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2 A FUNÇÃO DAS CATEGORIAS NA APLICAÇÃO DO DIREITO

2.4 OS CONCEITOS

2.4.2 A estrutura dos conceitos

2.4.2.4 Considerações sobre as teorias dos conceitos

As pesquisas de psicologia e linguística cognitivas empreendidas, a partir do século passado, demonstraram que a rigidez da teoria clássica ou binária não é capaz de explicar a estrutura de todos os conceitos que o intelecto humano pode construir.

Por outro lado, mesmo os defensores da teoria prototípica dos conceitos admitem que a prototipicidade é um conceito prototípico; é dizer, as características ou efeitos ora descritos podem ser exibidos em várias combinações52. Nem sempre os conceitos apresentam concomitantemente todas as características ou os efeitos citados anteriormente.

Primeiramente, é falso afirmar que nenhum conceito é estruturado por conjunto de atributos necessários e suficientes. A categoria dos números inteiros ímpares, cujos integrantes são os números inteiros que divididos por dois não resultam um número inteiro, possuem

49 BRASIL. Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005. Altera os arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231 e acrescenta o art. 231-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11106.htm>. Acesso em: 1º abr. 2016.

50 Nesse sentido, conferir o estudo empírico: RIPS, Lance J.; TURNBULL, William. How big is big? Relative and absolute properties in memory. Cognition, 8, 145-174, 1980.

51 HAMPTON, James A. Typicality, Graded Membership and Vagueness. Cognitive Science, 31, 355-383, 2007. p. 356.

52 Nesse sentido, GEERAERTS, Dirk. Prospects and problems of prototype theory. In: GEERAERTS, Dirk (Ed.).

Cognitive linguistics: basic readings. Berlin: Mouton de Gruyter, p. 141-165, 2006. p. 146; e LEWANDOWSKA-TOMASZCZYK, op. cit., p. 150.

atributos necessários e suficientes, e seguem a lógica binária. Ou seja, se o resultado da divisão por dois não resultar um número inteiro, o exemplar estará automaticamente excluído da categoria de números inteiros ímpares, passando a compor a categoria dos números inteiros pares. Igualmente, os triângulos são figuras geométricas com três lados e três ângulos que somam 180º, e a figura que não possuir essas propriedades não poderá ser classificada como triângulo.

Alguns autores, a exemplo de Wierzbicka contestam a ideia de Wittgenstein de que o conceito de jogo dependeria de semelhanças entre seus exemplares. Wierzbicka53 propõe as seguintes propriedades para o conceito de jogos: 1) coisas que as pessoas fazem; 2) quando elas fazem algo por algum tempo; 3) para o prazer; 4) imaginando que elas estão em um mundo; 5) onde elas querem fazer com que algumas coisas aconteçam; 6) onde elas sabem o que podem e o que não podem fazer; 7) e onde ninguém sabe tudo o que vai acontecer.

No que se refere à estrutura de semelhanças de família, cumpre ponderar que se os conceitos não possuíssem propriedades necessárias e suficientes, seria difícil, senão impossível, definir quais entes poderiam ser inseridos na categoria correlata. Pela concepção das semelhanças de família, o conceito já deve nascer com alguns membros exemplares, que serviriam de parâmetro para as futuras classificações. Ou melhor, o conceito somente existiria em função de algum ente material ou imaterial para o fim de agrupar entes semelhantes.

É certo que os entes não são completamente iguais nem diferentes entre si, de modo nunca serão idênticos, mas sempre guardarão alguma similitude, ainda que seja a própria existência54. Assim sendo, todos os entes poderiam estar contidos em todas as categorias concomitantemente, já que sempre compartilharão alguma propriedade entre si.

Nessas condições, a formação de categorias e conceitos não teria mais nenhuma serventia, pois a utilidade das categorias e conceitos reside justamente na possibilidade de agrupar entes semelhantes para separá-los dos demais. Mas se as coisas continuam a ser classificadas é porque existem algumas propriedades mínimas que devem ser compartilhadas, ainda que parcialmente, para que se possa separar membros de não-membros. Se não se pode classificar a atividade de ministrar uma aula de futebol e manufaturar uma bola de futebol

