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CAPÍTULO 3 PARENTALIDADE E O CAPITAL CULTURAL DA CRIANÇA:

3.4 A PUBLICIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA FÍSICA ESCONDIDA “ENTRE AS

Podemos estabelecer a promulgação da Constituição Federal como o marco de maior incidência da intrusão do Estado nas relações familiares, inicialmente com uma característica assistencial e protetiva, para mais tarde se tornar uma invasão que visa proteger os direitos humanos individualmente valorados. A inovadora Carta retrata o momento de grande transição da representação da família brasileira, que, em uma perspectiva mundial, despontava a modificação comportamental do homem e da mulher na relação familiar, destacando em especial a ascensão da mulher no mercado de trabalho. Somada a isso, a amplitude da

34 Artigo 5 - Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis, de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente convenção. 35

Artigo 19 - 1. Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela (BRASIL, 1990b)

representação e significado do que se trata a família contemporânea, mais ligada ao afeto e menos às formalidades.

De acordo com Singly (2011), desde o século XIX já se tem um controle da vida privada, oportunidade em que a família se torna menos patriarcal, e que a noção de interesse da criança (preocupações sanitária e educativas) justifica a intervenção do Estado no âmbito familiar. Desde então, sempre houve críticas aos caminhos da privatização.

O novo ideal doméstico assistiu ao patriarcalismo familiar ser destruído à custa do patriarcado do Estado. Os pais chamaram os assistentes sociais, a polícia e outros meios como amparo para o fortalecimento da sua autoridade paterna, mas o que se observou foi que essa condução tornou as classes menos favorecidas dependentes da caridade e do assistencialismo. A intervenção médica e os procedimentos higienistas junto às mulheres, o espaço doméstico e as regras de educação dos filhos, as instituições de ensino, os internatos, os tribunais de menores constituem o universo que, paulatinamente, vão assumindo os técnicos de relacionamentos humanos, exigindo que a nova família acate os novos princípios de higiene social. (NEVES, 2008, p. 47)

Isso traz o perene debate sobre o Estado e o princípio do mínimo de intervenção na vida privada. Sem dúvida, a família passou por uma transmutação no século XX, especialmente na década de 60 e 70, resultado das mudanças mundiais da sociedade moderna e os primeiros passos para a família democrática da contemporaneidade.

Pela centralidade e importância da instituição familiar, inúmeras políticas sociais são direcionadas à família, tendo como destinatário direto os integrantes da unidade familiar. É um caminho de mão dupla, assim como o Estado protege a família, na figura de seus membros, a família também é responsável por essa proteção social.

Assim, a família é certamente uma ficção, um artefato social, uma ilusão no sentido mais comum do termo, mas uma “ilusão bem fundamentada” já que, produzida e reproduzida com a garantia do Estado, ela sempre recebe do Estado os meios de existir e de subsistir. (BOURDIEU, 1996, p. 135)

Apesar das variações que a família experimenta, continua sendo o local da primeira socialização e, como tal, a necessidade ímpar de estar transitando na busca do bem-estar da família e em seu reflexo social. Essa condição exige regulações por parte da esfera pública com a finalidade de propiciar maior autonomia individual.

A família é o símbolo das mudanças ocorridas no mundo moderno, especialmente com a assunção da mulher no mercado de trabalho, como já mencionado, o que paulatinamente vem repaginando os papéis sociais de cada integrante do núcleo familiar. A família tradicional e pensada como um todo sanguíneo passou por uma completa

metamorfose, fazendo surgir um conjunto de pessoas ligadas pelo afeto e concebidas na individualidade de cada parte.

