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CAPÍTULO 3 PARENTALIDADE E O CAPITAL CULTURAL DA CRIANÇA:

3.5 DO ANONIMATO A AGENTES SOCIAIS

Apesar da evidência das conquistas assistenciais e de proteção legal, continua-se a falar da criança e não com ela. A trajetória da visibilidade da criança como pessoa ainda está em um processo latente de construção. A consciência moral da humanidade de as crianças se tornarem, de fato, sujeitos de direito ainda demanda um caminho meticuloso e de transformação conceitual de representação (MINAYO, 2006).

Na tentativa da participação da criança como ator social, a Sociologia da infância vem apontando várias vertentes de estudo sobre a criança ser pensada como uma pessoa no sentido pleno do termo, beneficiária de direitos e capaz de expressar o seu papel no contexto social (SOARES; SARMENTO; TOMÁS, 2005).

No início do ano de 1980, desponta „a criança sociológica‟ como resultado dos movimentos europeus que buscavam entender as perspectivas da criança por ela mesma, oportunidade em que surgiram os primeiros comandos da sociologia da infância, cujas teorias sociológicas voltam seus questionamentos e problematização para com a criança presente (não apenas com o devir), e com a infância numa ideia de componente estrutural-categorial (QVORTRUP, 2011), construtivista social (PROUT, 2010), interpretativa (CORSARO, 2005) e da visibilidade social (SARMENTO, 2008). Estes posicionamentos permitiram pensar a criança como sujeito e ator social no seu próprio processo de socialização; ou seja, um participante ativo na sua própria história, compreendida como produto social e produtora de cultura. Assim, transitam nas várias teorias conceitos fundamentais como o protagonismo infantil, atores sociais, cultura da infância, processos de socialização, estrutura geracional, etnografia da infância, entre outros.

Norbert Elias (2012) adverte que, apesar de toda literatura e dos discursos sociais, ainda não se sabe como ajudar as crianças “a viver o incontornável processo civilizador

individual, pelo qual cada um transforma-se em adulto, sem que suas possibilidades de gozo e alegria se deteriorem.” (ELIAS, 2012, p. 470). Da mesma sorte, os historiadores e cientistas ainda não responderam, “como os pais se sentiam com relação aos filhos no passado”? (HEYWOOD, 2004, p. 15).

Mário Volpi (2011), então coordenador do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF no Brasil, em participação no Workshop As Crianças do Brasil, observa que, desde o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, tem-se buscado uma mudança do conceito de infância, da relação dos adultos com as crianças e da forma de fazer políticas para as crianças. No entanto, ainda permanecem em construção as quatro transições apontadas por ele como emergentes para uma efetiva transformação:

A primeira transição se refere à ideia de incapacidade da infância, ou seja, a criança deve ser tratada como uma pessoa em situação peculiar de desenvolvimento e não como um ser incapaz. Essa visão de incapacidade favorece a postura autoritária dos adultos nos comandos que exigem subordinação irrestrita, inviabilizando ou dificultando uma mediação com base na dimensão pedagógica, afetiva e contributiva. A segunda transição corresponde ao fato de a criança deixar de permanecer como um objeto de controle, de manipulação ou poder do adulto e passar efetivamente a ser considerada um sujeito que tem direitos, responsabilidades, história, capacidades, potencial decisório, entre outros, independentemente da idade, resgatando o papel de educador do adulto, guiado pelo estilo parental autoritativo.

Ressalta como terceira transição a bifurcação da imagem da infância, onde se tem, de um lado, crianças e adolescentes, e de outro, „menores‟, pobres, problemáticas. A mantença da diferenciação é estigmatizante e inibe a correlação entre igualdade e equidade no tratamento. A quarta e última transição indicada se traduz na urgência de uma moderação nos incentivos consumeristas direcionados à infância, fomentando o mercado da criança consumidora em detrimento dos reflexos prejudiciais à sua saúde emocional e física. Conclui sua fala evidenciando que se trata de um desafio social tratar a criança como um cidadão igual a qualquer outra pessoa, sem menosprezo, sem manipulação, sem diferenciação e sem exploração.

