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4 A INTERPRETAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO

4.3 CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO E AS NORMAS DE COMPETÊNCIA

4.3.1 As reservas materiais constitucionais e o art 110 do Código Tributário Nacional

214 ÁVILA, Humberto. Eficácia do novo código civil na legislação tributária. In: GRUPENMACHER, Betina Treiger. Direito tributário e o novo Código Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 69. Em verdade, pensamos ser mais apropriado falar em inexistência de unidade terminológica para diferentes conceitos, pois os conceitos já são uma unidade, de pensamento.

215 Essa foi uma das conclusões que chegaram os participantes da 5ª Assembleia do II curso de especialização em Direito Tributário, promovido pela PUC/SP, no segundo semestre de 1971, sob a coordenação de Geraldo Ataliba, cuja mesa de debates era composta pelos professores José Eduardo Monteiro de Barros, Bernardo Ribeiro de Moraes, Paulo de Barros Carvalho e o próprio coordenador. ATALIBA, Geraldo (Coord). Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, EDUC, 1975. p. 189.

Embora o Direito Tributário não esteja submisso aos conceitos formulados pelo Direito Privado, a atuação modificadora do legislador tributário conhece limites.

Na sistematização de Humberto Ávila216, esses limites são: 1º) Reservas materiais postas e pressupostas pela Constituição, que serão analisadas em seguida, já que despertam maior interesse para os objetivos deste estudo. 2º) Limites lógicos e ontológicos, que impedem que o Direito perca a vinculação com a realidade, o que aconteceria se, por exemplo transformasse uma obrigação de dar em obrigação de fazer, ou vice-versa. 3º) Limite da proibição de excesso, que protege os direitos fundamentais contra investidas aos seus núcleos impassíveis de restrição. Assim, nenhuma norma infraconstitucional pode eliminar o direito ao exercício da atividade econômica nem extinguir a possibilidade de planejamento tributário. 4º) Limite à proibição de arbitrariedade, que exige um motivo relevante para a alteração legislativa.

A reserva constitucional material posta ou direta consiste na impossibilidade de desprezo, pelo legislador ordinário, dos significados mínimos de expressões utilizadas pela Constituição Federal que já possuem sentidos expressos ou implícitos, incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem, como renda, capital, salário. Uma expressão apresenta sentido expresso quando o seu conceito já tiver sido construído pela doutrina e pela jurisprudência. É o caso do termo salário, definida pela lei e pela doutrina como a remuneração obtida numa relação empregatícia. Por outro lado, uma expressão terá conceito implícito quando sua determinação ocorrer mediante comparações com ouros conceitos. É o caso do termo renda, cujo conceito é obtido pelo confronto com outros conceitos, como faturamento, receita, capital, produto e rendimento217.

A reserva constitucional material pressuposta ou indireta é aquela estabelecida pela Constituição, ao fixar a divisão de competências tributárias, pois, ao atribuir a uma entidade política o poder para tributar um fato, implicitamente estará impedindo outra entidade de instituir o mesmo tributo sobre fato idêntico. Humberto Ávila cita os exemplos do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, em que a palavra mercadoria só pode ser entendida como bem móvel, já compete ao Município tributar as operações com imóveis mediante o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis; e do imposto sobre serviços de qualquer natureza, em que o termo serviços só pode ser conceituado como obrigação de fazer, uma vez que a obrigação de dar está sujeita à tributação pelo ICMS.

216

ÁVILA, Humberto. Eficácia... 2004, p. 70-71.

A reserva constitucional material encontra-se enunciada no art. 110 do Código Tributário Nacional. Essa norma, contudo, apresenta finalidade meramente didática, tendo em vista que é uma decorrência da supremacia da Constituição218. Assim, ainda que não estivesse explicitada no Código, o legislador tributário continuaria impedido de modificar os conceitos de Direito Privado, bem como de qualquer ramo jurídico, adotados pela Constituição. Haveria uma modificação à própria Constituição se essa empregasse um termo T no sentido C1 e o

legislador tributário criasse um conceito específico C2 em substituição ao primeiro.

