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2 A FUNÇÃO DAS CATEGORIAS NA APLICAÇÃO DO DIREITO

2.4 OS CONCEITOS

2.4.3 O problema da vagueza dos conceitos

Alguns autores relacionam o problema da vagueza à estrutura prototípica dos conceitos61. Para eles, a existência da vagueza é determinada pela existência de fronteiras indefinidas entre os conceitos. Esses possuem um núcleo significativo, onde estão centrados os protótipos, e uma periferia unida a outros conceitos por limites difusos. Quanto mais próximo um ente se situe do núcleo significativo do conceito, vale dizer, quanto mais propriedades compartilhe com o protótipo, quanto maior sua tipicidade, mais fácil e intuitiva será a classificação do exemplar. Em contraste, quanto mais próximo da margem estiver um exemplar, maior será o dissenso acerca da sua correta classificação, justamente porque os limites são opacos, não se sabendo ao certo onde termina um conceito e começa outro.

Essa ideia não é inteiramente correta. É admissível a existência de conceitos que possuam membros mais representativos, mas com limites bem determinados, como é o caso do conceito de aves, peixes e mamíferos. Nas categorias relacionadas a esses conceitos, não subsistirão dúvidas sobre a classificação dos seus integrantes. Consequentemente, não há que se falar em vagueza.

Em verdade, a vagueza decorre do fato de os conceitos nem sempre terem limites precisamente definidos. A vagueza é, pois, uma característica dos conceitos e não das coisas. Como observou Bertrand Russell62, “as coisas são o que são, e isto é tudo. Nada é mais ou menos do que é, nada possui até certo ponto as propriedades que possui”. Em seguida, observa o filósofo inglês que haverá tons de cor que duvidaremos em chamar ou não de

61 Nesse sentido, HAMPTON, James A. Typicality, Graded Membership and Vagueness. Cognitive Science, 31, 355-383, 2007.

62

RUSSELL, Bertrand. Vaguedad. In: BUNGE, Mario. Antología semántica. Traducción de E. Arias y L. Fornasari. Buenos Aires: Nueva Visión, p. 14-24, 1960. p. 15-16.

vermelho, não porque ignoremos o significado da palavra vermelho, mas porque o campo de aplicação da palavra é duvidoso, já que as cores constituem um contínuo.

O próprio James Hampton63 afirma que “[u]m conceito vago é um conceito relacionado a uma categoria sem limites claramente definidos”, sendo que a “[v]agueza geralmente se refere à questão de saber se ou não, e em que grau, um exemplo se insere dentro de uma categoria conceitual”. A vagueza dos conceitos, então, está relacionada com a difusidade das fronteiras de alguns conceitos, e não com a tipicidade, pois, como bem colocado por Daniel Osherson e Edward Smith, tipicidade não se confunde com vagueza64.

Nem todo conceito é vago, mas apenas aqueles cuja linha divisória é imprecisa. O conceito de número inteiro ímpar não é vago, pois, diante de qualquer número inteiro apresentado, será possível, sem sombra de dúvida, inclui-lo ou exclui-lo da categoria dos números inteiros ímpares. O mesmo ocorre com a categoria das pessoas que medem mais de

1,80 metros, em que só existirá dúvida quanto à inclusão de uma pessoa ou não nessa

categoria se o sujeito classificador não dispuser de meios para medir a altura da pessoa a ser classificada. Todavia, nesse caso, não se pode reputar o conceito de vago, já que a dúvida sobre a correta classificação decorre de uma falta de informação do sujeito classificador.

Diferente é o caso do conceito de pessoa alta, haja vista que inexiste um marco divisório estabelecido que institua quando uma pessoa passa a ser considerada alta. Não se definindo uma altura exata, expressa em unidade de medida de comprimento para determinar a partir de que tamanho alguém passa a ser reputado como alto; uma medida exata, expressa em unidade de medida de temperatura para definir com quanto calor algo passa a ser considerado quente; ou uma idade quantificada em unidade de medida de tempo para esclarecer quando alguém passa a ser considerado adulto, idoso, adolescente etc., tais conceitos permanecerão vagos e sempre haverá espaço para divergências acerca da adequada categorização de itens marginais.

James Hampton assinala que “existem casos em que é difícil achar a categoria correta a inserir um objeto, não em razão da falta de conhecimento, mas por causa da falta de uma regra clara de categorização que se aplique a todo caso”65. Consequentemente, a definição

63 Tradução nossa, do original: “A vague concept is a concept that picks out a category with no clearly defined boundary.” E “Vagueness generally relates to the question of whether or not, and to what degree an instance falls within a conceptual category.” HAMPTON, James A. Typicality, Graded Membership and Vagueness.

