• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 PARENTALIDADE E O HABITUS DA PRÁTICA EDUCATIVA

2.5 NOVOS PAPÉIS E AS MESMAS REGRAS

Cabe às pesquisas sociais encontrar os meios capazes de explicar o processo de desenvolvimento do fenômeno, identificando suas causas e a maneira como foi introduzido socialmente; caso contrário, se manterá a atribuição de que os comportamentos são frutos da natureza e não da evidência de um processo de dominação simbólica na esfera social. De acordo com Pinto (2000), Bourdieu observa que, para os dominantes, nada mais apropriado do que naturalizar comportamentos por meio de uma procedência inata, retirando da sociedade a responsabilidade pelas situações ou comportamentos que resultam na insatisfação da própria sociedade.

Quando a violência física intrafamiliar é objeto de discussão, o enfurecimento com o adulto que bate e a comiseração para com a criança indefesa de imediato leva as pessoas a “cair na tentação de julgar e condenar o adulto como brutal e cruel, a despeito do conhecimento humano mais profundo” (MILLER, 2006, p. 121). Entretanto, a tolerância social da aplicação dos castigos físicos praticada contra os filhos faz com que seja compreendida e explicada como resultado das circunstâncias socioculturais, em especial a transmissão repassada de geração a geração, legitimando e incentivando essa forma de educação violenta (poder-dever).

O conhecimento do papel social de pais é sempre adquirido de modelos, retirado da própria experiência de vida. Assim, o problema da criança, hoje, representa quase sempre uma aprendizagem emotiva que seus pais não conseguiram completar no momento evolutivo correspondente. (FERRARI, 2002a, p. 29)

Bourdieu (2003) demonstrou, em seus minuciosos trabalhos de pesquisa, o âmago dos fenômenos sociais, buscando identificar não somente o fato social, mas também a sociedade onde transitam esses fatos. A análise das condições favorece o entendimento do resultado, considerando que a produção não é espontânea, mas sim fruto de uma reprodução inconsciente. A liberdade de agir está condicionada a uma trajetória de repetidos comportamentos estruturados em uma sequência histórica dominadora. Como agentes do

campo, retroalimentam o capital cultural de geração em geração, representando automaticamente, a exterioridade e a interioridade e vice-versa.

O conhecimento que podemos chamar de praxiológico tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade: este conhecimento supõe uma ruptura com o modo de conhecimento objetivista, quer dizer um questionamento das questões de possibilidade e, por aí, dos limites do ponto de vista objetivo e objetivante que apreende as práticas de fora, enquanto fato acabado, em lugar de construir seu princípio gerador, situando-se no próprio movimento de sua efetivação. (BOURDIEU, 1994, p. 47)

Segundo Jourdain e Naulin (2017), para Bourdieu, a sociedade se reproduz dentro de nós em uma estrutura inconsciente, por meio da imitação do movimento, sobretudo dentro da família da qual surgimos, reproduzindo suas peculiaridades e formas de compreensão de mundo. Esta estrutura que está internalizada inconscientemente se manifesta em nossas ações e escolhas, as quais são camufladas por uma pseudo independência. Esse habitus (interiorizado e incorporado pelo indivíduo ao longo de sua socialização) fica impregnado de tal maneira na „essência‟ do indivíduo, no seu sentido e visão de mundo, que o elemento consciente não o identifica.

A mudança social ocorrida quanto à substituição da família extensa para a família nuclear trouxe o afastamento dos parentes mais próximos da convivência diária, o que dificulta o aprendizado para os cuidados com os filhos, uma vez que não há mais o repasse das experiências e apoio dos avós, sogros, tios, irmãos e primos. Os pais acabam aprendendo a serem pais pelas lembranças de suas infâncias, pois, com raras exceções, buscam formas de promoção das competências parentais. Elias (2012) ressalta que muitos adultos continuam mais preocupados com o que as crianças significam para eles, do que realmente o que eles representam para as crianças.

As estruturas sociais ecoam no indivíduo, inconscientemente, apesar de ele acreditar estar tendo total liberdade em suas escolhas. Bourdieu traz a consciência reflexiva sobre a pouquíssima autonomia concedida ao indivíduo. O indivíduo em Bourdieu é superficial, ele vira apenas uma variação de um habitus de classe de um determinado grupo social. A escolha do indivíduo é muito relativa, é uma improvisação, mas é regrada dentro de uma compilação de improvisações possíveis (PINTO, 2000).

A dinâmica social se efetiva no interior de um campo, compreendido como um segmento social, cujos agentes têm papéis/comportamentos/atuação específicos, denominados

por ele como habitus. A família, na sua concepção mais ampla e assentada em uma dimensão institucional, é o campo em análise na relação pais e filhos, uma vez que é por meio dela que se constroem os laços afetivos e sociais, protagonizado pela hierarquia adultocêntrica. O campo é tanto um „campo de forças‟ quanto um „campo de lutas‟, conservando ou transformando a sua estrutura, e que na dominação se percebem inúmeras forças, como: educação, cultura, literatura, política, mídia entre outros (BOURDIEU, 2004b).

