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CAPÍTULO 2 PARENTALIDADE E O HABITUS DA PRÁTICA EDUCATIVA

2.1 REVISITANDO A TRAJETÓRIA SÓCIO-HISTÓRICA DA INFÂNCIA

A narrativa historiográfica ocidental sobre o percurso social da criança não é de fácil construção, uma vez que, por séculos, sua presença no convívio com os adultos foi bastante negligenciada. Contingenciadas pela fragilidade da saúde19 e pelo caráter reprodutivo em larga escala, a criança não era fator de preocupação dos adultos ou detentora de afeto diferenciado. A justificativa da divergência entre os historiadores se dá em razão da impossibilidade de retratar a história da criança de forma linear e padronizada na rotina doméstica, cujos elos emocionais não podem ser mensurados e nem tampouco ignorados. No entanto, há consenso sobre a problematização dessa categoria só ocorrer na Modernidade e de não poder ser investigada em separado da história da família (MAUSE, 2014).

Perrot (2011, p. 111), ao tratar das transformações da vida familiar por meio da história dos quartos, ressalta que “Na verdade, a criança está em todo lugar e em lugar nenhum. Ela circula na casa, nos campos, na cidade, territórios cujos recursos conhece melhor do que ninguém, sobretudo quando não tem família.”

Freire, ao tratar do conceito de sociedade em transição, assevera que

Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos, para saber o que seremos. (FREIRE, 1979, p. 33)

A trajetória existencial da figura social da criança retrata tendências relacionais no contexto da vida privada e na diversidade dos núcleos sociais: livres e escravos; ambiente rural e urbano; ricos e pobres; órfãos e integrantes de núcleos familiares (PRIORE, 2016).

19 “Há relatos que indicam que, em toda a Europa, o índice de mortalidade girava em torno de 80% no período do Renascimento, por exemplo.” (MARTINS FILHO, 2007, p. 13).

Apesar das críticas cada vez mais contumazes ao pioneiro trabalho de Philippe Ariès sobre a história da infância, é imprescindível reconhecer que é a partir dele que se inicia a busca pela compreensão do decurso da representação da criança na vida doméstica pretérita. A figura da criança aparece esporadicamente em documentos históricos da antiguidade, mas passou a ser registrada com maior frequência a partir da Idade Média, pelo menos é de onde parte a maioria dos estudos sobre o tema.

O trabalho de Philippe Ariès na década de 1970 foi particularmente adequado aos cientistas sociais, que se agarraram prontamente à sua afirmação, feita em História social da criança e da família (1962), de que „na sociedade medieval... o sentimento da infância não existia‟, para demonstrar a natureza mutante dessa fase da vida. (HEYWOOD, 2004, p. 13)

Ariès (1981) descreve que, na Idade Média, em virtude do grande número de filhos procriados nas famílias e do alto índice de mortalidade infantil, não havia uma preocupação efetiva com as necessidades peculiares de uma criança. Logo que ela desmamava, entre 3 e 4 anos de idade, já era direcionada para a participação ativa dos afazeres domésticos ou como aprendizes, além da vida em sociedade. A criança era vestida como um pequeno adulto e lhes eram reprimidas todas as formas de expressões da liberdade pertinentes à vida infantil. Assim que conquistasse a fala com maior proeminência, por volta dos 7 anos de idade, a criança passava a ser considerada uma pessoa adulta.

O referido autor observa que, no século XVII, há um destaque em relação à primeira infância, uma vez que as telas representativas daquela época apresentam a imagem da criança no centro da estampa retratada. Para ele, são três os fatores a explicar essa alteração de posicionamento na pintura: em primeiro lugar o reconhecimento da criança no seio familiar, em especial a criança pequena; o segundo fator representa a forte imposição eclesiástica e legislativa, dando ênfase para a aplicação da disciplina e da racionalidade dos costumes. Essa influência externa acabou instigando a postura da própria família quanto à educação. No século XVIII, somam-se a esses dois fatores a preocupação com a saúde física e a higiene, despertando a valoração do corpo (ARIÈS, 1981).