Cognitive Science, 31, 355-383, 2007. p. 355; 357.

64 OSHERSON, op. cit., p. 189. 65

Tradução nossa, do original: “there exist cases whose membership in a category is uncertain, not because of lack of knowledge, but because of the lack of a clear rule for categorization that applies to every case.”

estipulativa tem o condão de eliminar a vagueza ou, pelo menos, reduzi-la a níveis ínfimos, permitindo a subsistência de dúvidas apenas em casos muito excepcionais.

No mesmo sentido, Wittgenstein66 acrescenta:

Mas isto não é ignorância. Não conhecemos os limites, porque nenhum está traçado. Como disse, podemos – para uma finalidade particular – traçar um limite. É somente a partir daí que tornamos o conceito útil? De forma alguma! A não ser para esta finalidade particular.

Para ilustrar, tome-se o conceito de imputabilidade, de extremada importância para a teoria do crime, o qual pode ser entendido como a capacidade de culpabilidade, ou a aptidão para ser culpável67. Se o Código Penal não tivesse estabelecido uma definição precisa do conceito, haveria uma indefinição imensa quanto à linha limítrofe entre a imputabilidade e a inimputabilidade. Por certo, uma criança de cinco anos de idade seria considerada inimputável. Já um adulto de trinta anos certamente seria considerado imputável, se não apresentasse problemas que o impedisse de entender o caráter ilícito da conduta ou de determinar-se conforme esse entendimento. Mas o que dizer de um jovem de dezesseis ou dezessete anos? Poderia ou não se sujeitar à aplicação da lei penal? O art. 27 do Código Penal, ao definir que os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, construiu uma fronteira nítida entre a imputabilidade e a inimputabilidade, eliminando quase por completo a vagueza do conceito.

Diz-se que a vagueza foi eliminada quase por completo, porque em situações excepcionalíssimas a própria definição poderá conter resíduos de vagueza, ensejando nova dúvida. Bertrand Russell68 anota que mesmo palavras quantitativas como metro ou segundo contêm algum grau de imprecisão. Explica o filósofo inglês que o metro define-se como a distância entre duas marcas sobre certa haste existente em Paris, e a certa temperatura. Considerando que as marcas sobre a haste tem um tamanho finito, e tendo em vista que a temperatura de toda a haste nunca é uniforme, conclui-se que o metro não é um conceito completamente preciso. Do mesmo modo, o segundo define-se em relação com rotação da Terra, mas como as partes das superfícies da Terra não gastam o mesmo tempo ao girar, não

HAMPTON, J. A. Concepts as Prototypes. In Ross, B. H. (Ed). The Psychology of Learning and Motivation: Advances in Research and Theory, 46, 2006, p. 79-113. Disponível em: <http://www.staff.city.ac.uk/hampton/PDF%20files/Concepts%20as%20prototypes%202006.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2016.

66 WITTGENSTEIN, op. cit., p. 53.

67 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1. p. 411.

há inteira precisão do conceito.

No âmbito jurídico, basta imaginar a situação em que uma pessoa tenha cometido um crime no dia em que completou dezoito anos, mas em horário anterior ao do seu nascimento. Como o art. 27 do Código Penal não esclarece se a idade de dezoito anos é alcançada no primeiro átimo da data do aniversário ou somente no exato horário do nascimento, ainda remanesce uma pequena dúvida envolvendo o conceito. A lei penal definiu o que é a imputabilidade, mas não estipulou em que momento se completa a maioridade penal. Essa divergência já se encontra, há muito, solucionada pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendeu desconsiderar o horário do nascimento para fins de fixação da maioridade penal69, o que não impede de surgir outra situação extraordinária capaz de suscitar novo questionamento. De toda forma, uma definição com contornos claros, especialmente se empregar alguma unidade de medida, torna um conceito preciso para a quase totalidade dos casos.

Ensina Hans Kelsen que a aplicação do direito pode ser entendida como a criação de uma norma inferior com fundamento numa norma superior, ou na execução de um ato prescrito por uma norma70. Em grande parte, a aplicação do direito consiste na estipulação de definições de conceitos jurídicos imprecisos, a fim de orientar o aplicador na categorização, ou na categorização dos fatos jurídicos e suas circunstâncias discricionariamente pelo aplicador do direito. Afinal, que são os arts. 3º, 4º e 5º do Código Civil senão a definição dos limites entre as categorias da incapacidade absoluta, incapacidade relativa e a capacidade plena? Não fosse esse conjunto de dispositivos legais, a zona fronteiriça entre essas categorias jurídicas seria objeto de infindáveis desacordos. O mesmo pode-se dizer do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 1º do Estatuto do Idoso, só para citar alguns exemplos.

