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4 A INTERPRETAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO

4.1 A QUESTÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO TRIBUTÁRIO

Tão antiga quanto o problema da interpretação dos conceitos de direito privado é a questão da autonomia do Direito Tributário. Embora alguns doutrinadores não reconheçam uma importância prática ao tema, na verdade, a forma de intepretação dos conceitos de Direito Privado empregados pelas normas de competência tributária dependerá da solução apresentada para a questão da autonomia do Direito Tributário. Trata-se, em outras palavras, de uma questão prejudicial ao problema da interpretação dos conceitos.

A questão da autonomia do Direito Tributário diz respeito à demarcação dessa disciplina com outras ciências, como a Economia Política e a Ciência das Finanças, e com outros ramos do Direito, como o Direito Administrativo e o Direito Financeiro, e ao modo que são interpretados conceitos disciplinados por outros ramos jurídicos, em especial pelo Direito Privado, empregados pela legislação tributária.

Segundo Heleno Taveira Torres187, o Direito Financeiro foi introduzido no ensino acadêmico na Universidade de Pavia, por Luigi Cossa, em 1859, com o título de Economia Política. Em 1878, Giuseppe Ricca Salerno assume a cátedra, então, intitulada de Teoria das Finanças. Logo em seguida (1886-1887), a legislação insere no currículo universitário a cátedra de Ciência das Finanças e Direito Financeiro, que teve como primeiros professores Antonio de Viti de Marco e Ugo Mazzola.

Benvenuto Griziotti o fundador da Escola de Pavia, entendia que o fenômeno financeiro é tanto jurídico quanto econômico, de forma que a Ciência das Finanças e o Direito Financeiro possuem uma unidade temática. A concepção integralista de Griziotti, que pretendeu analisar o fenômeno financeiro simultaneamente nos seus aspectos político, técnico, jurídico e econômico, ensejou o desenvolvimento de um método sincrético e a metodologia da interpretação funcional188.

Na Alemanha, ao tempo em que Myrbach-Rheinfeld publicou a primeira obra acadêmica especializada, o Direito Financeiro era estudado no âmbito do Direito

187 TORRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito Privado: autonomia privada, simulação: elusão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 32.

188 AMATUCCI, Andrea. La cuestión metodológica entre los teóricos viejos y nuevos y la autonomía científica del Derecho Tributario. In: ASOREY, Rubén O.; AMATUCCI, Andrea; VEGA, Mauricio A. Plazas. La autonomía del Derecho de la hacienda pública. Bogotá: Editorial Univesidad del Rosario, 2008. p. 51-52.

Administrativo189. Ao contrário de Griziotti, a tradição alemã sempre distinguiu os aspectos econômicos e jurídicos do fenômeno financeiro.

Na Itália, essa posição encontrou expressão em Oreste Ranelletti, o fundador da Escola Napolitana, catedrático de Direito Administrativo na Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Nápoles, que conferiu destaque ao Direito Financeiro. Ranelletti distinguiu o Direito Financeiro da Ciência das Finanças pelo fato de o primeiro estudar o fenômeno financeiro desde o ponto de vista jurídico. Em comum com o mestre de Pavia, concordava com a apreciação unitária do fenômeno financeiro, ressaltando a importância das matérias econômicas para o estudo do aspecto jurídico desse fenômeno, mas se distanciava de Griziotti por não pretender que juristas e economistas estudassem integralmente, e em uma só disciplina, todos os aspectos das finanças públicas190.

De fato, o fenômeno financeiro comporta uma análise econômica e jurídica, sem desconhecer a importância do aspecto econômico para a apreciação jurídica, podendo ser reconhecida a autonomia do Direito Financeiro em relação à Ciência das Finanças, em razão da diversidade de objetos de estudo e métodos. Aliás, atualmente é muito comum que cada um desses campos seja estudado em disciplinas autônomas e com bibliografia própria.

O Direito Financeiro cuida do regramento jurídico do orçamento público, das receitas públicas, da despesa pública e da dívida pública. Dentre as receitas públicas, ressaltam-se as receitas tributárias, cuja complexidade normativa fez surgir a necessidade de um estudo separado. O Direito Tributário é o ramo jurídico que se destaca do Direito Financeiro para estudar a disciplina dos tributos.

