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CAPÍTULO 3 PARENTALIDADE E O CAPITAL CULTURAL DA CRIANÇA:

3.3 PUNIÇÃO MODERADA: O LIMIAR DA VIOLÊNCIA

Cada vez mais, historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos e cientistas sociais em geral têm demonstrado que a violência é um fenômeno sócio-histórico de difícil definição em razão de adquirir várias formas em determinadas épocas e locais, presente em toda a história da humanidade. É uma manifestação social de grande complexidade, provocada por incontáveis fatores que, de alguma forma, atingem a todas as pessoas, física ou psicologicamente. A violência não deve ser confundida com a agressividade, sendo esta incorporada na essência humana, e aquela, produto social e/ou psicossocial promovido pela contribuição de inferências sociais, da cultura e das configurações das relações primárias ou da comunidade (MINAYO, 2006).

A violência pode ser estrutural, em razão das adversidades e injustiças prevalentes na vida da população mais desfavorecida, ou sistêmica, como resultado da prática do

autoritarismo, apesar das garantias democráticas, como é o caso da violência doméstica intrafamiliar (MALDONADO, 2012).

A diversidade conceitual da categoria violência inibe a construção de um conceito unívoco e abrangente.

Qualquer reflexão teórico-metodológica sobre a violência pressupõe o reconhecimento da complexidade, polissemia e controvérsia do objeto. Por isso mesmo, gera muitas teorias, todas parciais. Neste artigo, levando em conta o que acontece na prática, dizemos que a violência consiste em ações humanas de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental ou espiritual. (MINAYO; SOUZA, 1998, p. 514)

A abordagem ecológica de Bronfenbrenner (2011) tem sido usada frequentemente para explicar o crescimento da violência, considerando a interação complexa e constante entre os seus quatro níveis: individual, relacional, comunitário e social. A observação mais alargada demonstra que o fenômeno é multifacetado e daí a dificuldade de seu enfrentamento.

A violência interpessoal doméstica ou intrafamiliar também é um fenômeno mundial, considerada uma questão de saúde pública e de afronta direta aos Direitos Humanos. Ela se perfaz em todas as populações, independentemente do nível cultural, econômico ou social, podendo atingir indistintamente qualquer membro de uma família (KRUG et al., 2002). Especificamente quanto à criança, a violência intrafamiliar pode ser conceituada como qualquer ação ou omissão que produza prejuízos à integridade física e/ou psicológica da criança. A natureza dos atos violentos mais comuns de violência intrafamiliar está compreendida em quatro subcategorias: violência física, psicológica, negligência e sexual, podendo ser identificadas em separado ou concomitantemente (MINAYO, 2006).

Ao concluir o Mapa da Violência, identificado como Violência Letal. Crianças e Adolescentes do Brasil, Waiselfisz (2015) ressalta que sua pesquisa não teve o propósito de abordar todas as violências ocorridas no ano de 2014, mas apresentar um pequeno excerto do vasto iceberg do fenômeno da violência no contexto brasileiro. Sua investigação aponta que é na casa das vítimas o local de maior incidência dos episódios de violência, diminuindo em proporção com o aumento de idade da vítima, tendo na figura dos pais a maior parte das agressões: “a violência doméstica é um fenômeno social que acomete as diversas camadas sociais e envolve vários atores sociais, a maior parte deles nunca denunciados nos prontuários institucionais.” (NEVES, 2008, p. 104).

Relata ainda que, em todos os tipos de violência, se evidencia a aceitação social do mecanismo de culpabilizar a vítima, sendo perceptível, quanto às crianças, a existência da

naturalização dos castigos físicos empregados pelas famílias e instituições como função disciplinadora, cujo resultado aponta ser a violência física a segunda de maior incidência a atingir crianças com menos de um ano de idade.

Tabela 2 – Ocorrências e atendimentos de casos de violência Número de atendimentos segundo faixa etária e local de ocorrência

Idade Residência Escola Bar ou

similar

Via Pública Outro Total

> 1 4.465 60 60 523 1.229 6.337

1 a 11 19.599 1.300 72 2.265 2.956 26.192

12 a 15 11.623 1.393 226 4.376 1.896 19.514

16 e 17 5.629 387 374 4.467 1.034 11.891

Total 41.316 3.140 732 11.631 7.115 63.934

Número de atendimentos segundo faixa etária e tipo de violência

Idade Física Psicológica Tortura Sexual Financeira Negligência/ Abandono Trabalho infantil > 1 2.331 660 87 404 68 5.172 13 1 a 11 9.710 6.275 613 9.990 140 11.971 237 12 a 15 11.923 5.183 519 7.620 81 3.246 278 16 e 17 10.683 2.797 317 1.688 55 1.326 97 Total 34.647 14.915 1.536 19.702 344 21.715 625