Soma-se a essas dificuldades de transição o fato de alguns pais reconhecerem o direito das crianças, mas somente do lado de fora da casa, porque, no ambiente familiar, continua a prevalecer o campo do poder dominado pelos pais, considerando eventuais manifestações de igualdade uma afronta às regras do jogo parental.

O campo do poder (que não deve ser confundido com o campo político) não é um campo como os outros: ele é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital ou, mais precisamente, entre os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente e cujas lutas se intensificam sempre que o valor relativo dos diferentes tipos de capital é posto em questão. (BOURDIEU, 1996, p. 52)

É bastante inovador o olhar que o adulto vem destinando à criança a partir do século XX, ressalvando, entretanto, que a perspectiva permanece na visão adultocêntrica no sentido de que a preocupação está mais voltada à proteção e não necessariamente em investimentos na mudança comportamental do adulto em relação à criança. Em muitas famílias, ainda se denotam atitudes com ranços quanto à compreensão fática de que a criança é “propriedade” da família e, como tal, sujeita às regras metodológicas da educação escolhida pelos pais.

Até o início do século XX, as relações familiares no Brasil eram consideradas como um assunto exclusivamente privado (na verdade, essencialmente eclesiástico), cuja autoridade máxima – o pai de família -, dotada de poder absoluto, não podia ser contestada por quem quer que fosse, não cabendo, por esta razão, ao Poder Público ali imiscuir-se, além do mínimo necessário. Isto explica também o laconismo constitucional sobre a matéria até 1988, especialmente nas Constituições ditatoriais de 1967 e 1969, que diferentemente das Constituições de 1934, 1937 e 1946, aboliram por completo qualquer referência aos filhos. (MORAES; TEIXEIRA, 2013, p. 2115)

O Estado vem deixando de se preocupar com a moldura das famílias e seus hábitos, em contrapartida, exige que se respeite a individualidade de cada membro, em especial quanto à sua proteção da violência, em todas as suas esferas. A família recebe agora um olhar individualizado para cada um de seus membros (mulher, criança, idoso, portador de deficiência física, incapaz), e muito menos ao conjunto familiar, cujos valores individuais sempre foram suplantados pelos costumes e para a moral da família.

Como exemplo, se destaca o fato da ocorrência de violência física contra a criança, cuja interferência estatal se efetiva assim que a visibilidade do fato passa para a dimensão pública, e a notoriedade confronta com o espaço público e obriga a denúncia pelos servidores do Estado. Segundo Bourdieu (1996), o agente acumula indiscriminadamente o capital (reconhecimento e notoriedade) na intenção de manter-se como dominante. Entretanto, nada é definitivo, uma vez que o campo está em constante movimento quanto a conquista e preservação dos capitais disponíveis naquele espaço social.

Bourdieu (2001) ao tratar do comportamento do homem em sociedade, é categórico ao afirmar que, na atribuição de prerrogativas inatas ao homem, pretende-se desconsiderar os processos sociais que construíram o homem como ele é; dessa forma, percebe-se que há

segunda intenção em não atribuir ao homem a responsabilidade pelos seus atos, mas sim a uma herança que se faz questão de aplicar, defender e repassar para as outras gerações. É impossível não perceber que a mania de bater para educar é uma demonstração inequívoca de agressão física, tanto que a prática do mesmo ato por pessoa estranha à criança representa violência.

Criticar com fundamentação certas práticas de qualquer cultura com as quais não concordamos, promover debates e resistência a essas práticas é salutar e não significa depreciar ou desrespeitar essa cultura como entidade. Mas transformar as concepções nas quais tais práticas se assentam não é fruto de mágica. Devem-se colocar mais e mais a nu as diferenças entre educar e agredir fisicamente, utilizando todas as formas de comunicação e educação possíveis. É preciso persistência e crença na capacidade de mudança da humanidade, ainda que seja lenta. (MATTOS, 2002, p. 129)

O uso corriqueiro de expressões como „desde cedo é que se torce o pepino‟ ou „pau que nasce torto precisa ser endireitado‟ demonstra a intenção maquiada da normalidade da atitude agressiva. Evidencia uma obviedade na correção por meio de castigos corporais, inclusive porque o agressor também sofreu castigos físicos na infância e acredita que foi a melhor maneira de torná-lo uma pessoa de caráter e honradez. Há uma regra de conduta já imposta antes mesmo de o futuro pai surgir. Sendo bom pai, terá que educar o filho assim como foi criado, ou seja, generaliza um comportamento usando como espelho o reflexo da sua infância, na qual foi vítima de agressões por parte dos pais. Se esse processo for entendido como natural, retira-se da vida social, da convivência social, do pertencimento social a responsabilidade por essa sua postura.