Badinter (1985), mais crítica que Ariès quanto à representação da infância, aponta três observações que refletem a insignificância da criança no mundo adultocêntrico arcaico, sendo: a primeira, a sua ausência como pessoa, pois a sua representatividade era comparada a de um brinquedo (boneca) que se tem interesse por um lapso temporal e apenas pelo prazer de possuir e não uma real preocupação pelo bem-estar da mesma. “É uma espécie de pequeno ser sem personalidade, um „jogo‟ nas mãos dos adultos” (BADINTER, 1985, p. 78). O segundo

apontamento diz respeito à sua ausência como paciente, considerando a total despreocupação médica, sendo inclusive bastante comum aos médicos se recusarem a atendê-las20. E, por último, a ausência da criança como personagem, uma vez que, nas narrativas literárias, a criança representava uma imagem decorativa e anônima, sendo apercebida somente na metade do século XVIII.

Há de se considerar, entretanto, a diferente concepção dada à criança burguesa e aristocrata, cuja posição social reflete na forma de educação patrocinada. Badinter (1985), ao fazer a ressalva, também concebe três fases sequenciais e distintas dessa trajetória: logo após o nascimento, a criança era entregue aos cuidados da ama de leite com a qual permanecia até completar em média os 5 anos de idade. No retorno a casa paterna a criança era direcionada a uma governanta (se menina) ou a um preceptor (se menino). Passados aproximadamente dois a 3 anos os meninos eram encaminhados a um internato a fim de aperfeiçoarem sua educação. Antes do século XVII era bastante comum a permuta dos filhos entre as famílias, com a finalidade de aprendizado ao servirem seus hospedeiros como criados ou aprendizes. As classes mais pobres, ao contrário, mantinham os filhos próximos e desde cedo eram direcionados aos serviços domésticos e a lavoura, além de constantemente serem considerados verdadeiros estorvos (BADINTER, 1985).

Destoante dos dois posicionamentos, Heywood (2004), tecendo acirradas críticas ao determinismo de Ariès, considera fragilizada a afirmação de que não havia sentimentos em relação à criança no período medieval; ressaltando que qualquer análise deve ser contextualizada e em respeito a não linearidade da própria história, sempre refém de fatores políticos, econômicos e sociais. Heywood (2004), se referindo a James A. Schultz, adverte que, no Ocidente, da Antiguidade até o século XVIII as crianças sempre foram consideradas como “adultos imperfeitos”.

Lloyde de Mause (2014), pensador social estadunidense, também se opõe à tese central de Ariès de que a criança era livre e feliz antes da „invenção‟ da infância. Esse pensamento, fruto do período moderno, impulsionou um comportamento cruel da família ao destruir os laços de amizade, sociabilidade e liberdade próprios da criança, impondo a severidade extrema por meio de castigos ao corpo. Na compreensão do pensador social, o qual reconhece a psico-história como a ciência social do século XX, a realidade da criança no passado foi bastante negligenciada, pois “quanto mais regredimos na história, mais baixo é o

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nível de cuidado dedicado às crianças e mais alta a probabilidade de elas terem sido mortas, abandonadas, espancadas, aterrorizadas e sexualmente violentadas.” (MAUSE, 2014, p. 17).

Ao final do século XVI, há uma inédita propagação da criação de escolas para meninos e meninas, internatos e conventos para os jovens, inclusive com uma visível disputa entre jesuítas e oratorianos pela oferta da melhor educação para os jovens de boa família. Essa inovadora preocupação com a educação das crianças, de forma reflexa, resultou no fortalecimento dos laços afetivos na família, repaginando a família moderna. Substituiu-se a estratégia de investimento apenas no filho mais velho como forma de preservação do patrimônio, passando a ser partilhada a atenção a todos os filhos com o fim de prepará-los para as melhores oportunidades (ARIÈS, 1981; BADINTER, 1985).

Observação interessante na obra de Ariès (1981) é a de que, a partir do século XVII, a criança começa a aparecer em retratos solitários, o que supostamente evidencia uma preocupação despertada pelos inovadores estudos sobre a psicologia infantil. Há um visível direcionamento da atenção paterna voltada à educação no período compreendido entre o século XVI e XVIII, despontando, nas famílias mais abastadas, “dois elementos constitutivos do sentimento de infância: „a paparicação‟, ligado às primeiras idades da criança, e a preocupação com a disciplina e a racionalidade.” (OLIVEIRA, 2001, p.12).