Na perspectiva de uma doutrina que considera os dois cenários – privado e público – como separados, as ideologias resultantes incluem o conceito da universalidade da família nuclear, o determinismo parental, as conseqüências dos imperativos biológicos e a visão da família tradicional como mais harmoniosa e estável. Na perspectiva de uma doutrina ecológica, a família e outras instituições sociais estão interligadas e, assim, as ideologias resultantes valorizam o papel e a influência de todas as instituições que fazem parte do ecossistema da criança e que podem, de certa forma, ser consideradas como co-responsáveis por seu desenvolvimento. Qualquer que seja a ideologia dominante, o que se observa atualmente é uma serie de contradições culturais que circundam a família. Em resumo, os pais são desafiados com demandas constantes, que oscilam entre a construção de uma individualidade e a construção de uma família idealizada. (BERTHOUD, 2003, p. 43)

Nos termos do artigo 22736 da Constituição Federal, o Estado não pode se abster do cumprimento do dever de proteção. A inclusão da criança como prioridade surgiu como resultado do movimento social e da respectiva emenda popular denominada „Criança e Constituinte‟, a qual colheu 1 milhão e 200 mil assinaturas em todo o Brasil em defesa dos direitos da criança na nova Constituição (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2003).

É a partir da Constituição Federal de 1988 que a criança passou a ser compreendida como sujeito de direitos no Brasil, inclusive somada ao princípio de tratamento igualitário a todas as demais pessoas, considerando que sua condição de pessoa em desenvolvimento não pode refletir na exclusão legislativa, ao contrário, assume o lugar prioritário. Sua condição de vulnerabilidade e a perspectiva de representar o futuro do país devem crescer em um ambiente estruturado, responsável, salutar e harmônico.

A concepção da criança como um cidadão, embora um cidadão criança, deve implicar inevitáveis transformações em sua autonomia privada. O principal problema é que existe um potencial conflito ou, eventualmente, uma manifesta contradição entre os „direitos de liberdade‟ e os „direitos de proteção‟. Em particular, e não apenas no Brasil, a transposição dos princípios libertadores para o ambiente educacional e, mais ainda, para o ambiente familiar tem se revelado de difícil efetivação, dado o alto grau de paternalismo presente na cultura brasileira. (MORAES; TEIXEIRA, 2013, p. 2129)

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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

A obediência ao respeito da privacidade e à autonomia do interior da família não exime a obrigação do Estado de proteger os membros que integram a família. Nas relações desiguais, como no caso dos pais e filhos (crianças e adolescentes), é necessária e indispensável a interferência do Estado quando a parte fragilizada está exposta ao conflito e vulnerabilidade. Especificamente em relação ao Direito das Famílias “o público e o privado, não sendo possível demarcar fronteiras estanques, pois quando há necessidade de interferência do Estado em prol da tutela de pessoa, é coerente e necessário que o Direito assim o determine.” (MORAES; TEIXEIRA, 2013, p. 2130).

O espaço privado tem sua existência em razão do espaço público, uma vez que pressupõe as relações entre público e privado em uma interligação dinâmica das relações sociais.

O privado é também o que é independente do coletivo, e as ações públicas, nesse primeiro significado, são atribuídas aos agentes que falam por: são as ações ou os pensamentos que se atribuem aos representantes representativos do grupo, da coletividade, o que se chama de „personalidades oficiais‟, essas que agem oficialmente. (BOURDIEU, 2014b, p. 85)

De acordo com Pinheiro (2006), os direitos da criança não ficam do lado de fora da casa, já que a família tem a capacidade, responsabilidade e a potencialidade de proteger a criança e zelar por sua segurança física e emocional. Entretanto, mesmo na vida privada do lar, as regras fundamentais dos Direitos Humanos se impõem a todos, independentemente da idade, sexo e da posição que assume na hierarquia do núcleo familiar. “Eliminar e reagir diante da violência contra crianças no contexto da família talvez represente o maior desafio de todos, considerando que ela é vista pela maioria como a mais „privada‟ das esferas privadas.” (PINHEIRO, 2006, p. 14).