Número de atendimentos de violência física segundo faixa etária e agressor

Agressor > 1 1 a 11 12 a 15 16 e 17 Total Pai 440 2.167 1.153 553 4.313 Mãe 515 2.648 1.007 495 4.665 Madrasta/Padrasto 43 928 574 203 1.748 Desconhecido 206 603 1.918 2.221 4.948 Total 1.204 6.346 4.652 3.472 15.674

Fonte: Adaptado de: Violência Letal. Crianças e Adolescentes do Brasil

Minayo (2006) ressalta que a violência do adulto contra a criança persiste no tempo, estando „naturalizada‟ porque se estende em quase todas as sociedades e está presente em todas as classes e segmentos sociais, representando uma modalidade da violência cultural (forma de pensar, ser e agir). Responsabilizar a cultura é a forma mais corriqueira de não refletir sobre a relação interpessoal e o limiar da violência. “A cultura é o fundo comum de crenças e comportamentos de uma sociedade e seus conceitos de como as pessoas devem se conduzir.” (KRUG et al., 2002, p. 59).

Azevedo e Guerra (1995), ao buscarem uma definição estipulativa da violência doméstica contra a criança, já alertavam para a relação discrepante e hierárquica de poder polarizada em dois extremos

[...] implicando num pólo DOMINAÇÃO (pólo adulto) e, no outro, objetalização, coisificação, submissão aos desígnios e desejos do outro (pólo criança/adolescente). Significa que – independente da cultura e sociedade em que se insira – a INFÂNCIA tem que ser reconhecida como um VALOR UNIVERSAL, a demandar um duplo reconhecimento:

a) de sua condição específica enquanto ser humano, PESSOA em desenvolvimento, necessitando de proteção e cuidados especiais. INFÂNCIA não é uma NATUREZA, mas é uma CONDIÇÃO CONCRETA de existência, em qualquer parte do planeta TERRA;

b) de sua condição peculiar enquanto ser político sujeito de direitos, necessitando proteção legal enquanto cidadãos de primeira classe. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 38)

Sousa (2001), ao analisar alguns conceitos de violência física, elabora uma síntese na qual reúne o campo de ação, a desigualdade de relação entre o adulto/criança e a frequência dos episódios.

[...] entende-se por violência física doméstica contra a criança qualquer ação, única ou repetida, não acidental (ou intencional), perpetrada por agentes circunscritos à família ou ao convívio diário e direto com a criança, seja adulto (pai e mãe legítimos ou adotivos, padrasto ou madrasta) ou outra criança/adolescente (mais velho ou não) e que deixe ou não marcas físicas nela, motivadas por fatores conscientes (ferir, danificar ou destruir a criança) e/ou inconscientes. (SOUSA, 2001, p. 21)

A definição da violência contra crianças no Relatório do Estudo das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças é fruto de uma fusão das definições constantes no artigo 19 da Convenção dos Direitos sobre a Criança e do Relatório Mundial sobre a Violência e Saúde. Desta forma, a definição da violência contra a criança passa a ser: “uso intencional da força ou poder físico, em forma de ameaça ou efetivamente, contra uma criança, por um indivíduo ou grupo, que prejudica ou tem grandes probabilidades de prejudicar a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança.” (PINHEIRO, 2006, p. 6).

A inclusão da palavra “poder”, além da frase “uso da força física”, amplia a natureza de um ato violento e expande o entendimento convencional de violência de modo a incluir aqueles atos que resultam de uma relação de poder, inclusive ameaças e intimidações. (KRUG et al., 2002, p. 27)

A Lei n.o 13.010/2014 considera como castigo físico toda a ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente da qual resulte um sofrimento físico ou lesão. Define como tratamento cruel ou degradante a conduta ou forma cruel de tratamento dispensado à criança ou adolescente, com características de humilhação, ameaça grave ou ridicularização.

