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3 A TIPOLOGIA NO DIREITO TRIBUTÁRIO

3.3 O PRINCÍPIO DA TIPICIDADE TRIBUTÁRIA

3.3.4 O conteúdo do princípio da tipicidade

Se o princípio é uma norma imediatamente finalística e mediatamente de conduta, ou seja, que busca promover um estado ideal de coisas por meio de condutas não preestabelecidas, as quais serão determinadas pelo destinatário da norma, cabe perquirir qual é a finalidade ou o estado de coisas que o princípio da tipicidade persegue.

Beling162 relata que, antes do advento do liberalismo, no século XVIII, o poder judicial tinha se tornado tão amplo que o juiz poderia punir qualquer conduta ilícita e culpável. Como não havia uma delimitação firme das ações que poderiam ser consideradas puníveis, em última análise, o juiz poderia impor um castigo a toda ação que lhe desagradasse, arbitrando a pena adequada.

O liberalismo investiu contra essa insegurança jurídica e, como resultado, a legislação posterior passou a recortar do conhecimento comum das ilicitudes culpáveis certos tipos delitivos e a atribuir-lhes uma pena. Portanto, nem toda conduta ilícita é suficientemente relevante para a imposição de uma punição, mas tão somente as que foram descritas pelo legislador. A proteção jurídica do indivíduo foi reforçada com o monopólio do legislador do poder de construir os tipos e de cominar sanções, ficando vedado o uso da analogia e do costume para imposição de pena163.

À semelhança do Direito Penal, a evolução histórica do Direito Tributario constitui “a luta indormida dos povos para submeter o poder dos governantes ao primado da legalidade”164

. Acrescenta Sacha Calmon Navarro Coêlho que, embora o princípio da legalidade tenha despontado em vários lugares, convencionou-se tomar como marco histórico a Magna Charta imposta a João Sem Terra, que consignou em uma de suas prescrições a frase

no taxation without representation165. Não obstante, a ideia de legalidade só veio a ser

162 BELING, op. cit., p. 36-37. 163 BELING, op. cit., p.37.

164 COÊLHO, Curso de Direito..., 2004, p. 209. 165

COÊLHO, Curso de Direito..., 2004, p. 212. Na verdade, o famoso slogan no taxation without representation não aparece em nenhum dos itens da Magna Charta Libertatum, sendo mais provável que tenha sido cunhado no Século XVIII, durante o prelúdio da Revolução Americana. A frase sintetiza a revolta dos colonos americanos contra as leis instituidoras de tributos do Parlamento Britânico, como o Stamp Act, em razão da inexistência de representação americana naquela Casa. Persiste, contudo, divergência acerca do autor da frase. Alguns acreditam que teria sido formulada pela primeira vez em 1750 pelo Reverendo John Mayhew no sermão intitulado “A Discourse concerning Unlimited Submission and Non-Resistance to the Higher Powers” de 1750. Entretanto, pela versão disponibilizada pela Electronic Texts in American Studies, percebe-se que a máxima não foi utilizada em nenhum momento (MAYHEW, Jonathan; ROYSTER, Paul (Ed.), A Discourse concerning Unlimited Submission and Non-Resistance to the Higher Powers: With some

efetivada com o liberalismo, pois, conforme relata Ricardo Lobo Torres166, no absolutismo e no Estado de Polícia do século XVIII, o tributo era cobrado com fundamento na Razão de Estado.

Diante desse cenário, o princípio da legalidade tributária foi uma conquista dos contribuintes no sentido de alcançar uma segurança jurídica necessária para o desenvolvimento de suas atividades econômicas.

No entanto, o mero aspecto formal do princípio da legalidade (reserva de lei) pouco contribuiria para salvaguardar a segurança jurídica dos contribuintes. O legislador poderia facilmente burlar essa garantia instituindo um tributo com hipótese de incidência genérica, como um tributo sobre a manifestação da capacidade contributiva, por exemplo. Como anota Sacha Calmon Navarro Coêlho167, “[d]e pouca serventia seria fixar no Legislativo a função de fazer as leis físcais (legalidade) se ela nao permitisse ao contribuinte conhecer claramente o seu dever (tipicidade) e previamente (não-surpresa)”.

À vista de tudo isso, fica evidente que a segurança jurídica tributária só pode ser alcançada com o reconhecimento do princípio da tipicidade, dimensão material do princípio da legalidade tributária.

