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4 A INTERPRETAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO

4.2 RECEPÇÃO E ALTERAÇÃO DOS CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO PELA

A autonomia (didática) do Direito Tributário conduz à indagação a respeito da interpretação dos conceitos de Direito Privado, ou de outros ramos jurídicos, empregados pela legislação tributária. A questão cinge-se em saber se tais conceitos seriam interpretados do mesmo modo que os são no Direito Privado, ou se uma vez utilizados na lei tributária ganhariam sentido específico e distinto do que possuem no ramo jurídico onde se originaram.

199 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Teoria geral do Direito: o construtivismo lógico-semântico. 2009. 623 fl. Tese. (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2009. p. 123- 124.

Primeiramente, cumpre reafirmar que as normas jurídicas, e, portanto, os conceitos que elas veiculam, não são de domínio exclusivo de um ramo do Direito. Em rigor, não existem os conceitos de Direito Privado, mas simplesmente os conceitos do Direito. Alguns conceitos vão ser úteis para a Ciência do Direito Privado, outros não terão essa utilidade, contudo terão valor para outros ramos jurídicos. Diante da unidade do ordenamento jurídico, até mesmo a expressão lei tributária não apresenta rigor científico. Aliás, Alfredo Augusto Becker200 já advertira não existir um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou comercial, tendo em vista que os vários ramos do Direito são partes de um único sistema jurídico.

Desse modo, esclarece-se que expressões como conceitos de Direito Privado, lei

tributária ou legislador civil continuarão a ser empregadas neste trabalho por razões

meramente didáticas, visando a simplificar a compreensão e o estudo do problema.

Duas correntes opostas desenvolveram-se no intuito de solucionar a questão. Uma primeira, geralmente partindo da autonomia científica do Direito Tributário, sustentava que os conceitos utilizados pelo legislador tributário, inclusive aqueles originários de outros ramos jurídicos, tinham um sentido próprio e adequado aos seus objetivos201. Para os seus defensores, o Direito Tributário possuiria características e escopos diversos de outras especialidades jurídicas, o que justificaria a sua autonomia científica e conceitual202. Essa posição é perfilhada por Enno Becker e Albert Hensel203, na Alemanha; Louis Trotabas204, na França; Benvenuto Griziotti205 e os adeptos da Escola de Pavia, na Itália; e, no Brasil, por Rubens Gomes de Sousa206 e Amilcar de Araújo Falcão207.

200

BECKER, Alfredo, op. cit., p. 129. 201

Na lição de Albert Hensel, “cada conceito interpretado em um determinado ramo do direito deve em primeiro lugar cumprir certas funções em seu próprio ramo. Parece sempre errado considerar que a maior parte dos conceitos de direito tem um só significado para todos os ramos da vida jurídica”. No original: “cada concepto interpretado en uma determinada rama del derecho debe en primer lugar cumplir ciertas funciones em su propia rama. Parece siempre más errado considerar que la mayor parte de los conceptos del derecho tienen um solo significado para todas las ramas de la vida jurídica.” HENSEL, Albert. Derecho Tributário. Tradução de Leandro Stock y Francesco M. B. Cejas. Rosario: Nova Tesis, 2004. p. 133.

202

No entendimento de Rubens Gomes de Sousa, “o direito tributário, para atingir suas finalidades, elabora conceitos e institutos jurídicos específicos que lhe são próprios, porque não interessam às finalidades de outros ramos do direito”. SOUSA, op. cit., p. 59.

203 HENSEL, op. cit. 204

TROTABAS, Louis. Ensaio sôbre o Direito Fiscal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 26, p. 34-59, 1951.

205 GRIZIOTTI, Benvenuto. Principios de ciencia de las finanzas. Tradução de Dino Jarach. Buenos Aires: Depalma, 1950.

206

SOUSA, op. cit.

A segunda proposta é a tese da primazia do Direito Privado, a qual, fundada na unidade e indivisibilidade do ordenamento jurídico, preconiza que os conceitos de Direito Privado empregados pela legislação tributária devem ser interpretados tal como estão estruturados no ramo jurídico de origem. Em uma vertente extremada, geralmente associada ao doutrinador francês François Geny208, o legislador somente poderia selecionar como hipótese de incidência os fatos, atos e negócios jurídicos disciplinados pelo Direito Privado, sendo-lhe vedado modificar os conceitos que apresentam, no ramo de onde provém, sob a alegação de autonomia. Daí se dizer que o Direito Tributário é um direito de sobreposição209. Além de Geny, endossam essa segunda corrente A. D. Giannini210, na Itália; e a maioria da doutrina brasileira.