De acordo com Bourdieu (2001), o dominante no campo pretende conservar sua posição (manutenção), por isso ele é sempre um conservador. Todo aquele que não é dominante é dominado e tem sempre a pretensão de subverter (mudar de dominado para dominante). Assim, ambos se utilizam de estratégias para conservar ou subverter. No entanto, quando mudam de posição também modificam suas pretensões.

Dessa forma, a sanção de uma lei - que proíba os castigos corporais como forma de educação  é insuficiente para modificar o comportamento dos pais em relação aos filhos, pois o que supera o reconhecimento do direito das crianças é a relação de força entre o capital cultural dos adultos na condição de pais e o capital cultural objetivado promovido pelo Estado em prol da criança como sujeito de direitos. Depende de um árduo trabalho de identificação das relações sociais do passado e dos seus processos de dominação para se ter um olhar crítico do „costume‟ da aplicação dos castigos físicos para educar, contrariamente ao que se preconiza como a forma mais adequada e simplista de que sempre foi assim. Além disso, a

concessão da autoridade aos genitores sempre foi tida como norma social, cuja distribuição de poder acontece a partir do nascimento dos filhos, sem qualquer preparação parental prévia, considerando que as “ordens dos pais, submissão das crianças – era boa, correta e desejável. Essa concepção fazia parte tanto do ponto de vista dos pais, como também – segundo o que tem sido aceito, geralmente – do ponto de vista das próprias crianças.” (ELIAS, 2012, p. 471).

A criança é a pessoa, o cidadão com direitos, e deve ser considerada um ator social, sujeito de seu processo de socialização, um consumidor com poder, um indivíduo emancipado em formação, isto é, que está aprendendo (ou não) a exercer os seus direitos. (BELLONI, 2009, p. VIII)

Qvortrup (2011) defende que as crianças constroem a infância e a sociedade, e de modo particular, sofrem as influências econômicas e institucionais como os adultos, mas que sua dependência favorece sua invisibilidade e inibe sua descrição histórica e social, prejudicando suas proposições de bem-estar. É uma categoria minoritária e, portanto, sujeita a tendências marginalizadoras ou paternilizadoras.

Quando falamos da criança, nós nos colocamos de acordo sobre algo pré-constituído em nosso entendimento, de uma imagem que povoa nossa mente que permite conversar sobre isso, e, ao mesmo tempo, está sendo mobilizada também a representação legítima sobre o que é ser criança. Dependendo do lugar em que se encontra e de que se fala, essa criança imaginada pode apresentar inúmeras características de diferenciação, tais como: idade, aparência, raça, cor, familiaridade, comportamento, amabilidade, circunstância, entre outras tantas figuras indicativas de uma criança. Por sua vez, a Convenção Sobre os Direitos da Criança estabeleceu, em regra, como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade.

A visibilidade social da criança, apesar da dimensão internacional e nacional que o tema ocupa, ainda é paradoxal, considerando a complexidade social e a heterogeneidade das suas condições de vida, especialmente quando se trata de sua realidade participativa na esfera do ambiente familiar. Sarmento (2008), sensível às culturas da infância e das suas diferenças em relação aos adultos, defende a escuta da fala da criança e de seu reconhecimento como protagonista de sua história, elevando a infância à categoria geracional. Argumenta, ainda, que a infância não é uma fase de transição, mas sim uma condição social equivalente a determinada faixa etária. Como um ator social de pleno direito e uma produtora simbólica de cultura, é capaz de romper com o discurso da socialização moderna.

Figura 7 – „Fotos‟ de famílias democráticas e a educação positiva

Fonte: A autora