A finalidade do princípio da tipicidade tributária é a de promover a segurança jurídica do contribuinte, com vistas a alcançar um estado ideal de coisas, consistente na previsibilidade e determinabilidade dos elementos essenciais do tributo. Em outras palavras, o destinatário do princípio da tipicidade constitui um mandamento para que legislador, que

Reflections on the Resistance made to King Charles I. And on the Anniversary of his Death: In which the Mysterious Doctrine of that Prince's Saintship and Martyrdom is Unriddled (1750). An Online Electronic Text Edition, Electronic Texts in American Studies, Paper 44, Disponível em: <http://digitalcommons.unl.edu/etas/44>. Acesso em 14. maio 2016). Para outros, o slogan surgiu após a sustentação oral do advogado James Otis, contra os Writs of Assistance, que foram mandados genéricos, autorizando buscas de material contrabandeado dentro de quaisquer instalações suspeitas, inclusive residências, introduzidos pela primeira vez em Massachusetts em 1751 para fazer cumprir os Acts of Trade. Otis era advogado-geral do Tribunal Marítimo, mas se demitiu quando foi chamado a defender a legalidade dos writs, passando a representar pro bono os comerciantes de Boston perante o Tribunal Superior de Massachusetts. Segundo seu biógrafo William Tudor, Otis rotulou o Writ of Assistence de instrumento de escravidão e vilania, o pior instrumento de poder arbitrário, o mais destrutivo da liberdade e dos princípios fundamentais do direito, que já foi encontrado na legislação inglesa. Nessa sustentação, Otis ainda pronunciou a célebre frase: “A man's house is his castle” (A casa de um homem é seu castelo). O discurso impressionou o jovem expectador John Adams, aquele que mais tarde viria a ser Presidente dos Estados Unidos. Adams contou a Tudor que Otis atacou os Acts of Trade e “a partir da energia com a qual ele defendeu esta posição, de que ‘taxation without representation is tyranny’ (tributação sem representação é tirania), ela se tornou uma máxima comum na boca de todos.” (TUDOR, William. The life of James Otis,

of Massachusetts: Containing also, notices of some contemporary characters and events, from the year 1760 to 1775. Boston: Wells and Lilly - Court-Streets, 1823, p 62 e ss., especialmente p. 76-77).

166 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 17. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 106.

detém o monopólio da competência tributária, adote as condutas necessárias no sentido de que os tributos instituídos tenham suas hipóteses de incidência e consequências jurídicas previsíveis e determináveis.

Do princípio da tipicidade, ensina Alberto Xavier168, decorrem quatro corolários, como se observa a seguir.

1) Princípio da seleção

O legislador deve selecionar fatos representativos da capacidade contributiva, estando vedada a tributação baseada num conceito geral ou cláusula geral.

Assim como nem toda ilicitude enseja a aplicação de uma sanção penal, nem toda manifestação de riqueza justifica a imposição de tributo. É imprescindível que a ilicitude ou a manifestação de riqueza esteja prevista em lei formal.

Há doutrinadores que defendem que a seleção da hipótese de incidência não precisa guardar nenhuma relação com a capacidade econômica do contribuinte. A. D. Gianinni169, por exemplo, sustentava que o legislador goza de discricionariedade para selecionar os pressupostos do imposto e que essa escolha deveria recair prevalentemente, mas não necessariamente, sobre os fatos econômicos expressivos de capacidade contributiva.

Não parece ser a posição mais acertada. Assim como a lei penal somente deve tipificar as condutas lesivas aos bens jurídicos mais importantes (princípio da lesividade), o legislador tributário não pode se furtar de selecionar apenas fatos econômicos indicadores da capacidade contributiva, sob pena de inconstitucionalidade da lei.

2) Princípio do numerus clausus

Os tributos devem estar taxativamente previstos na lei, sendo impossível a tributação por analogia. Esse subprincípio expressa que os elementos da hipótese de incidência são necessários, de modo que, na falta de qualquer deles, não haverá o surgimento da obrigação tributária.

A analogia consiste na aplicação a um caso não regulamentado da mesma disciplina normativa dada a um caso regulamentado semelhante. Trata-se de uma modalidade de colmatação de lacunas, em que uma norma destinada a disciplinar um determinado caso é

168 XAVIER. Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 83-99.

aplicada a outro caso não incluído no seu âmbito normativo. Na precisa lição de Sacha Calmon Navarro Coêlho, a analogia acontece quando uma norma destinada a ser aplicada a um caso que possui as propriedades A, B, C e D, é aplicável a um caso com as propriedades A, B, C e E.

