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2 A FUNÇÃO DAS CATEGORIAS NA APLICAÇÃO DO DIREITO

2.4 OS CONCEITOS

2.4.4 O problema da ambiguidade dos conceitos

A ambiguidade é a qualidade de alguns termos de possuir mais de um significado. Não constitui um problema próprio das categorias, mas sim dos termos. Enquanto o problema da vagueza é definir em qual conceito ou categoria pode ser classificado um determinado ente; na ambiguidade, o problema é definir a qual conceito ou categoria refere-se um determinado termo. Na vagueza, o problema é de ordem lógica ou psicológica; na ambiguidade, o problema é de ordem linguística.

Alguns estudiosos costumam diferençar ambiguidade e polissemia. A ambiguidade designaria toda situação em que dois ou mais sentidos são possíveis, gerando dúvida, como a

73 As características da generalidade e abstração das leis ou normas jurídicas não são aceitas pacificamente pela doutrina. Para Ivan Lira de Carvalho, casos como a isenção tributária, em que a exclusão do crédito depende de lei que especifique as condições, os requisitos, os tributos e o prazo de duração (CTN, art. 176), demonstram a que a generalidade não constitui um atributo comum a todas as normas jurídicas, pois o que é genérico não pode ser específico (CARVALHO, Ivan Lira de. A interpretação da norma jurídica (constitucional e infraconstitucional. Revista da AJURIS, n. 58, p. 306-322, jul. 1993. p. 310.) Arnaldo Vasconcelos considera a generalidade e a abstração como pseudocaracterísticas das normas jurídicas, que outrora encontraram justificativa em uma ideologia liberal. VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 139-145.

estrutura de uma frase. A sentença o guarda prendeu o investigado na sua casa enseja dúvida quanto ao local em que o ladrão foi preso. A polissemia seria uma espécie de ambiguidade, caracterizada pela existência de diversos significados expressados por um mesmo termo74. Nesse sentido, vale ressaltar que, mesmo ciente dessa distinção, continuar-se-á empregando o termo ambiguidade por ser mais usual na literatura jurídica.

Existe ambiguidade porque um só termo pode se referir a dois ou mais conceitos distintos. Pode-se ilustrar da seguinte forma: os conceitos C1 e C2 são designados por um

mesmo termo T. Para citar só alguns casos, o termo vela pode significar uma peça de cera com um pavio utilizada para iluminar, ou um tecido utilizado em embarcações; o termo

manga pode se referir a uma fruta ou a uma parte da camisa; o termo rádio pode designar um

aparelho de comunicação, um elemento químico ou um osso do antebraço.

Genaro R. Carrió75 oferece explicação idêntica para o fenômeno da ambiguidade, mas exemplifica com o problema dos jogos de Wittgenstein. Contudo, na verdade, a incerteza que envolve o sentido de jogos é causada por conta da vagueza do conceito, isto é, por não existir limites claros demarcando onde termina esse conceito. Haveria um problema de ambiguidade se o termo jogos se referisse a diversos conceitos distintos, e o desacordo recaísse sobre qual deles seria o melhor para um determinado uso da palavra.

É importante frisar que, em cada uso de um determinado termo haverá apenas um único conceito válido. O intérprete deve definir qual dos conceitos codificados pelo termo utilizado é o adequado para o caso. A decisão por um ou outro conceito levará a resultados diferentes, pois, do contrário, não se estaria diante de conceitos distintos, mas do mesmo conceito. O termo ambíguo pode ser trocado pela expressão verbal de cada conceito possível a fim de analisar qual se mostra mais adequado. Ou seja, uma proposição Se A, então B, em que

A seja um termo ambíguo com dois conceitos possíveis (C1 e C2), pode, para fins de análise

do sentido correto, ser desdobrada nas seguintes proposições: Se C1, então B e Se C2, então B.