Fixada a autonomia do Direito Tributário em relação à Ciência Econômica, cumpre indagar que lugar ocupa o Direito Tributário dentro do ordenamento jurídico? Colocada a questão em outros termos: o Direito Tributário é um ramo jurídico autônomo ou constitui mero tópico do Direito Financeiro ou do Direito Administrativo?

O problema ainda enseja divergência entre os estudiosos. Para Andrea Amatucci191, o Direito Tributário é cientificamente autônomo, porque devem ser rigorosamente atendidos os princípios unitários da capacidade contributiva, progressividade, igualdade substancial e reserva de lei, mas não dispõe de autonomia metodológica, pois adota a metodologia própria

189 AMATUCCI, Andrea. La enseñanza del derecho financeiro en Italia y España, Foro: Revista de Derecho, n. 1, Ecuador, Quito, 2003, p. 129-130.

190

AMATUCCI, La cuestión... 2008, p. 58. 191 AMATUCCI, La cuestión... 2008, p. 75.

do Direito Financeiro. Maurico Plazas Vega192 sustenta que o Direito Tributário constitui um ramo do “Derecho de la hacienda pública” (Direito Financeiro), mas que ostenta uma relativa autonomia justificadora do seu ensino independente.

Na doutrina brasileira, o tema ainda apresenta alguma controvérsia. Heleno Taveira Torres193 e Regina Helena Costa194 rejeitam a autonomia científica do Direito Tributário, mas reconhecem a sua autonomia didática. Para Luciano Amaro195, mesmo a autonomia didática inexiste, tendo em vista que é impossível estudar as disposições de Direito Tributário abstraindo as suas conexões com preceitos de outros ramos do Direito. Paulo de Barros Carvalho196 também rechaça a demarcação ainda que didática do Direito Tributário, em razão da unidade do sistema jurídico. Em suas palavras, “[m]esmo em obséquio a finalidades

didáticas, não deixaria de ser a cisão do incindível, a seção do inseccionável”. (Grifo do

autor).

Diz-se que um domínio do saber possui autonomia científica quando conta com institutos e princípios próprios197. O Direito Tributário enfeixa institutos próprios como o tributo, o lançamento, as exonerações tributárias, etc., e princípios como a capacidade contributiva, a irretroatividade, a legalidade e anterioridade tributária, dentre outros. Contudo, ao contrário do que se possa imaginar, não se reconhece autonomia científica a esse ramo jurídico. Percebe-se, então, que a existência de institutos e princípios próprios não é condição suficiente para a concessão do status de ciência autônoma. É necessário que tais institutos e princípios mantenham independência em relação a outros campos científicos.

A Ciência Econômica guarda autonomia científica em relação ao Direito. Os pressupostos e princípios econômicos são independentes em relação ao ordenamento jurídico. Ainda que a legislação venha a ser modificada, alterando inclusive resultados econômicos, os pressupostos e princípios da Ciência Econômica permanecerão incólumes. Assim, a título de exemplo, o pressuposto da escassez e a lei da oferta e da demanda existem com idêntica eficácia em todos os países, independentemente do seu ordenamento jurídico, e permanecerão intocados a qualquer alteração legislativa.

192 VEGA, Mauricio A. Plazas. Relación entre el derecho de la hacienda pública y el derecho tributario. Diversas clasificaciones del derecho tributario. In: ASOREY, Rubén O.; AMATUCCI, Andrea; VEGA, Mauricio A. Plazas. La autonomía del derecho de la hacienda pública. Bogotá: Editorial Univesidad del Rosario, 2008, p. 87; 91.

193 TORRES, Heleno, op. cit., p. 31-53.

194 COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 35. 195 AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 8. 196

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito tributário. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 41. 197 Nesse sentido, COSTA, Curso de Direito... op. cit., 2014, p. 34.