Na ressignificação do ato da violência como um método de disciplina, o debate sobre o que é ou não violência perde o sentido, em especial quando a sua definição é composta pela

subjetividade da interpretação de sua prática na relação interpessoal e na intensidade da força: moderada e imoderada. A definição entre os dois termos é bastante clara e compreensível, sendo moderada tudo aquilo que é prudente, e se comporta com moderação, comedimento; e imoderada quando ultrapassa da medida, descomedido, demasiado. Na esfera jurídica, os castigos já são reprimidos no Código Penal de 1940 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto, insiste ainda, no âmbito social, como exemplo de boa educação e obediência “o chamado castigo moderado que é, mais do que permitido, valorizado como forma de domínio e valorização da autoridade paterna e materna.” (NEVES, 2008, p. 103).

De acordo com Azevedo e Guerra (1995), a alegação de que o uso moderado da violência contra crianças e adolescentes faz parte de uma cultura da violência, e está pautado em três tipos de fatores: ligados à infância, ligados à família e ligados à própria violência. Os ligados à infância dizem respeito ao posicionamento dos adultos em perceberem as crianças como grupos menorizados da população, enaltecidos no discurso e subjugados na prática. Quanto aos segundos, ligados à família, se destaca a prevalência para o modelo burguês de família, com a valoração do espaço privado, da estrutura patriarcal de poder e das rotineiras dificuldades sócio econômicas. Há uma comunhão de fatores conjunturais e estruturais que fomentam a prática violenta. Já o terceiro tipo se perfaz na prática da violência pela própria violência, ou seja, se pretende a resolução dos conflitos utilizando-se da própria violência. Essa cultura, contudo, pode e deve ser enfrentada por diversas vias, dentre elas, a valorização da infância e da adolescência, a assimilação da imagem da criança como um ser político, sujeito de direitos e deveres, e, ainda, a promoção de métodos pacíficos de resolução de conflitos, entre eles a substituição dos castigos físicos por alternativas não violentas.

Compreendendo que toda violência é social, histórica e, portanto, capaz de ser controlada e erradicada se houver vontade política, a habitualidade da violência física empreendida contra a criança pode ser bastante minorada. A lenta e gradativa transformação das coisas miúdas do cotidiano pode levar às grandes transformações históricas e sociais. (AZEVEDO; GUERRA, 2011, p.76)

Nesse patamar, a dificuldade não persiste na distinção entre ambos, mas sim na percepção daquele que aplica e o que sofre a violência. Qual é a diferença entre comedido ou demasiado no olhar da criança? Qual é o sensor de moderação?

É preciso considerar que “Após uma educação brutal, em que toda afeição é atalhada e reprimida, uma criança esquiva-se ao convívio social e perde pouco a pouco os contactos que seriam da maior importância para sua formação psíquica.” (ADLER, 1957, p. 49).

A criança, apesar de todos os direitos conquistados e do gradativo reconhecimento social de que representa um período da fase de desenvolvimento do ser humano, continua sendo considerada uma pessoa sem vontade própria, sem voz e que deve total obediência a autoridade dos adultos. Essa minimização da imagem da criança e do seu diminuto papel social é facilmente observado nas discussões durante a trajetória da Lei n.o 13.010/2014.

Logo nos primeiros embates, houve uma mudança no enfoque protagonista da questão, pois ao contrário do pretendido, que era discutir um direito da criança, se passou a discutir o direito dos pais a educarem seus filhos como entenderem ser mais conveniente.

Esse posicionamento fica ainda mais ressaltado quando a mídia apelidou o Projeto de Lei como „Lei da Palmada‟, ou seja, deixa-se de discutir um direito da criança e se provoca um questionamento sobre a acepção da palmada como um ato de violência ou como um instrumento apropriado para ensinar a criança a distinguir o certo do errado; ou ainda, inculcar o exercício da obediência imediata. É a negação do reconhecimento do direito da criança ser tratada como sujeito e pessoa. Com essa perspectiva, alguns defensores da educação tradicional (punitiva) entendem que a violência moderada é natural e justificável, uma vez que a pretensão não é causar nenhuma lesão na criança, mas sim orientá-la para um bom comportamento.

Os corpos contam suas histórias, revelam seus segredos e cobram posturas. Se a denúncia que chega aos órgãos competentes versa sobre a violência de um corpo sobre o outro, talvez ela seja a ressonância de uma tentativa de diálogo interrompida pela dor de alguém que tenta falar e alguém que não consegue entender. (NEVES, 2008, p. 115)

Entretanto, a efetiva aplicação dos Direitos Humanos em igualdade de condições refuta qualquer justificativa, seja ela amparada na tradição ou camuflada como disciplina, na aplicação de castigos físicos como método educativo. “A singularidade das crianças – seu potencial e vulnerabilidade, sua dependência dos adultos – torna imperativo que elas tenham mais, e não menos, proteção contra a violência.” (PINHEIRO, 2006, p. 5).