Embora o art. 110 do Código Tributário Nacional refira-se expressamente apenas à inalterabilidade dos conceitos de Direito Privado, empregados pela Constituição Federal (e também pelas Constituições dos Estados e Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios) para definir ou limitar competências tributárias, não restam dúvidas de que os conceitos de outros ramos jurídicos, e não somente usados com essa finalidade, não podem sofrer modificações pelo legislador tributário. Afinal, a supremacia é uma característica de toda a Constituição, não sendo exclusividade dos dispositivos que utilizem conceitos de Direito Privado com a finalidade de delimitar competências tributárias.

Como o artigo 110 do Código Tributário Nacional faz referência a conceitos e não a

termos de Direito Privado, e considerando que os termos que possuem um conceito

jusprivatista podem possuir outro conceito comum, caberá ao intérprete discernir quando a Constituição fez remissão a um instituto jurídico e quando simplesmente referiu-se a um fato econômico. Na lição de Geraldo Ataliba219, este é o cerne “do direito tributário e de toda a problemática da interpretação”.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado220 anota que a legislação portuguesa conferiu mais segurança jurídica ao debate, ao prescrever, no art. 11º, 2, da Lei Geral Tributária que “[s]empre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”. Não se chegando a um resultado seguro, o art. 11º, 3, estatui: “Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários”.

218 Nesse sentido: MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 22-23; MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao planejamento tributário. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 12-17; MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 118; MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Competência tributária: entre a rigidez do sistema e atualização interpretativa. São Paulo: Malheiros, 201, p. 143 e 167.

219 ATALIBA, Geraldo (Coord). Interpretação no direito tributário. São Paulo: Saraiva, EDUC, 1975, p. 190. 220

MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Competência tributária: entre a rigidez do sistema e atualização interpretativa. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 145-146.

Para a autora, a legislação brasileira contém diferenças que não permitem a aplicação da mesma solução portuguesa. Em primeiro lugar, porque o art. 110, do Código Tributário Nacional não menciona o sempre, sugerindo que em determinadas situações os termos próprios do Direito Privado ou de outros ramos poderão apresentar significado diverso. Segundo, porque, lá, a legislação está traçando balizas para a interpretação de disposições de mesma hierarquia. Aqui, o Código estaria tratando de interpretação constitucional, o que lhe seria vedado.

Todavia, não se vislumbra maiores problemas em se adotar solução semelhante à fixada pela legislação portuguesa.

Inicialmente, cumpre lembrar que o art. 110, do Código Tributário Nacional, tem finalidade meramente didática. Portanto, o dispositivo não pretende regulamentar, mas apenas explicitar o modo de interpretação do Texto Constitucional.

Ademais, a expressão conceitos de Direito Privado foi impropriamente empregada no sentido de termos de Direito Privado, conforme evidenciam alguns fatos. Primeiro, sendo um documento escrito, a Constituição somente pode empregar termos para a veiculação de suas normas. Os conceitos são descobertos através da interpretação. Os termos estão relacionados com o Texto Constitucional, que é entidade positiva; os conceitos, com a norma constitucional, que é entidade lógica221. Dito de outra forma, apenas os termos são passíveis de interpretação, pois os conceitos só são conhecidos pelo processo interpretativo. O art. 110 do Código é um dispositivo que esclarece uma forma de interpretação. Não por outro motivo, encontra-se inserido no capítulo que trata da interpretação e integração da legislação tributária. Daí se conclui que o Código só poderia estar tratando de termos, em vez de conceitos, de Direito Privado.

O fato de o art. 110, do Código Tributário Nacional não ter mencionado o sempre, tal qual a legislação portuguesa, é irrelevante. A ausência dessa palavra na lei brasileira pode significar que a regra comporta exceções, o que, inclusive, foi reconhecido pelo legislador lusitano, ao estabelecer uma ressalva na parte final do dispositivo. Enfim, se o nosso Código não previu um sempre, a Lei Geral portuguesa incluiu um salvo, aproximando o sentido de ambas as disposições.

221 Nesse sentido, Ivan Lira de Carvalho leciona que a norma jurídica é um “ser lógico, que independentemente de ser positivada, traça pauta de comportamento dos súditos do Estado ou da entidade que a proclama”. CARVALHO Ivan, op. cit., p. 308.