Essa independência não é encontrada nas diferentes áreas do Direito Positivo, porque o ordenamento jurídico é um composto uno e indivisível de normas que regem as relações sociais. Dessarte, não existe um ordenamento jurídico civil, formado unicamente por normas aplicáveis no âmbito das relações civis, um ordenamento jurídico tributário, com normas reguladoras do tributo sem qualquer vínculo com as normas jurídicas de outros ramos, e assim por diante. Existe apenas o ordenamento jurídico constituído por suas normas regentes de relações sociais. Algumas dessas normas possuem tamanha amplitude que perpassam várias especializações do Direito, como o art. 5º, II, da Constituição da República, que possui importância no âmbito constitucional, administrativo, penal, tributário, civil etc. Outras normas apresentam aplicabilidade mais reduzida, tal qual o art. 138, do Código Tributário Nacional, que trata da denúncia espontânea, cujo interesse circunscreve-se ao campo tributário.

A Ciência do Direito, como bem frisado por Paulo de Barros Carvalho198, é uma linguagem que estuda a linguagem do Direito Positivo. A Ciência do Direito é uma metalinguagem, portanto. Os chamados ramos do Direito nada mais são que recortes metodológicos efetuados pelo estudioso sobre o Direito Positivo com a finalidade de reduzir o seu objeto de estudo a um determinado tema. Os ramos jurídicos são incontáveis e dependem do interesse de estudo do jurista. Assim, é possível falar em ramos tradicionais e estudados em disciplina própria na academia, como o Direito Penal, quando o interesse do cientista resume-se aos crimes e suas consequências, e o Direito Tributário, para compreender o tributo e a relação entre Estado e contribuinte, como também em subdomínios que geralmente não possuem disciplinas próprias nas universidades, como o Direito Falimentar, para analisar o regramento da falência das empresas, e o Direito Portuário, centrado no disciplinamento de aspectos relativos ao funcionamento dos portos, somente para ficar em poucos exemplos.

Desse modo, só é possível falar em ramos da Ciência do Direito. O Direito Positivo não possui ramos. Ademias, cada ramo jurídico terá por objeto as normas do Direito Positivo pertinentes ao seu objeto de estudo. Vale dizer, as normas jurídicas não são exclusivas de cada ramo da Ciência do Direito, visto que uma mesma norma pode interessar a várias disciplinas jurídicas, como é o caso do princípio da legalidade insculpido no art. 5º, II, da Constituição.

A propósito, explica Aurora Tomazini de Carvalho199 que os ramos jurídicos são, na verdade, cortes epistemológicos realizados no Direito Positivo, que não interferem na composição do sistema, mas apenas criam uma especialidade para a Ciência, e não para o Direito Positivo é um sistema uno e indecomponível. Em sua elucidativa analogia, os cortes epistemológicos realizados no Direito Positivo são como o corte da Cardiologia, que não possui o condão de isolar o coração da unidade do corpo humano e entendê-lo como autônomo, pois a separação é apenas didática.

Em suma, não é possível falar em autonomia científica entre ramos do Direito Positivo, mas a autonomia didática dos ramos da Ciência do Direito há de ser reconhecida. A negação da autonomia didática dos ramos jurídicos funda-se no pressuposto de que existem normas próprias de cada especialidade do Direito, com as quais os preceitos de outros ramos jurídicos manteriam conexões. Contudo, conforme exposto, essa ideia não é correta, na medida em que todas as normas que interessam ao estudo de um determinado tema compõem o ramo da Ciência do Direito que o estuda.

Em outras palavras, as próprias normas jurídicas que manteriam relação com aquelas aceitas como pertinentes a um determinado ramo da Ciência do Direito também integram esse subdomínio do saber jurídico, razão pela qual nenhuma estranheza deveria causar o reconhecimento da autonomia didática dos ramos jurídicos. Valendo-se de outra analogia com as Ciências Naturais, algumas normas jurídicas teriam na Ciência do Direito uma posição semelhante à da faringe, que tanto pertence ao sistema respiratório quanto ao sistema digestivo, justificando a possibilidade de estudo por mais de uma especialidade do conhecimento científico.

4.2 RECEPÇÃO E ALTERAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO PELA LEI