53 Apud. HAMPTON, Concepts as… 2006.

54 Nesse sentido, ensina Arthur Kaufmann que “não existem dois ‘seres concretos’ (Seienden) completamente diferentes, porque todos eles são iguais ao menos – embora de nenhuma maneira só por isso – porque ‘são’. Existem só a igualdade e a desigualdade parcial: semelhança e dessimilitude.” Tradução livre de: “no existen dos ‘seres concretos’ (Seienden) completamente diferentes, porque todos ellos son iguales al menos – aunque de ninguna manera sólo por ello – porque ‘son’. Existen sólo la igualdad y la desigualdade parcial: semejanza e disimilitud”. (KAUFMANN, Arthur. Analogia y “naturaliza de la cosa”. Tradução de Enrique Barros Bourie. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1976. p. 72).

como exemplo de jogo, embora essas atividades sejam realizadas com bola ou destinadas a produzi-la, é porque existem algumas propriedades necessárias e suficientes, e outras meramente acidentais cujo compartilhamento com outros entes não terá o condão de incluí-lo em determinado conceito.

Em contraste com a posição de Armstrong, Gleitman e Gleitman, embora o kiwi não tenha asas e o avestruz, o pinguim e a galinha não possam voar, existem propriedades que são compartilhadas por todos os integrantes da categoria, tais como nascer de ovos e possuir bico. Essas seriam as verdadeiras propriedades necessárias e suficientes do conceito, enquanto que possuir asas e poder voar seriam propriedades salientes, mas não necessárias.

Aliás, Smith, Shoben e Rips55 sustentam a existência de duas modalidades de propriedades ou atributos dos conceitos. As propriedades definidoras (defining features) são as essenciais, aquelas que o ente deve possuir para ser um membro de uma categoria. As demais são propriedades características (characteristic features), são as acidentais, as que geralmente são possuídas por membros da categoria, mas não são necessárias56.

Esse modelo concilia os fundamentos da teoria clássica dos conceitos com as descobertas empreendidas pelos estudiosos da prototipicidade. Em suma, o conceito continuaria sendo estruturado por propriedades necessárias e suficientes, enquanto que as diferenças de tipicidades seriam determinadas pela ausência ou presença de propriedades características. Quanto maior o número de propriedades características, mais típico é o exemplar, e vice versa.

Para esses autores, o processo de categorização seria realizado em duas etapas. Na primeira, seria realizada uma avaliação global do grau da coincidência de propriedades definidoras e características entre a categoria e o ente a ser categorizado. Sendo possível verificar a compatibilidade ou incompatibilidade entre o objeto e a categoria, um juízo positivo ou negativo seria formado. Não sendo possível formar um juízo seguro, na segunda fase do processo, seria verificado apenas se o exemplar possui as características definidoras da categoria. O processo seria mais lento, contudo, geraria um juízo de categorização mais seguro. As propriedades características seriam mais facilmente observáveis e permitiriam uma categorização mais rápida. Em contrapartida, as propriedades definidoras não seriam

55 Apud. HAMPTON, James A. Polymorphous concepts in semantic memory. Journal of Verbal Learning and

Verbal Behavior, 18, 441-461, 1979; e HAMPTON, James A., Testing the prototype theory of concepts, Journal of Memory and Language, 34, 686-708 (1995).

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Para uma crítica a essa teoria, ver HAMPTON, James A. Polymorphous concepts in semantic memory. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, 18, 441-461, 1979.

prontamente perceptíveis, mas permitiriam uma categorização mais segura.

Hampton exemplifica que a principal diferença definidora entre homens e mulheres que transitam pela rua não é imediatamente observável, no entanto as propriedades características, como vestimenta, aparência facial e forma do corpo permitem uma categorização apropriada na maioria dos casos57.

Lewandowska-Tomaszczyk, partidária da teoria dos protótipos, sustenta que, mesmo no modelo de semelhanças de família, as características não ostentam igual peso. Algumas características, ou conjuntos de características, podem ser mais importantes para a definição da categoria do que outras.58

A característica ou o efeito da tipicidade também sofre impugnações. Eric Margolis e Stephen Laurence59 levantam alguns problemas à ideia dos protótipos. O primeiro, é que o protótipo está sujeito aos mesmos problemas da ignorância e do erro, assim como a teoria clássica. Ou seja, as pessoas podem não possuir informações, ou possuir informações erradas, sobre a extensão de um conceito ou seu membro exemplar. Além disso, os protótipos não são bons pontos de referência para a categorização. Por exemplo, os protótipos de avós são mulheres com cabelos grisalhos, pele enrugada, que usam óculos, e assim por diante. Entretanto, há pessoas que não apresentam essas características, mas são avós; e há pessoas que possuem essas características, mas não são. O segundo problema é que muitos conceitos simplesmente não têm protótipos. Por exemplo, não existem protótipos para avós cuja