Os conceitos vagos podem ser definidos pelo Poder Legislativo, por meio da produção de atos normativos da sua competência (art. 59, da Constituição da República), em especial a lei, instrumento apto a criar novos direitos e obrigações, inovando o ordenamento jurídico. Vale lembrar a existência das chamadas leis interpretativas, produzidas com o objetivo de aclarar conceitos imprecisos empregados em lei anteriormente editada. Portanto, a definição de conceitos pode ser realizada mediante a própria lei que o colocou no ordenamento jurídico ou por lei posterior.

69 REsp 16.849/SP. 70

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 261.

O Poder Executivo também define conceitos imprecisos, por meio da edição de atos administrativos normativos, em que especificará o alcance dos conceitos vagos, a fim de permitir a aplicação da lei. De acordo com o art. 84, IV, da Constituição da República, o Chefe do Poder Executivo poderá expedir decretos normativos para a fiel execução da lei. Sempre que a dificuldade ou o impedimento à execução da lei decorrer da vagueza de conceitos legais, o decreto normativo irá defini-los, eliminando a imprecisão que paire sobre eles. O poder para definir conceitos vagos encontra limite na inovação do ordenamento jurídico, haja vista que o decreto normativo não pode instituir novos direitos ou novas obrigações.71

Não havendo delimitação do conceito vago pelo Poder Legislativo ou Executivo, o Judiciário encarregar-se-á de categorizar as situações que lhe forem apresentadas. A categorização é um processo indispensável para a solução de conflitos de interesse. Como o

non liquet é vedado pelo ordenamento jurídico (art. 140 do Código de Processo Civil), se os

conceitos não estiverem bem definidos por lei ou ato normativo, o juiz estará autorizado a enquadrar a situação em uma categoria e solucionar a lide. Para exemplificar, considerem-se os conceitos de boa-fé (art. 422 do Código Civil) e questões relevantes (art. 1.035, § 1º do Código de Processo Civil), os quais, não sendo definidos por lei ou ato normativo, deverão ser determinados pelo órgão jurisdicional por ocasião do julgamento.

Tal como ocorre em relação ao Poder Judiciário, em certas situações, a Administração Pública deparar-se-á com um conceito vago e terá de categorizar uma situação antes de editar um ato administrativo de execução. Basta imaginar, por exemplo, o caso do Presidente da República ter que definir se uma conduta específica configura ou não “incontinência pública” para decidir acerca da aplicabilidade da pena demissão de um servidor público federal, com fundamento no art. 132, V, da Lei nº 8.112 de 11 de dezembro de 199072.

Vale lembrar que, por vezes, o Poder Judiciário também poderá definir os contornos dos conceitos vagos com eficácia erga omnes. Isso ocorrerá sempre que, com o objetivo de delimitar um conceito impreciso, expedir súmulas vinculantes, exercer o controle abstrato de constitucionalidade das leis ou proferir outras decisões que a lei atribuir observância

71 Nesse sentido, ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 146- 150. Em sentido contrário, defendendo a possibilidade de edição de decretos normativos autônomos, ressalvada a primazia da lei e excetuados os casos de reserva legal: BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 159-174

72 BRASIL. Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:

obrigatória pelas instâncias inferiores.

Como, via de regra, cada órgão jurisdicional pode tomar decisões independentemente da posição dos demais, e eficazes apenas para o caso sob julgamento, a demarcação de limites dos conceitos vagos pelo Poder Judiciário pode, eventualmente, gerar uma multiplicidade de definições casuísticas, atentando contra a estabilidade jurídica. Por outro lado, as características da generalidade e abstração das leis ensejam a criação de definições uniformes, aplicáveis a todos os casos73. A definição judicial dos conceitos vagos tem a vantagem de permitir uma maior atualização e conformação às mudanças fáticas, e a desvantagem de poder fomentar a insegurança jurídica. Em contraste, a definição legal tem a vantagem de valorizar a segurança jurídica, mas compromete o dinamismo, dada a grande formalidade do processo legislativo.

Dessa sorte, sempre que o direito preferir prestigiar em maior medida a segurança jurídica optará por instituir definições genéricas e abstratas, especialmente mediante lei. Isso se verifica, em primazia, nos ramos jurídicos marcados pelo reforço da segurança jurídica, como o Direito Penal e o Direito Tributário, embora se presencie conceitos vagos nesses âmbitos.