Outra alegação para a continuidade da aplicação do método coercitivo reside na intencionalidade e intensidade da força aplicada pelo adulto, pois, segundo seus defensores, a intenção é a educação em benefício da própria criança e a intensidade se reduz a algumas palmadas, sem ódio e sem a pretensão de machucar. Contudo, a Organização Mundial da Saúde, ao justificar a definição de violência e sua gama de possibilidades ressalta que somente a evidência de lesões físicas não é suficiente para dimensionar as consequências de sua aplicabilidade.

Muitas formas de violência contra mulheres, crianças e idosos, por exemplo, podem resultar em problemas físicos, psicológicos e sociais que não necessariamente levam a lesões, invalidez ou morte. Essas consequências podem ser imediatas, bem como latentes, e podem perdurar por anos após o abuso inicial. Portanto, definir os resultados somente em termos de lesões ou mortes limita a compreensão da totalidade do impacto da violência sobre as pessoas, as comunidades e a sociedade como um todo. (KRUG et al., 2002, p. 27)

Apresentar uma definição intrínseca exata da intencionalidade é uma tarefa hercúlea porque demanda acesso ao psique de uma pessoa. É possível analisar o ato como resultado de uma intencionalidade, mas jamais a inequívoca intenção, pois “a presença de uma intenção de usar a força não necessariamente significa que houve uma intenção de causar dano. Na verdade, pode haver uma grande disparidade entre o comportamento pretendido e a consequência pretendida.” (KRUG et at., 2002, p. 27). Ainda segundo o Relatório da Organização Mundial da Saúde, outro fator importante a ser considerado quanto à intencionalidade diz respeito à intenção de lesar ou de usar a violência. É nesta peculiaridade que residem os discursos favoráveis à aplicação moderada dos castigos físicos, o uso da força sem a conotação de violência. Descura-se dos sentimentos da criança (dor, humilhação, angústia, etc.) e valora-se a intenção de correção. A idiossincrasia do adulto sobrepuja o sofrimento da criança.

O que diferencia um tapa de um soco é apenas a intensidade e a moldura da mão (fechada ou aberta), o instrumento e o animus de agredir permanece inalterado. Os comandos emitidos pelos adultos são expressos pelos termos bater, surrar, apanhar, e nunca agredir ou corrigir. Usa-se do método coercitivo com a criança quando se está em discordância com o que ela fez ou falou, jamais para se defender, única opção aceitável legalmente para o uso da força. Assim, o jogo de palavras não pode minorar a intensidade de uma agressão recebida, seja de quem quer que seja. A agressão não é considerada violência pela medicina, entretanto, a violência não ocorre sem o uso da força e da agressão. Afinal, a violência está presente no “uso de palavras ou ações que machucam as pessoas. É violência, também, o uso abusivo ou injusto do poder, bem como o uso da força que resulte em ferimentos, sofrimento, tortura ou morte.” (MALDONADO, 2012, p. 12).

A tentativa de sinonímia entre violência e educação não prospera frente à taxatividade dos diplomas internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial o artigo

5º.34 combinado com o artigo 1935 da Convenção sobre os Direitos da Criança, o qual veda claramente a utilização de qualquer forma de violência contra a criança, seja ela moderada ou imoderada, mesmo que para fins pretensamente educativos ou pedagógicos, considerando ilícitas, nessa linha, práticas “corretivas” empregadas por pais ou responsáveis que acolham punições físicas em qualquer de suas configurações.

É importante enfatizar que eliminar a punição não significa permitir que a criança faça o que quiser. Nós precisamos oferecer oportunidades para que as crianças experimentem a responsabilidade em uma relação direta com os privilégios dos quais desfrutam. (NELSEN, 2015, p. 3)

O comportamento adotado pelos pais que veem nos castigos físicos a forma adequada de educar os filhos é percebida como uma forma natural das crianças obedecerem aos adultos, pois estes sabem o que é melhor para os filhos. Trata-se de uma manifestação humana travestida de um proceder naturalizado e que vai ao encontro de uma incompetência objetiva e subjetiva das crianças, a que Bourdieu (2001) denomina de „desposse‟, isto é, os filhos não possuem condições de argumentação. O poder arbitrário de autoridade consagrado pela história social do campo se dá pela ausência de resistência quanto à legitimação desse poder.

3.4 A PUBLICIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA FÍSICA ESCONDIDA “ENTRE AS PAREDES