Nesse contexto, surgem os inúmeros manuais de civilidade, sendo Erasmo de Rotterdam, em 1530, um dos primeiros expoentes na educação das crianças e jovens, trazendo em suas obras De Pueris (dos meninos) e A civilidade Pueril um novo olhar sobre a metodologia educacional. Defendia que todas as crianças, de qualquer „classe ou camada social‟, deveriam receber a aprendizagem de „bons modos‟ e que “nunca é cedo demais para iniciar o processo educacional.” (ROTTERDAM, 2014, p. 21).

Os manuais, em geral, tratavam de temas referentes à cortesia, regras de moral comum, e sobre a arte de agradar. Segundo Ariès (1981), no Civillité Nouvelle de 1671, há uma recomendação aos pais de como agirem em conformidade com a intensidade da falta cometida pela criança; ou seja, a punição deverá ser branda ou rigorosa a depender do ato praticado, e no caso de bom comportamento, terá direito a banho e carícias. De qualquer forma, fica nítida a diferença de pertença da criança no ambiente familiar em comparação com a família do século XV.

Com esse novo conceito, observa-se que, no final do século XVIII, as crianças deixam de ser retratadas com trajes de adultos, vislumbrando uma maior possibilidade de movimentação do corpo infantil e a probabilidade de um reconhecimento social da criança.

Importante ressaltar que a centralidade dos filhos no seio das famílias se dava em razão dos interesses da própria família, uma vez que “a sua afirmação no meio familiar não se deu pelo interesse que despertava como ser humano e cidadão, mas somente pelo interesse social que sua existência demarcava.” (OLIVEIRA, 2001, p. 16).

A nova forma de ver a infância como uma fase de desenvolvimento humano, período de formação, é bastante perceptível na literatura expoente, merecendo destaque a obra de Jean Jacques Rousseau, denominada Emílio, publicada em 1762, cuja edição resultou no direcionamento da família para a cultura do amor materno, e em consequência, influenciando todos os demais pensadores posteriores que se ocuparam do tema da infância (BADINTER, 1985).

Essa condição, somada à preocupação com a escola formal, estimulou a união do grupo familiar em detrimento do afastamento dos grupos sociais mais amplos. A casa passa a ser o local de maior importância para o convívio interpessoal, cujos frequentadores ficam restritos aos mais próximos da família nuclear, com vínculos sentimentais mais intensos. Há uma presença marcante do limite entre o domínio público e o privado, com o reconhecimento da responsabilidade familiar sobre os cuidados integrais dos membros da família, especialmente pelos filhos. O comando destas obrigações parentais fica centrado na figura masculina, que passa a ser o censor das regras de comportamento da mulher e dos filhos, os quais lhe devem absoluta subordinação. Nas teias do patriarcado, as funções de cada membro da família são estrategicamente organizadas. Os filhos passam a ser desejados em razão da continuidade do nome da família, do fortalecimento da mão de obra e das aspirações político- sociais ambicionadas pelos pais (BERTHOUD, 2003).

A preocupação educacional dos filhos se tornou prioridade nas famílias com maior delegação a mulher; porém, o repasse da educação às escolas, séculos XVIII e XIX, provocou o favorecimento da imposição cada vez mais incisiva da disciplina rigorosa, a qual se alastrou nas famílias, nas igrejas, entre os moralistas e administradores, que passaram a usar da punição física como forma de uma obediência subserviente (ARIÈS, 1981).

Necessário considerar que essa nova interpretação da figura da criança não atingia a todas elas, pois as não pertencentes à burguesia ou aristocracia permaneciam como futura mão de obra. Isso fica ainda mais patente com o advento da Revolução Industrial, ocasião em que novamente as crianças foram subjugadas e participavam ativamente, desde os 6 anos de idade, da exploração da força de trabalho, independente do grau de insalubridade a que seria exposta.

