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CAPÍTULO 2 PARENTALIDADE E O HABITUS DA PRÁTICA EDUCATIVA

2.2 A HISTÓRIA DA CRIANÇA BRASILEIRA

Apesar da história mundial da infância ser bastante comum aos países ocidentais, o Brasil, assim como outros países que foram colonizados, apresenta um panorama histórico diverso, considerando sua trajetória ter iniciado em uma das etapas do andamento do processo europeu, além das peculiaridades civilizatórias do país.

Nesse quadro, resultado da transição entre a insignificância da criança e o modelo de educação-disciplina foi que o Brasil recebeu seus primeiros comandos educativos europeus; ou seja, a infância brasileira também foi histórica e socialmente construída, porém obediente às amarras civilizatórias. Fausto (1999) afirma que a chegada dos portugueses ao Brasil representou uma catástrofe aos ameríndios, pois estes foram vítimas da imposição cultural, além das epidemias e mortes. Segundo Freyre, o contato do indígena com o europeu, sob o ponto de vista da cultura, foi um „contato dissolvente‟. (FREYRE, 2003, p. 177).

Para os índios, as grandes embarcações, os tripulantes e em especial os padres representavam os deuses da crença indígena. Assim, num misto de admiração e temor ficaram vulneráveis aos mandos e desmandos portugueses. “Os brancos eram ao mesmo tempo respeitados, temidos e odiados, como homens dotados de poderes especiais.” (FAUSTO, 1999, p. 16).

Ao desembarcar no solo brasileiro, a igreja portuguesa tinha como missão a conquista da alma indígena com o repasse da diretriz bifurcada das representações infantis: a criança mística e a criança que imita Jesus. Nenhuma delas era comum aos índios que viviam na colônia, o que exigiu um maior envolvimento dos padres jesuítas no sentido de catequizarem as crianças indígenas, consideradas como um “papel em branco” capaz de assimilar os novos preceitos de vida (PRIORE, 2016b).

A princípio, o objetivo maior era aniquilar a cultura autóctone das crianças indígenas, pretensão que se tornou possível, levando-se em conta o grau de curiosidade e fascínio pela cultura branca. Entretanto, esse propósito não era fácil de ser plenamente concretizado, uma vez que grande parte dos índios se recusava a adotar os novos costumes. Num misto de conquista e controle, se pretendia o resgate da alma indígena. (PRIORE, 1996).

A criança indígena passou a representar um instrumento de acesso aos silvícolas, já que, por meio dela, se buscava facilitar a propagação dos costumes e crenças portuguesas. “O processo civilizador dos jesuítas consistiu principalmente nesta inversão: no filho educar o pai; no menino servir de exemplo ao homem; na criança trazer ao caminho do Senhor e dos europeus a gente grande” (FREYRE, 2003, p. 218). Era na catequização „dos bons cristãos‟, tanto religiosa quanto laboral, que os indígenas correspondiam as expectativas de Portugal (FAUSTO, 1999).

Freyre (2003) argumenta que a idealização do pequeno índio nas primeiras tratativas catequistas contrastava com a elevada taxa de mortalidade infantil, o que facilitava a aproximação da figura da pequena criança com o anjo católico, repercutindo na aceitação submissa e quase prazerosa da morte do filho. “A mãe selvagem ninava o filho pequeno, deitado na rede, com palavras cheias de ternura pelo meninozinho que, sob influência do catolicismo, ia ser idealizado em anjo.” (FREYRE, 2003, p. 204).

Daí a tática terrível, porém sutil, dos educadores jesuítas, de conseguirem dos índios que lhes dessem seus culumins, dos colonos brancos que lhes confiassem seus filhos, para educarem a todos nos seus internatos, no temor do Senhor e da Madre Igreja, lançando depois os meninos, assim educados, contra os próprios pais. Tornando-os filhos mais deles, padres, e dela, Igreja, do que dos caciques e das mães

caboclas, dos senhores e das senhoras de engenho ou de sobrado. (FREYRE, 2013, p. 111)

Esse encantamento, entretanto, era antagônico aos métodos utilizados para a imposição da obediência incondicional. Nesta perspectiva de força disciplinadora, as palavras retiradas das cartas do Padre José de Anchieta, enviadas a Portugal no século XVI, comprovam as imbricações do autoritarismo disciplinador. Pode-se afirmar que os castigos e ameaças foram importados de Portugal para o Brasil colonial e foram conduzidas pela Companhia de Jesus em 1549, sendo resultado, entre outras coisas, das orientações metodológicas contidas no ratio studiorum (desenvolver e ativar o espírito), além da literatura pedagógica de Port Royal (PRIORE, 1996).

Foram ainda os jesuítas que representaram, melhor de que ninguém, esse princípio da disciplina pela obediência. Mesmo em nossa América do Sul, deixaram disso exemplo memorável com suas reduções e doutrinas. Nenhuma tirania moderna, nenhum teórico da ditadura do proletariado ou do Estado totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas missões. (HOLANDA, 1995, p. 39)

Os registros mais frequentes das três primeiras décadas da invasão dizem respeito à posse das terras conquistadas e ao extrativismo de suas riquezas, e a partir desse lapso temporal é que a colonização começou a ser efetivada. “Como aconteceu em toda a América Latina, o Brasil viria a ser uma colônia cujo sentido básico seria o de fornecer ao comércio europeu gêneros alimentícios ou minérios de grande importância.” (FAUSTO, 1999, p. 21).

Concomitante e considerando a melhor qualificação dos escravos que vinham de uma experiência com culturas e criação de gado, nas últimas décadas do século XVI, o incremento da mão de obra escrava foi intensificado, relegando ao segundo plano a capacidade produtiva indígena. Mesmo com a alternância da cultura do açúcar, da procura do ouro ou do investimento cafeeiro, a mão de obra escrava foi desumanamente explorada e priorizada (FREYRE, 2003).