O debate entre essas duas doutrinas foi acompanhado no Brasil, em razão da publicação dos artigos de François Geny e Louis Trotabas na Revista de Direito Administrativo211. Na verdade, Geny não defendia uma absoluta autonomia dos ramos jurídicos, que conduziria à desordem e à anarquia, mas apenas propunha o reconhecimento de um particularismo do Direito Fiscal. Para esse autor212, o direito fiscal deveria respeitar e aplicar docilmente os conceitos de Direito Privado, todas as vezes que a lei tributária os invocassem, sem que houvesse, “nem no seu texto, nem no seu espírito, coisa alguma que a êles imponha uma deformação ou desvio”.

Explica ainda Geny213 que a concepção, segundo a qual o aplicador estaria autorizado a investigar o sentido dos conceitos de Direito Privado, remonta à doutrina vigente na antiga monarquia, em que o Príncipe conservaria o poder de julgar matérias relativas à essência da monarquia ou dela derivada, que seria o caso dos impostos.

208 GENY, François. O particularismo do Direito Discal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 20, p. 6-31, 1950.

209

No sentido de que o Direito Tributário é um direito de sobreposição, embora sem sustentar a posição extremada, até porque não encontraria amparo no ordenamento jurídico brasileiro: ALBERTO XAVIER...; COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004; SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo Velloso da. Direito Tributário e análise econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 242; OLIVEIRA, Ricardo Mariz de; MATOS, Gustavo Martini de; BOZZA, Fábio Piovesan. Interpretação e integração da lei tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito (Coord.). Interpretação e integração da lei tributária. São Paulo/Fortaleza: Dialética/ICET, 2010, p, 382. Na doutrina estrangeira: DOURADO, Ana Paula. Direito Fiscal: Lições. Coimbra: Almedina, 2016, p. 22. 210 GIANNINI, A. D. Instituzione di Diritto Tributario. 9. ed. Milano: Giuffrè, 1965.

211 Segundo Rubens Gomes de Sousa, o debate entre Geny e Trotabas ocorreu originalmente na doutrina francesa entre 1928-1930 (SOUSA, op. cit., p. 56).

212

GENY, ibid., p. 24. 213 GENY, ibid., p. 25.

Como exposto, a unidade do ordenamento jurídico implica o reconhecimento de que os denominados conceitos de Direito Privado são na verdade conceitos de todo o Direito, aplicáveis onde couberem, não constituindo domínio de um ramo jurídico específico. Assim, sempre que a lei tributária empregar um conceito de outro ramo estará fazendo remissão ou reenvio ao sentido adotado no ramo de origem.

Não obstante, adverte Humberto Ávila214 que “a unidade do ordenamento jurídico não significa necessariamente uma unidade conceitual”, razão pela qual é possível ao Direito formular diversos conceitos, referidos por um mesmo, com extensão limitada a determinado ramo jurídico. Em outras palavras, nada impede que existam diversos conceitos para o termo

capacidade, tal qual capacidade civil, capacidade tributária, capacidade eleitoral, capacidade processual, capacidade postulatória, etc. O termo domicílio também pode

apresentar conceitos variados nos âmbitos civil, tributário e eleitoral. A redefinição dos conceitos de Direito Privado constitui, na verdade, a criação de um novo conceito jurídico215.

Todavia, da mesma forma que o conceito de Direito Privado foi criado por lei própria, o novo conceito de Direito Tributário também depende do trabalho legiferante. Não seria o Direito Tributário o único ramo jurídico cujos conceitos brotariam sem nenhuma criação legislativa. Na ausência de conceito específico formatado pelo legislador tributário, entende- se que o Direito Tributário recepcionou o conceito de Direito Privado.

Essa solução encontra-se consubstanciada no art. 109, segundo o qual os princípios gerais do Direito Privado devem ser usados para buscar o sentido dos institutos, conceitos e formas jurídico-privadas, mas não serão aceitos para interpretar os seus efeitos tributários, pois tais efeitos serão definidos pela lei tributária.

4.3 CONCEITOS DE DIREITO PRIVADO E AS NORMAS DE COMPETÊNCIA