Por fim, como não existe diferença de método interpretativo entre os ramos do Direito, uma eventual interpretação no sentido de que poderia o legislador ou intérprete investigar o conceito dos termos próprios de Direito Privado, usados pela Constituição para delinear competências tributárias, sem estar vinculado ao sentido do ramo de origem, teria que valer para todos os conceitos jurídicos empregados pela Lei Maior, mesmo que sem correspondência com a matéria tributária. Consequentemente, jamais seria possível afirmar a priori, ainda que provisoriamente, que termos como “associações” e “cooperativas” (art. 5º, XVIII, da CF), “propriedade” (art. 5º, XXII e XXIII, CF), “direito de herança” (art. 5º, XXX, CF), e “crime” (art. 5º, XXXIX, XLII, XLIII e XLIV, CF), só para citar alguns exemplos, possuem o mesmo conceito atribuído no ramo jurídico de origem.

É verdade que nem todos os termos próprios de outros ramos jurídicos constantes do Texto Constitucional devem sempre ser interpretados de forma estritamente técnico-jurídica. Por vezes, o constituinte empregou um termo próprio de um domínio jurídico em sentido diferente ou na sua acepção comum. O termo “isenção”, empregado pela Constituição em seus arts. 5º, LXXIII; 184, § 5º; e 195, § 7º; não possui o mesmo conceito que apresenta no Código Tributário Nacional, devendo ser entendido como imunidade. Do mesmo modo, a palavra “taxas”, prevista no art. 5º, XXXIV, não se limita à espécie tributária, impedindo também a cobrança de prévio depósito ou arrolamento como condição admissibilidade de recurso administrativo, consoante assentado na Súmula Vinculante 21. O vocábulo “imposto”, gravado no art. 145, § 1º, admite uma interpretação mais ampla, tendo em vista que o princípio da capacidade contributiva também é aplicável às taxas e às contribuições222. A propósito, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 177.835-PE, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Relator Carlos Velloso registrou que “[e]sse dispositivo constitucional diz respeito aos impostos, é certo. Não há impedimento, entretanto, na tentativa de aplicá-lo relativamente às taxas”. Distanciando-se da esfera tributária, importa lembrar que o termo “pena”, encontrado no art. 5º, XLV, possui o sentido mais abrangente de sanção penal, uma vez que a medida de segurança igualmente não poderá passar da pessoa do réu inimputável.

Quanto à possibilidade de alteração dos sentidos dos termos empregados pela Constituição, nenhuma diferença há que ser feita em relação aos conceitos técnicos e comuns. Isto é, mesmo quando o Texto Constitucional tiver utilizado termos nos seus conceitos

222

Nesse sentido: TORRES, Ricardo, Curso de Direito... 2010, p. 97-98; OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Capacidade contributiva: conteúdo e eficácia do princípio. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 50-54.

comuns, deverá ser reconhecida a impossibilidade de sua modificação pelo legislador tributário223.

Vale citar o caso do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana. O art. 32, do Código Tributário Nacional definiu que o referido imposto tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel, como definido na lei civil. Mas o termo “propriedade” constante no art. 156, inciso I, da Constituição, não deveria ser entendido no seu conceito de Direito Civil?

Em princípio, a expressão deveria ser interpretada no seu sentido técnico-jurídico, conferido pelo Direito Civil. Mas, assim como considerar o termo pena, constante do art. 5º, XLV, da Constituição, pode gerar uma consequência inconciliáveis com princípios constitucionais, há de se verificar se tomar a expressão propriedade no seu conceito jurídico não produziria resultados incompatíveis outras normas constitucionais. Afinal, o princípio hermenêutico da unidade da Constituição pressupõe que suas diversas partes devem conviver sem conflitos inarredáveis, cabendo ao intérprete harmonizar as tensões e contradições entre as normas224.