Somente existem ação, história, conservação ou transformação de estruturas porque existem agentes irredutíveis ao que o senso comum e o “individualismo metodológico” introduzem na noção de indivíduo e que, enquanto corpos socializados, são dotados de um conjunto de disposições contendo ao mesmo tempo a propensão e a aptidão para entrar no jogo e a jogá-lo com maior ou menor êxito. (BOURDIEU, 2001, p. 190)

A autoridade dos pais está presente na vida privada, cabendo aos mesmos o estabelecimento das regras de conduta dos filhos, sob pena de punição. A família, constituída por subcampos (conjugal, parental, fraternal), figurativamente representa o tabuleiro de um jogo de xadrez, nos polos antagônicos se posicionam pais e filhos, cujas regras são estabelecidas pelo habitus familiar. O poder que permeia a inter-relação dos agentes no campo é simbólico, considerando que é sensível às posturas assumidas pelos agentes que participam do „jogo‟ (BOURDIEU, 2004b).

Esse poder simbólico dos pais em relação aos filhos tem sua existência preservada em razão do habitus prevalente naquele subcampo, o qual pode ser compreendido, segundo Bourdieu (2004,), pelo „sentido do jogo‟. As pessoas, com o nascimento da criança, são imediatamente consideradas pais (não no sentido biológico) e únicos responsáveis pelo filho que nasce. Esse status só é concebido em razão do papel social constituído e que se ajusta imediatamente nas determinações do jogo, independentemente de desejarem ou estarem preparados para essa condição. Passa-se a ter uma „distinção natural‟, ou seja, é naturalmente lhes outorgado o poder da autoridade. “Basta-lhes ser o que são para ser o que é preciso ser.” (BOURDIEU, 2004b, p. 24).

O habitus representa a forma como se articulam as relações entre pais e filhos naquele espaço, observados no estratagema postural e comportamental manifesto nas atividades praticadas.

Dessa forma, o habitus, necessidade tomada virtude, produz estratégias que, embora não sejam produto de uma aspiração consciente de fins explicitamente colocados a partir de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma

determinação mecânica de causas, mostram-se objetivamente ajustadas à situação. (BOURDIEU, 2004b, p. 23)

A socialização evidencia o pertencimento do agente em determinado campo, que pela vivência e modelação acaba reproduzindo o comportamento inconscientemente, justificando um agir natural; ou seja, naturalizando a postura assumida. Representa um saber prático incorporado, pois se repete de forma indutiva, inconscientemente, fazendo parte dos saberes práticos incorporados ao longo do percurso socializador. A explicação biológica sempre é a mais adequada frente às determinações externas, haja vista que, quando assim o identifica, foge-se da responsabilidade e da difícil arte de romper com os grilhões dos pressupostos constitutivos dos campos onde se convive. (BOURDIEU, 2003).

A experiência da trajetória da vida impõe a viver e a agir conforme as regras do campo, sem a necessidade de criar estratégias para agir assim. A condição pais e filhos e a forma de educação nada mais é do que a reprodução do que se apresenta no campo. O habitus dita as regras inconscientemente para os papéis sociais num processo imperceptível porque não se tem como resgatar todas as causas sociais que determinam o ser social. Há uma propagação das práticas por meio de uma trajetória socializadora condizente com os papéis sociais que o agente assume na sociedade, suplantando uma subjetividade mais intensa e questionadora.

Os pais acreditam que aplicar os castigos físicos nos filhos é uma escolha deles sobre a melhor forma de educar, entretanto, não se questionam que repetem uma atitude construída a partir da colonização do Brasil. Essa postura foi repassada de geração a geração e chegou à contemporaneidade com a mesma prática fundada em frágeis teorias. Representa uma aceitação das regras sociais sem precisar pensar no porquê de sua prática. Concorda-se com o concordante, sem perceber a obediência à socialização experimentada.

Nessa perspectiva é que muitas crianças, quando se tornam adultas, não se revoltam contra a violência a que foram expostas, ao contrário, tendem a aceitar a situação como inevitável e inscrita na ordem das coisas. De acordo com Bourdieu (1996), a reprodução social refere-se à reprodução das relações de força entre as classes sociais, que devem ser compreendidas também como uma luta pela capacidade de impor a todos, ou parte, uma maneira legítima de enxergar o mundo e de se enxergar no mundo. Dependendo ainda do reconhecimento pelos dominados da legitimidade dessa dominação, ou seja, pela violência simbólica.

Ainda que seja possível perceber que tenha ocorrido uma espécie de tomada de consciência pública dos altos índices de violência contra a criança no ambiente familiar, e que seja perceptível uma maior difusão de que os castigos físicos são um problema e que podem estar ligados a todas as formas de efeitos nocivos da violência, os números não mudaram de maneira significativa para caracterizar uma nova fase da história. Isso mostra que a aplicação dos castigos físicos como forma de educação, no contexto brasileiro, não diz respeito à sua durabilidade, mas sim à sua resiliência frente às mudanças sociais, políticas e econômicas, que fazem parte da história recente do país. O questionamento sobre esse comportamento é o primeiro passo para uma mudança transformadora.

Figura 4 – Retrato de uma família nuclear e a educação „pedagógica‟

Fonte: A autora