A noção tradicional de família na Colônia, não de exclusividade, estava vinculada ao modelo patriarcal, constituída de parentes de sangue e afins, além dos agregados e protegidos. A relação entre pais e filhos, na sua maioria, era “perpassada pelo sentimento de posse. Em decorrência disso, os pais se sentiam no direito de usufruir do trabalho e de determinar o destino dos filhos. A estes caberiam, apenas, dever e obediência” (PRIORE, 2016a, p. 336). Todos, sem exceção, deviam obediência irrestrita ao chefe da família (figura masculina), configurando um modelo de família que teve importante papel nas relações entre sociedade e Estado (FAUSTO, 1999).

Nessa conjuntura é que o Brasil apresentou três infâncias que conviveram no mesmo período, mas que tiveram existências diferentes: a indígena, a escrava e a branca, somadas as diferenças econômicas e sociais. Priore (2016a) observa que, em razão da instabilidade e da intensa mobilidade populacional nos primeiros séculos do Brasil Colônia, a visibilidade das crianças foi pouco registrada, sendo sua identificação apontada em alguns documentos nas expressões de „meúdos‟, „ingênuos‟ e „infantes‟.

Ainda, de acordo com Priore (2016a), a criança originária de uma família pertencente à elite desfrutava da infância com maior liberdade e com a experimentação de inúmeras brincadeiras, além da possibilidade de escolarização de boa qualidade e de ter supostamente um lar bastante harmônico. A criança escrava ou a filha de agricultores pobres assim que começava a se tornar um pouco independente já era direcionada ao trabalho, uma vez que era indispensável sua contribuição para o próprio sustento e de sua família. “Para quem não podia estudar, sobrava trabalhar. A infância traria ainda as marcas da cor da pele e da condição de nascimento. A grande maioria das crianças era ilegítima. Tinham nascido fora do casamento, dentro de uniões livres.” (PRIORE, 2016a, p. 328).

Priore (2016a) defende o posicionamento de que, mesmo com a fragilidade existencial da criança e do número de filhos que as famílias possuíam, a criança foi amada, ressalvada as exceções, desde os seus primórdios, apontando como exemplo os testamentos que demonstram uma preocupação efetiva com as crianças em caso de falecimento dos pais. Porém, “não se admitia franqueza, espontaneidade, criatividade e agitação. Intimidações morais e castigos físicos regulavam as relações.” (PRIORE, 2016a, p. 336).

Como ocorria na Europa, lentamente a Educação e a Medicina, com a colaboração dos pais, vão formatando as crianças do Brasil colonial para que se tornem adultos preparados para assumir responsabilidades. Com a vinda da família real ao Brasil, em 1808, os costumes foram adaptados às regras europeia, com investimentos na área de educação, artes e cultura (PRIORE, 2016). “Gradativamente a correção violenta foi sendo repassada aos professores e mestres, trocando-se o chicote pela palmatória.” (PRIORE, 2016b).

Essa pedagogia sádica, exercida dentro das casas-grandes pelo patriarca, pelo tio– padre, pelo capelão, teve com a decadência do patriarcado rural seu prolongamento mais terrível nos colégios de padres e nas aulas de mestres-régios. Mas principalmente nos colégios de padre do tipo de Caraça. Os pais autorizavam mestres e padres a exercerem sobre os meninos o poder patriarcal de castigá-los a vara de marmelo e à palmatória. (FREYRE, 2013, p. 110)

A autoridade patriarcal foi a marca no Brasil Império, especialmente sobre os meninos, os quais por natureza seriam os herdeiros primeiros dos pais. “Nesse ambiente, o

pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania.” (HOLANDA, 1995, p. 84).

Mesmo fisicamente ausente, o pai gozava de imagem fortíssima. Imagem que dominava a precária vida privada. Em teoria, cabia-lhe velar por tudo, comandar o trabalho, distribuir comida e castigos. A lei, dentro de casa, era estabelecida por ele. Espécie de chefe grave e austero, a ele era atribuída a transmissão de valores patrimoniais, culturais e o patronímico, que assegurariam a criança sua passagem para o mundo adulto e sua inclusão na sociedade. (PRIORE, 2016a, p. 339)

De acordo com Priore (2016a), o filho continuava submisso às ordens dos pais, mesmo quando completava 25 anos de idade, maioridade civil da época, com prevalência aos comandos paternos. Essa submissão é verificável no livro IV, título 87, das Ordenações Filipinas, e que só foi modificada com a conquista da República. É na autoridade e na obediência que se encontram os ditames seculares do domínio do patriarca, reflexo de uma sociedade onde todas as atividades, sejam religiosas, econômicas e políticas, são reunidas no meio doméstico-conjugal (LUMIER, 2007).

Segundo Oliveira (2001), a família brasileira do século XIX apresentava bastante similitude com a família europeia da época, e por extensão na forma de tratamento com sua prole. Tinha também no patriarcalismo a sua estruturação, além da distinção entre os filhos em razão da idade e do gênero. O ensino obrigatório foi regulamentado em 1854, mas a representação da criança como um ser social estava vinculado à sua família de origem, somente vindo a ter importância no campo jurídico ao final do século.

As primeiras décadas do século XX no Brasil foram marcadas por importantes lutas sociais do proletariado, como a greve geral de 1917, consubstanciando em suas reivindicações especial atenção ao regramento do trabalho para as mulheres e menores de 18 anos, bem como a criação do Juizado de Menores e o advento do Código de Menores, com a Doutrina da Situação Irregular.

A trajetória da criança brasileira é marcada pela sua objetivação e instrumentalização como meio para o reconhecimento social e econômico dos adultos.