A interpretação técnico-jurídica do termo propriedade afastaria do âmbito de incidência do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU) o domínio útil e a posse, originando situações conflitantes com os princípios da igualdade e da capacidade contributiva. No exemplo de Raquel Cavalcanti Ramos Machado225, o IPTU não poderia ser cobrado dos detentores do domínio útil de terrenos de marinha, em face da imunidade recíproca da proprietária dos imóveis, não obstante o bem seja explorado em condição quase idêntica à dos proprietários e tal fato revele capacidade contributiva. Ademais, continua a autora, os ocupantes de imóveis em situação irregular não poderiam ser tributados, beneficiando-se da permanência da irregularidade.

Para alguns autores, a expressão propriedade utilizada para delimitar a competência tributária municipal para instituição do IPTU deveria prestigiar o sentido dado pelo Código Tributário Nacional, por se tratar de um conceito de Direito Tributário pré-constitucional, que

223 Ensinam Marcelo Viana Salomão e Gabriel Magalhães Borges Prata: “É forçoso, por, que reconheçamos o caráter vinculativo dos usos linguísticos da linguagem comum.” SALOMÃO, Marcelo Viana; PRATA, Gabriel Magalhães Borges. Sobre a interpretação das normas tributárias: questões fundamentais. In: MACHADO, Hugo, de Brito (Coord.). Interpretação e integração da lei tributária. São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2010, p. 261).

224 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 196 e 372.

teria preferência diante do conceito de Direito Civil226. Entretanto, essa justificativa é refutada por Raquel Cavalcanti Ramos Machado227, ao lembrar que, desde a sua edição, o art. 32, do Código Tributário Nacional, foi considerado válido, apesar de a Constituição de 1946 não ter autorizado a ampliação do conceito de propriedade.

Como bem sintetiza Luís Eduardo Schoueri228, é tentador o raciocínio simplista no sentido de que, se uma expressão utilizada pela Constituição possui um conceito no Direito Privado, então estaríamos autorizados a concluir que o constituinte reportou-se ao próprio instituto jusprivatista. Entretanto, para demonstrar que essa conclusão apriorística não se sustenta, ele lembra o caso da expressão propriedade, que na Constituição Federal não se refere ao instituto de Direito Privado, enquanto no Código Tributário Nacional remete ao direito real disciplinado pela lei civil. Para Luís Eduardo Schoueri, melhor teria andado o Código Tributário Nacional se tivesse indicado ao intérprete, a exemplo da Lei Geral Tributária portuguesa, como reconhecer se uma expressão refere-se a um instituto de Direito Privado.

Parece, contudo, ser possível deduzir que, também no ordenamento jurídico brasileiro, os termos próprios de Direito Privado utilizados pela Constituição devem ser considerados no seu conceito técnico, salvo se resultar em interpretações incompatíveis com outras normas constitucionais, caso em que caberá ao intérprete buscar uma solução harmônica. Assim não fosse, seria preciso acreditar que o conceito de cada termo do Texto Constitucional só poderia ser encontrado após uma minuciosa investigação, sendo que, até lá, o intérprete manter-se-ia no mais absoluto estado de dúvida.

Ora, não é assim que as coisas funcionam na linguagem. Com efeito, é possível atribuir, a priori, um padrão de sentido para as palavras, mesmo que posteriormente constate- se que algumas delas fogem a esse padrão. Por exemplo, as palavras da língua portuguesa possuem um ou mais sentidos formais, catalogados em dicionário, e, não raro, um ou mais sentidos informais, utilizadas em gírias. Ao conversar com alguém, ler um livro ou assistir um

226 Esse é o entendimento de Ricardo Mariz de Oliveira, Gustavo Martini de Matos e Fábio Piovesan Bozza: “Não existindo uma definição constitucional, ou sendo esta insuficiente para fixar a abrangência da expressão, o intérprete deve buscar a noção desses termos na legislação infraconstitucional editada previamente à promulgação da Constituição Federal e que tenha sido recepcionada pela nova ordem constitucional, dando preferência às normas gerais de Direito Tributário, constantes do CTN (é o caso das noções de propriedade territorial rural, propriedade predial e territorial urbana, renda, produto industrializado)”. (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; MATOS, Gustavo Martini de; BOZZA, Fábio Piovesan. Interpretação e integração da lei tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Interpretação e integração da lei tributária. São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2010, p. 379-380).

