muito sucesso na maioria deles, os outros tendem a se fortalecer e se equilibrarem. Por outro lado, se a intervenção ocorre em apenas um ou dois elementos, eles tendem a enfraquecer e entrar novamente em equilíbrio com os demais.

A forma de construção dos projetos e de organização da implementação adotam o método conhecido como marco lógico ou quadro lógico15F

16 que, embora

amplamente utilizado no mundo na estruturação e gestão de vários tipos de projetos, não costumamos encontrar nos programas, planos e projetos ligados ao planejamento urbano e regional ou à gestão urbana no Brasil. Ele implica clareza do projeto para ser construído. Começa pelo objetivo geral e chega a cada material necessário, passando pelos objetivos específicos, ações, agentes, tipos de dados necessários, formas de obtê-los, uso de cada dado, tempo e demanda de pessoal e material para cada ação, além de, no fim, também estabelecer as maneiras específicas de demonstrar o cumprimento de cada

16 “O Quadro Lógico ‘é um instrumento de gestão de cada fase do ciclo do projeto. Ele é um

instrumento mestre a partir do qual se elaboram outros como o calendário de execução e o plano de monitoramento, por exemplo’. Através dele apresentamos de forma sintética e lógica os objetivos e as atividades executadas com o fim de atingir cada resultado. Através do Quadro Lógico são visualizadas todas as práticas desenvolvidas, respeitando a cronologia de cada fase” (NOVARA, 2003, p. 52).

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objetivo. O método pode ser utilizado mesmo para projetos de grande escala e demanda que o plano defina objetivamente as formas de sua execução e estabeleça critérios específicos de monitoramento da realização de seus objetivos. Esse aspecto possibilita maior accountability nos planos, bem como o planejamento de sua execução em etapas e por diferentes agentes, que conseguem dar continuidade ao trabalho mesmo não tendo participado dele desde o início.

Ficariam explícitas, nessa abordagem, metas irrealizáveis no contexto dado, pois a pressuposição da mudança de lógica de atuação de qualquer agente não poderia ser uma condicionante “solta” para a eficácia do plano. Como exemplo, uma ação que depende de intersetorialidade na administração pública municipal em um município onde ela não existe, demandaria um tratamento específico, com diagnóstico da relação entre as secretarias, métodos de análise, identificação de potencialidades, estabelecimento de critérios que indicariam a construção da intersetorialidade passo a passo, formas de verificação do cumprimento desses passos, agentes responsáveis pela realização e pela condução do processo etc. Um plano construído dessa forma não poderia pressupor uma prática inexistente, um recurso inexistente ou um patrimônio inexistente como condição de sua realização. Além disso, a vinculação dos dados levantados ao seu uso evita o despendimento de recursos temporais, humanos e financeiros do projeto com a geração de informações que não serão utilizadas no seu âmbito.

A abordagem da pobreza urbana como uma condição global que é enfrentada pelo método do fortalecimento também global do patrimônio, articulada com o método do quadro lógico no planejamento, na execução e no monitoramento das ações permitiram a realização de intervenções que de fato trouxeram muitos benefícios aos locais onde atuaram. No caso de Governador Valadares, a abordagem se estendeu a todo o município, dando origem ao Plano de Redução da Pobreza Urbana16F

17. O plano trabalhou com todos os

assentamentos precários do município, individual e detalhadamente, e elaborou

17 PREFEITURA MUNICIPAL DE GOVERNADOR VALADARES. Plano de Redução da Pobreza

Urbana em Governador Valadares: Diagnóstico e Diretrizes. Governador Valadares (MG): 2002.

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critérios para quantificar e hierarquizar a vulnerabilidade de cada um. As diretrizes não apenas apontavam todas as ações necessárias para fortalecer o patrimônio e diminuir a vulnerabilidade de cada um, como criava também uma escala de prioridades, para que as ações pudessem seguir um cronograma de longo prazo, com etapas organizadas por problema a enfrentar ou por assentamento. Como exemplo, em 2008, havia um conjunto de 14 assentamentos precários que passariam por obras de urbanização, através de recursos captados de diferentes tipos de programas e ou editais do Governo Federal. Nesses assentamentos, já vinham acontecendo diversos tipos de ações que lidavam com outras dimensões da vulnerabilidade, e a atuação na infraestrutura e nos equipamentos e serviços urbanos estava articulada com o contexto mais amplo, inclusive com acompanhamento e monitoramento de agentes públicos municipais comuns a todas as ações.