Os conceitos C1, e C2, não se confundem. Como demonstramos, os conceitos são

seres, e, como todos os demais, submetem-se ao princípio de não-contradição. Para Aristóteles, esse primeiro princípio do ser constitui verdadeiro axioma válido para todos os

74 Acrescenta Barbara Lewandowska-Tomaszczyk que o termo polissemia foi pela primeira vez introduzido na semântica do século XIX por Bréal, em seu Essai du sémantique, de 1897. LEWANDOWSKA- TOMASZCZYK, Barbara. Polysemy, prototypes, and radial categories. In: GEERAERTS, Dirk; CUYCKENS, Hubert (Ed.). Cognitive Lingustitcs. New York: Oxford University Press, 2007. p. 139. 75 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre Derecho y lenguaje. 5. ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2011. p. 29-30.

seres, “porque eles são próprios do ser enquanto ser, e todo gênero de realidade é ser”76. Dentre as várias possibilidades, pode-se expor o princípio da seguinte forma: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e no mesmo sentido ou uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Em consequência, um termo T não pode significar C1 e C2 ao mesmo tempo e no mesmo sentido, e C1 C2 C3 Cn. É dizer,

os conceitos não são intercambiáveis ou fungíveis, quando forem utilizados no mesmo sentido.

No direito, há diversos exemplos de termos jurídicos que possuem mais de um conceito. O termo capacidade assume diferentes sentidos no Direito Civil, no Direito Tributário, no Direito Eleitoral, no Direito Processual etc. Poderia se dizer que, nesse caso, sequer haveria ambiguidade, tendo em vista que o termo geralmente vem acompanhado por outro termo, fazendo com que se refira a apenas um único conceito. Assim, tem-se a

capacidade civil, a capacidade tributária ativa, capacidade tributária passiva, capacidade eleitoral ativa, capacidade eleitoral passiva, capacidade processual etc.

Ocorre que nem sempre o termo jurídico vem acompanhado por outro termo diferenciador. Por exemplo, o termo sanção pode designar tanto a consequência jurídica pelo descumprimento de uma norma, quanto o ato dentro do processo legislativo de atribuição do Chefe do Poder Executivo, e geralmente é grafado de forma isolada. Assim, o termo sanção possui, para fins de interpretação e aplicação do direito, dois conceitos: C1 e C2, e a

interpretação e aplicação de um dispositivo normativo que tenha empregado tal termo dependerá da definição de qual conceito é o adequado ao caso.

Ademais, os atos normativos não se limitam a empregar terminologias exclusivas do direito ou essencialmente jurídicas. Não raras vezes, o legislador utiliza termos próprios de outros ramos do saber, como a economia (por exemplo, concentração econômica, dumping,

subsídio, mencionados na Lei Antitruste) e a contabilidade (por exemplo, lucro real, lucro

76 ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. p. 141. (Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale). No entanto, Tomás Alvira, Luis Clavel, e Tomás Melendo, pontuam que “Apesar de sua evidência, o princípio de não-contradição foi negado na Antiguidade por diversas escolas (Heráclito, sofistas, céticos) e na época moderna de modo mais radical e consciente, por certas formas de filosofia dialética (marxismo) e de relativismo historicista”. (ALVIRA, Tomás; CLAVEL, Luis; MELENDO, Tomás. Metafísica. Tradução de Esteve Jaulent. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2014. p. 58). Uma visão cética, quanto ao princípio da não-contradição, pode ser vista em: ŁUKASIEWICZ, Jan. On the principle of contradiction in Aristotle. Tradução de Vernon Wedin. The Review of Metaphysics, v. 24, nº 3, mar. 1971, p. 485-509. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/20125812>. Acesso em: 07 abr. 2016. Uma réplica pode ser conferida em: STORCK, A. C. Não contradição ou terceiro excluído? Avicena e o primeiro princípio da metafísica. Dois Pontos, UFPR, v. 7, p. 171-205, 2010.

líquido, lucro operacional, referidos na legislação de imposto de renda), ou mesmo presentes

no senso comum (por exemplo, propriedade, família etc.). A questão consiste em saber, havendo uma divergência entre o conceito jurídico e o conceito técnico-científico não-jurídico ou comum, qual conceito deverá prevalecer para fins de interpretação e aplicação do direito. Esse problema, no que toca ao objeto do presente estudo, será analisado no último capítulo.