Todavia, os temas da vida privada têm se alargado cada vez mais no espaço público, e a família é, sem dúvida, a caracterização mais proeminente do campo de alçada microssistêmica para difusão no campo social macrossistêmico, o que impulsiona debates nacionais e internacionais (BRONFENBRENNER, 2011).

A família de nossos dias cedeu para outras instituições, sobretudo para o Estado, muitas das funções que antes definiam seu caráter. Desse modo, as funções que restaram encontram-se mais ressaltadas, especialmente as funções afetivas e emocionais recíprocas entre as pessoas que configuram a família. No melhor dos casos, a família apresenta-se como foco estável da satisfação duradoura das necessidades instintivas e afetivas, o lugar social confiável de ancoragem emocional dos indivíduos. E, talvez, seja esse o caso mais importante

para se falar sobre civilização das relações familiares, incluindo a relação pais-filhos (ELIAS, 2012, p. 490).

É uma discussão polêmica e profícua que exige uma mudança do objeto de análise, isto é, não se pode mais continuar a discussão do problema apoiando-se no questionamento sobre a autoridade dos pais na educação dos filhos, mas sim partir do princípio de que a criança é um sujeito de direitos e, como tal, tem proteção legal de toda violência, assim como qualquer outro ser humano. O que deve ser priorizado é a questão do cuidado; cuidado das crianças a crescerem sem violência e o cuidado dos pais, pela capacitação, educarem seus filhos sem o emprego da violência.

Essas agressões, em geral descontroladas, são consideradas como medidas de educar e disciplinar, próprios do poder dos pais. No entanto, com freqüência, essas “medidas educativas” ultrapassam o razoável e tornam-se atos violentos de abuso do poder parental. O próprio lar é o lugar em que mais comumente as crianças sofrem agressões. No entanto, um grande número de episódios violentos não consegue ultrapassar a barreira do silêncio imposta pela família (MALDONADO, 2012, p. 28).

Impende não mais continuar a tratar do tema com o olhar adultocêntrico e patriarcal, pois o que está em questão no momento é a invasão da seara protetiva do Estado. Qualquer pessoa vítima de violência tem a garantia da proteção estatal, seja ela adulto ou criança. Não se trata de uma invasão territorial do público ao privado, mas de algo superior a qualquer limitação, trata-se da vida de um ser humano que, se educado pela violência, sofrerá consequências em sua vida social futura, além de eventuais lesões físicas ou psicológicas permanentes.

A configuração do espaço público (da economia e político) pertence ao homem provedor (liberdade, autoridade, autonomia) e o espaço privado (do lar) à mulher cuidadora e doméstica, sendo ambiente também dos filhos até certa idade (limitado, subordinado, dependente), o que está sendo repaginado. As questões privadas estão sendo apresentadas ao público, oportunizando a discussão social de comportamentos até então inquestionáveis e distintos dentro do processo civilizador.

Dessa forma, em caráter de excepcionalidade e considerando sua responsabilidade solidária na proteção e cuidados das crianças, prevista constitucionalmente, é que pode o Estado intervir na vida privada. A função de pais na atualidade ultrapassa a particularidade do vínculo familiar e se caracteriza também em um mandato social, cabendo a todos, na figura do Estado, a proteção por todos os integrantes da família, em especial os que se encontrarem em situação de vulnerabilidade e, por isso, mais expostos a episódios de agressão.

De facto, o que caracteriza, antes de mais, as famílias modernas é a existência de fortes tensões entre princípios, normas e interesses contraditórios. Assim, a individualização dos membros da família pode ser valorizada sem que por esse motivo a vida comum seja rejeitada. Deste modo, a maior reivindicação de uma expressão pessoal não elimina a necessidade de um apoio familiar. (SINGLY, 2011, p. 30)

Desta forma, a interferência do Estado na relação pais e filhos não se justifica em razão da vedação do uso dos castigos físicos como forma de educação, mas sim na defesa do direito da criança e do adolescente ser educado sem o uso da violência física.