Na sua concepção geral, esse método de fato procurava centrar toda a atuação no desenvolvimento do sujeito e, nesse sentido, procurava contribuir para sua autonomia no sentido amplo. Por outro lado, a problematização desse sujeito tinha uma dimensão exógena significativa e ia eventualmente no sentido oposto ao da autonomia. A avaliação de cada elemento do patrimônio é, em grande medida, definida pelo que o agente externo entende como potente ou frágil, é ele quem dá o aval sobre o que é de fato problema e o que é de fato solução em cada caso. Nesse sentido, a adoção de práticas ou padrões que poderiam ser objeto de reflexão (auto)crítica por parte dos moradores, ou reafirmados, ou melhorados, ou ideias totalmente novas que poderiam ser construídas, tendem a não ocorrer a não ser que o técnico em atuação as tenha percebido antes. A isso se somam os condicionamentos de olhar trazidos pelos especialistas que atuam nos projetos (como ocorre com especialistas no processo de planejamento em geral). Como decorrência, o que observamos em vários casos que adotaram esses métodos na qualificação de determinados aspectos da vida como renda, escolaridade, maneiras de construir as casas, formas de uso e apropriação dos espaços públicos e dos espaços privados não construídos, entre outros, é uma atribuição de valores muito parecidos com as noções de bom e desejável encontradas nos meios técnicos em geral, e relativamente homogêneos em assentamentos muito diferentes uns dos outros,

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no Brasil todo. Isso pode ser percebido nos índices que ligam diretamente o material utilizado na construção ao nível de precariedade da moradia, sem a mediação de critérios como presença de manifestações patológicas, risco construtivo, conforto ambiental, influência cultural ou nível de domínio da técnica utilizada. Também pode ser percebido na ausência de vinculação entre cultura e soberania alimentar, entre situação e composição de quintais e jardins e cultura popular no tratamento de doenças ou maneiras de percepção, uso e apropriação de espaços abertos, coletivos ou não. Permeia ainda a forma de valorar a presença de itens de infraestrutura urbana, sem fazer uma relação com situação da saúde pública para verificar relações entre hábitos cotidianos, saneamento ambiental e incidência de doenças ligadas ao saneamento. As análises das particularidades dos encontros e das apropriações coletivas do espaço dão lugar a uma proposição de praças ou centros comunitários cujas localização e escala, muitas vezes, implicam a construção de novas formas de coletivização, em detrimento das existentes.

Esse aspecto, que pode ser observado no trabalho personalizado com um único assentamento, e em que os quadros lógicos enfatizam mais a dimensão qualitativa, é consideravelmente aprofundado com a ampliação da escala de atuação do projeto, em que esses juízos de valor se tornam índices numéricos, que por sua vez compõem fórmulas estatísticas de análise e qualificação dos assentamentos, dos objetivos e das ações. Nesse ponto, o protagonismo dos moradores já se perdeu quase completamente. A ideia de organização comunitária pode ser um exemplo. Os projetos apontam a necessidade de organizar os moradores de cada assentamento em uma Associação formalmente instituída, como meio de fortalecer o senso de coletividade, a construção conjunta de soluções e o amadurecimento político, ampliando o exercício efetivo da cidadania. Esse juízo de politização define uma meta qualitativa. Ao quantificar essa meta para constituir os Índices Objetivamente Verificáveis (IOVs), a realização desse objetivo – politização da comunidade ou organização comunitária – é medida pela existência de reuniões regulares da Associação, um número que não permite de fato aferir se a Associação funciona ou não, mas que se torna uma prova material suficiente da eficácia da ação e da realização do objetivo. Entre as pessoas presentes, quantas se manifestaram,

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qual a relevância do que foi discutido para o assentamento como um todo, quais encaminhamentos ocorreram e qual sequencia foi dada a eles não entram nos critérios para avaliar o sucesso da Associação como forma de organização e politização da comunidade (sem contar os vínculos político-partidários locais que essas associações costumam acabar construindo).

Esse tipo de trabalho, portanto, parte de uma concepção ampla do sujeito e da sua autonomia, possibilita que os planos e projetos sejam de fato eficazes, e, por isso, é algo que contribui na vida dos beneficiários. No entanto, ele acaba por criar um movimento de autonomia-heteronomia que também fortalece barreiras simbólicas à capacidade (auto)crítica dos beneficiários, para além dos modelos que lhe são apresentados como patrimônio desejável, que devem almejar. Esse aspecto acaba por incidir também na redução da capacidade da crítica sociopolítica de maneira mais ampla, contribuindo, como ocorre em grande das intervenções de planejamento urbano no Brasil, para o esvaziamento (do potencial de debate) político do espaço.

Participação social na concepção (e normatização) da