Segundo opinião generalizada, a proibição da analogia é uma das principais derivações do princípio da tipicidade170. Apesar disso, há doutrinadores que não reconhecem a vedação da analogia no Direito Tributário171, rejeitando o pressuposto de ausência de vazio ou lacunas jurídica em matéria de tributação.

Consoante observação de José Maria Arruda de Andrade172, os argumentos usados pelos defensores da proibição da analogia são ligados à segurança jurídica e à legalidade, enquanto que a doutrina minoritária, para defender a aplicação analógica, invoca a igualdade e a solidariedade. Percebe-se que Alberto Xavier173 tinha razão quando advertira que todas as tentativas de agressão ao princípio da legalidade têm sido praticadas em nome do princípio da igualdade e da capacidade contributiva.

Contudo, a verdade é que as normas fiscais devem ser interpretadas estritamente, tendo em vista que a forma taxativa com que são construídas não deixa espaço para lacunas. Os tributos assumem estrutura semelhante aos conceitos classificatórios, sendo regidos por uma lógica binária, isto é, são compostos por elementos necessários e suficientes, sem os quais um fato estará automaticamente excluído do âmbito de incidência da norma tributária. Do mesmo modo que os conceitos classificatórios não admitem a analogia, não havendo, por exemplo, números ímpares por analogia ou aves por analogia, também as hipóteses de incidência não podem ser aplicadas a casos análogos.

Todavia, como bem adverte Ivan Lira de Carvalho174, a interpretação estrita é a exceção, não se aplicando a todas as normas de Direito Tributário, mas somente “[à]quelas impregnadas de inconteste fiscalidade”.

A analogia como instrumento de autointegração do direito não pode ser confundida com o procedimento analógico da aplicação e interpretação do direito no sentido tomado por

170 TABOADA, Carlos Palao. La aplicación de las normas tributarias y la elusión fiscal. Valladolid: Lex Nova, 2009, p. 66.

171 Nesse sentido, ÁLVAREZ, Mónica Siota. Analogía e interpretación em el derecho tributario. Madrid, Barcelona, Buenos Aires: Marcial Pons, 2010.

172 ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. São Paulo: MP, 2006, p. 278. 173 XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2001, p.

45. 174

CARVALHO, Ivan Lira de. A interpretação da norma jurídica (constitucional e infraconstitucional). Revista da AJURIS, n. 58, p. 306-322, jul. 1993, p. 317.

Arthur Kaufmann. Esse último constitui o emprego de um juízo de analogia pelo intérprete ou aplicador da lei, com o intuito de verificar se a situação concreta enquadra-se na hipótese normativa. Como a subsunção, no sentido que tradicionalmente lhe é atribuído, só é possível entre proposições, por terem idêntica natureza de entidades lógicas, o aplicador deve se valer do procedimento analógico, em razão da heterogeneidade entre a norma e o fato. A analogia é um recurso utilizado em momento posterior. Uma vez constatado que o fato não atrai a incidência da norma jurídica apreciada, mediante o procedimento analógico descrito por Arthur Kaufmann, o operador jurídico, mesmo assim, aplica a disciplina normativa ao caso não regulado, por entender presente uma identidade de razões.

Por todo o exposto, o legislador brasileiro agiu corretamente ao prescrever, no art. 108, § 1º, do Código Tributário Nacional, que “O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei”.

3) Princípio do exclusivismo

A hipótese de incidência do princípio do exclusivismo deve conter a descrição completa dos elementos necessários à tributação, de forma a conter uma valoração definitiva da realidade, sem carecer ou tolerar qualquer outro elemento valorativo estranho a ela. É em função desse subprincípio, que se entende que os elementos do tipo são suficientes para o nascimento da obrigação tributária.

4) Princípio da determinação

O conteúdo da decisão de aplicação da lei tributária deve estar rigorosamente contido, limitando-se o aplicador à mera subsunção do fato ao tipo tributário, uma vez que todos os elementos componentes desse estão descritos na lei de forma precisa.

A determinação dos elementos do tipo não pode mais ser entendida segundo o mito que vigorou no fim do século XVIII e início do XIX do legislador racional, aquele cuja onisciência permitiria conhecer as necessidades sociais e sua melhor solução, formulando leis e códigos com a resposta determinada para todos os casos. Nesse sistema, o papel do juiz limitar-se-ia a ser boca da lei, segundo a fórmula de Montesquieu, cabendo-lhe apenas efetuar um puro silogismo entre a lei e os fatos e aplicar a conclusão prevista175.