227

MACHADO Raquel, Competência tributária... 2014, p. 148.

filme ou peça, é razoável presumir que as palavras encontradas assumirão, prioritariamente, um sentido formal, desfazendo-se essa presunção quando tal significado tornar a mensagem incoerente. Do mesmo modo, é legítimo presumir que os termos próprios de Direito Privado empregados pela Constituição Federal devem ser tomados no seu conceito técnico-jurídico, salvo se uma consequência inconstitucional advier dessa interpretação.

Mas por que, poder-se-ia perguntar, os termos próprios de Direito Privado devem ser interpretados, a priori, no sentido jurídico? Por que não interpretá-los no sentido comum, e, somente diante de uma incompatibilidade com outras normas constitucionais, recorrer ao conceito jurídico? Os conceitos podem ser definidos por termos com uma unidade de significado, sendo que, eventualmente, ainda possuem termos sinônimos que poderiam ser perfeitamente empregados pelo constituinte para evitar a imprecisão ou dubiedade das normas constitucionais. Não parece razoável conceber que a Constituição, querendo referir-se a um conceito comum, tenha preferido empregar termos tradicionalmente associados a um ramo jurídico, quando podia ter lançado mão de termos de definição ou de um termo sinônimo.

Não é ocioso lembrar que existem expressões usadas pela Constituição em que tanto o sentido técnico quanto o comum não conflitam com princípios e regras constitucionais. Desse modo, a decisão de qual conceito adotar não pode ser tomada com base no cotejo dos sentidos possíveis com outras normas constitucionais. Veja-se o caso da expressão “folha de salários” constante no art. 195, inciso I, da Constituição, ampliada pelo art. 3º, inciso I, da Lei nº 7.787 de 30 de junho de 1989,229 para abranger a remuneração dos avulsos, autônomos e administradores. Em sede de controle de constitucionalidade da referida norma, exercido pelo Supremo Tribunal Federal, a discussão girou em torno tão somente de qual método deveria prevalecer para interpretação dos termos conceituados por um ramo do direito. Não se vislumbrou qualquer ofensa a preceitos constitucionais por qualquer das interpretações em disputa230. No final, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade da expressão

autônomos e administradores, no Recurso Extraordinário 166.772-9-RS, estendendo para avulsos, autônomos e administradores, no Recurso Extraordinário 177.296-4.

Não se pode olvidar que a posição sustentada neste trabalho conhece divergência. Em seu voto vencido proferido no mesmo Recurso Extraordinário 166.772-9-RS, o Ministro Carlos Velloso preconizou que

229 BRASIL. Lei nº 7.787 de 30 de junho de 1989. 230

O Ministro Franciso Rezek, no RE 166.772-9-RS, buscou alguma correspondência do inciso I como o inciso seguinte, mas sem defender que a interpretação vencedora violaria preceitos constitucionais.

[...] à interpretação da Constituição, por ser esta uma lei em sentido material, aplicam-se os métodos de interpretação comuns. Todavia, porque a Constituição é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, há métodos de interpretação que são próprios da hermenêutica constitucional. Registra Manoel Gonçalves Ferreira Filho que é de Bryce a advertência no sentido de que, “vindo a Constituição do povo, voltando-se ela para o povo com o propósito de vida, sua linguagem não é técnica, necessariamente. O sentido comum de suas palavras deve prevalecer sobre o seu sentido técnico, a menos que haja razões em contrário.

Todavia, após essa advertência o Ministro Carlos Velloso sustentou a existência de um conceito de salário próprio do Direito Previdenciário, conceituado como a remuneração percebida pelo trabalhador em geral, que prevaleceria em face do conceito trabalhista. Em suma, na prática, o Ministro acabou por prestigiar o sentido técnico dos termos.

A mesma solução não vale para os termos que possuem conceitos técnico-científicos de outras áreas do saber. Não se pode exigir que o legislador esteja familiarizado com a terminologia de todas as ciências. O caso Nix v. Hedden231, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, é bem ilustrativo. O Tariff Act, de 03 de Março de 1883, tributava a importação de verdura, mas isentava as frutas. Botanicamente o tomate é uma fruta, mas é visto pelo senso comum como uma verdura, o que levou a Suprema Corte a decidir que o