maioria dos netos é casada com dentistas, não havendo como se extrair as características

dessa categoria. Por último, os protótipos não podem ser compostos conforme a composição semântica. Os autores ilustram com um exemplo de Jerry A. Fodor, segundo o qual o protótipo animal de estimação (pet) incorpora propriedades que estão associadas a cães e gatos, e o protótipo peixe (fish) codifica propriedades que estão associadas a animais como a truta. Contudo o protótipo peixe de estimação (pet fish) apresenta propriedades que estão associadas com peixes dourados e outros pequenos peixes coloridos, não seguindo os protótipos o mesmo modelo dos conceitos, que podem ser formados pela justaposição de outros.

Nem todos os conceitos e suas respectivas categorias são um continuum

57 HAMPTON, James A., Testing the prototype theory of concepts, Journal of memory and language, 34, 686-708 (1995), p. 688.

58 LEWANDOWSKA-TOMASZCZYK, op. cit., p. 146. 59

MARGOLIS, Eric; LAURENCE, Stephen. Concepts. In: STICH, Stephen P.; WARFIELD, Ted A. (Ed.). The Blackwell Guide to Philosophy of Mind. Malden: Blackwell Publish, p. 190-213, p. 196-197.

indiferenciado, separados apenas por limites difusos (fuzzy) ou incertos. A categoria das aves possui limites rígidos60, embora possa haver alguma dificuldade em apontar suas propriedades necessárias e suficientes. Com efeito, os integrantes dessa categoria, mesmo os mais atípicos, são todos determinados e consensuais. O pinguim, certamente é um exemplo de ave atípica, mas não restam dúvidas de que se trata de uma ave e não de outra classe de animal. De igual modo, a categoria dos Senadores do Brasil também é perfeitamente delimitada. Não existem pessoas que aos poucos vão perdendo as propriedades que caracterizam o conceito de Senador, até que estejam inequivocamente excluídas dessa categoria. Aqui prevalece a lógica binária, ou uma pessoa é ou não é um Senador.

Com base em todas essas considerações, o mais adequado é afirmar que os conceitos podem se estruturar de formas múltiplas. As características da presença/ausência de propriedades necessárias e suficientes; presença/ausência de estrutura de semelhanças de família; tipicidade (degraus de representatividade); e presença/ausência de limites claros devem ser verificadas em cada conceito, podendo vir combinadas entre si. Em outras palavras, a estrutura dos conceitos é uma realidade complexa, na medida em que nem existe uma teoria aplicável para todos os conceitos, nem todos são puros, isto é, conceitos exclusivamente clássicos, com todas as características do modelo binário, ou conceitos prototípicos, com todas as características da teoria da prototipicidade. É preciso reconhecer que existem conceitos que mesclam as características associadas a cada uma das teorias ora estudadas.

Assim, existem conceitos formados por propriedades necessárias e suficientes, em que prevalece a lógica binária (números ímpares, triângulos), e outros sem propriedades necessárias e suficientes (jogos). Há categorias que são estruturadas em forma de semelhanças de família (jogos), e outras que não são (números ímpares, triângulos). Existem conceitos que possuem protótipos, isto é, membros mais representativos da categoria (aves e peixes) e categorias sem protótipos (avós cuja maioria dos netos é casada com dentistas). E também existem categorias com limites bem definidos (Senadores do Brasil), bem como categorias com limites difusos (vermelho, alto).

Além disso, essas características podem ser combinadas de diversas formas. Para exemplificar, o conceito de ave possui propriedades necessárias e suficientes (bico e nascer de ovos); mas estrutura de semelhanças de família, já que existem membros que não possuem todas as propriedades salientes (asas e capacidade para voar); possui degraus de

representatividade (andorinha é mais típico que avestruz); e também limites definidos. Por sua vez, o conceito de vermelho possui propriedades necessárias e suficientes.

A possibilidade de múltiplas combinações entre características contrárias associadas a uma das teorias dos conceitos permite ainda concluir que a própria estrutura dos conceitos é prototípica. É dizer, alguns conceitos estão estruturados exatamente da maneira descrita pela teoria clássica (número ímpar), outros apresentam todas as características da teoria prototípica (vermelho), existindo um espaço entre essas duas zonas prototípicas em que gravitam outros conceitos com feições mistas, mais assemelhados a um ou outro centro representativo.