175 AMADO, Juan Antonio García. Retórica, argumentación y Derecho, Isegoría, n. 21, p. 131-147, 1999. p. 131-132. Vale, contudo, registrar a lição de Luiz Alberto Gurgel de Faria, no sentido de que o princípio da onipotência do legislador em sua integralidade é mais fruto da obra dos primeiros intérpretes do Código de Napoleão (1804), que fundaram a Escola da Exegese, do que de seus redatores, que admitiam a existência de

Verdade seja dita, não passa de mero devaneio reduzir a aplicação do direito a uma atividade puramente siologística. Atualmente, o silogismo no direito não é mais entendido como fora outrora. No magistério de Neil MacCormick176, as leis são construídas com conceitos universais, tais como consumidor, fabricante, produto, dano ou causa. Os casos particulares devem ser qualificados nas categorias previstas na lei, o que ocorre mediante raciocínio argumentativo. Em seguida, a consequência jurídica pode ser aplicada mediante processo silogístico, pois os fatos já estarão convertidos em proposições, podendo ser subsumidas à premissa maior (lei). Em resumo, a dedução ocorria apenas num momento posterior ao raciocínio argumentativo, ou procedimento analógico, nos termos de Arthur Kaufmann.

No entanto, como adverte Sacha Calmon Navarro Coêlho177, “o princípio da tipicidade não torna o juiz mero autômato”. A necessidade de concretização da lei tributária não é negada. O princípio da tipicidade pretende afastar “o subjetivismo que antes penetrava em seu conteúdo, a vontade do rei, por seus ‘ministros’”. O que se quer é impedir a utilização de conceitos genéricos nos tipos tributários, que, na prática, acabariam transferindo para o aplicadoro poder de criar tributos.

A propósito, a doutrina que recusa a existência do princípio da tipicidade no Direito Tributário não o faz contestando sua vinculação com o princípio da legalidade, mas afirmando a impossibilidade de seu conteúdo. Ocorre que essa posição compreende o princípio da tipicidade como uma obrigação de determinação absoluta dos conceitos empegados no tipo, o que, de fato é irreal. Primeiro, os conceitos utilizados pelo legislador nem sempre, aliás, poucas vezes, contarão com definições de precisão milimétrica. Ademais, como explicado no capítulo anterior, todo conceito conversa algum grau de indefinição. O modo como o conceito é utilizado também pode ensejar dúvidas sobre a sua adequada interpretação. Por fim, vale lembrar que o silogismo entre norma e fatos somente acontece indiretamente, pois, primeiro os fatos devem ser qualificados em categorias jurídicas universais, como anota MacCormick, e isso se dá segundo um processo analógico, conforme demonstrou Arthur Kaufmann.

lacunas na lei, as quais deveriam ser sanadas pelo emprego das normas de direito natural. FARIA, Luiz Alberto Gurgel de. A contribuição do Direito natural para o positivismo jurídico. Revista ESMAFE: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 4, p. 25-35, dez. 2002. p. 31.

176 MACCORMICK, Neil. La argumentación silogística: una defensa matizada, Doxa: Cuadernos de Filosofía

del Derecho, 30, p. 321-334, 2007.

Contudo, o fato de um estado ideal de coisas revelar-se utópico não significa que não possa ser buscado na maior medida do possível. Tome-se por analogia o princípio da neutralidade tributária. É certo que não existem tributos neutros, pois de alguma forma sempre produzirão impactos na economia178. Contudo, isso não exime o legislador de criar tributos menos interventivos, tanto quanto possível. Do mesmo modo, afirma-se que a verdade nem sempre é alcançável, mas isso não significa que o juiz penal deve desconsiderar o princípio da verdade real e abster-se de chegar o mais perto possível dela, passando a julgar com base em suposições, ficções, crenças etc. Por certo, a precisão e determinação absoluta dos conceitos também é uma meta inatingível, mas isso não desonera o legislador de sempre tentar tornar o tributo o mais previsível e determinável possível.

Assim, em uma concepção mais adequada ao atual estágio da Teoria do Direito, o conteúdo do princípio da tipicidade deve ser entendido como um mandamento para que o legislador, quando da formação da hipótese de incidência, utilize conceitos claros e precisos, na maior medida do possível, de modo a garantir a previsibilidade e determinabilidade dos tributos.

3.3.5 O emprego de tipos (propriamente ditos) e outros conceitos vagos na hipótese de