O século XIX foi marcado por duas formas paradoxais de existência da infância, de um lado as crianças da burguesia com o período da infância alongado graças ao processo de escolarização; de outro, a persistência de um elemento do modelo medieval: a precocidade da passagem para a idade adulta nas camadas mais pobres da população. Fato que se fortaleceu pela demanda de mão-de-obra infantil para a indústria têxtil. (OLIVEIRA, 2001, p. 14)

Contraditoriamente, com o emprego exagerado da mão de obra infantil, surge ao final do século XIX e meados do século XX, legislações protetivas dispondo sobre a limitação e a proteção do trabalho infantil. Há também um incremento no fortalecimento dos estudos científicos voltados à infância, com ênfase para a evolução e a socialização, particularmente nos campos da Pedagogia, Psicologia, Pediatria e da Puericultura. (OLIVEIRA, 2001; HEYWOOD, 2004).

A construção da ideia do amor é destacada como elo formador da família moderna e em razão desse projeto de vida o casamento assume a condição para a felicidade. As pesquisas impactantes de Freud sobre o instinto e a sexualidade, no século XX, trouxeram compreensões e espanto que permanecem até hoje, mas que representou um divisor nos avanços científicos sobre o desenvolvimento do conhecimento do humano. A criança como ser autônomo promove gradativamente a desmistificação da criança somente angelical, requerendo mais atenção e cuidados dos pais (ELIAS, 2012).

As conquistas também na área da tecnologia e do campo social alavancaram grandes mudanças no convívio familiar, repaginando conceitos e mesclando-se gradativamente com a vida pública. Esse trajeto desponta no século XXI com os direitos da individualidade sobrepostos às regras da coletividade familiar e a transição da desconstrução e reconstrução dos papéis parentais. A família se volta cada vez mais para si mesma, isolando-se com maior intensidade do convívio da família extensa e da comunidade social, vitalizando a vida privada (PRIORE, 2016).

Martins Filho (2007), ao advertir sobre o impasse social moderno (O que fazer com as crianças?), destaca que vivenciamos neste século uma inédita forma de abandono das crianças, uma vez que estão sendo protagonistas de um peculiar processo de terceirização dos cuidados maternos e paternos.

Mas o termo terceirização não se refere somente à classe média, com suas babás, empregadas, creches e “escolinhas”. A mãe mais pobre, marginalizada, nas favelas, também terceiriza. Ou não é isso que ela faz quando para ir trabalhar na casa de pessoas mais abastadas, paga uma vizinha para cuidar de seu bebê, que desmama? (MARTINS FILHO, 2007, p. 10)

Nessa realidade, nos poucos momentos em que os pais podem desfrutar da companhia dos filhos, não raramente estão absortos em seus problemas emocionais, econômicos ou de trabalho, e optam em dividir a atenção dos filhos com os equipamentos eletrônicos (vídeos, televisão, jogos etc.). Essa constatação resulta em crianças cada vez mais individualistas e um sem número de pais a conviver com culpa de não saber o que fazer, favorecendo episódios de descontrole e agressão (POSTMAN, 1999).

Assim, a família desta década continua sendo uma instituição basilar da sociedade, apesar de todas as mutações, e apresenta como desafios cotidianos:

O interesse na educação dos filhos, o sustento, a realização profissional dos membros, a satisfação sexual, o envolvimento afetivo, a cobrança para ser uma organização equilibrada apesar de se encontrar “num mundo em descontrole”. A família pós-patriarcal é uma família sobrecarregada, e o “fardo” pela sua manutenção fica na maior parte com as mulheres, que ainda enfrentam a dupla jornada. (SIERRA, 2011, p. 91)

A família objeto da pesquisa corresponde a uniões de adultos com o ímpeto de constituírem uma família e tendo como norte o desenvolvimento pessoal de cada um de seus membros, particularmente o interesse pela condução da criança em seu peculiar desenvolvimento. “Apesar dos diferentes estilos de vida que diferenciam os casais, todos eles reservam aos pais responsabilidades que são comuns na criação dos filhos.” (SIERRA, 2011, p. 90).