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Capítulo 3. Norma, normalização, disciplina

3.1. A questão do paradigma

Afirmou Thomas Kuhn (1998, p. 29) que uma ciência normal é uma ciência baseada nas realizações da ciência que passou. São realizações que, ao serem relatadas em livros didáticos e manuais científicos, tornaram-se exemplares e, por terem sido sem precedentes e bem sucedidas, acabaram se tornando o modus

operandi das ciências modernas. Ele adota o conceito de paradigma para definir um

conjunto de exemplos na pesquisa científica, que envolvem lei, teoria, aplicação e instrumentalização, que passam a ser adotados como modelos para o pesquisador.

Na ciência normal, todo estudante aspirante a pesquisador precisa conhecer os paradigmas da ciência se quiser fazer parte dessa comunidade. São as regras e padrões, como modelos concretos, que farão com que esse estudante assuma ao mesmo tempo um comprometimento com a ciência com a qual se quer envolver, e se alinhe ao consenso presente sobre a viabilidade e permanência da prática

74 científica. Kuhn (1998, p. 31) fala em gênese e continuação de uma tradição de pesquisa.

Um paradigma, de acordo com Kuhn, pode dar lugar a um novo paradigma quando um cientista, ou um grupo deles, produz uma nova técnica, síntese, teoria ou prática científica, fazendo com que o número de praticantes das perspectivas mais antigas se torne cada vez menor, e esse antigo paradigma se torne um novo passado. Pelo fato de um novo paradigma dar uma definição mais recente, e exigir uma rigidez maior aos estudos, ou os pesquisadores mais antigos se adequam a ele, ou mantenham seu trabalho isolado. Ao usar como exemplo o paradigma elétrico de Benjamim Franklin, Kuhn afirma que a ciência se tornou eficiente – naquela perspectiva – no momento em que os pesquisadores unificaram e delimitaram suas preocupações, selecionando alguns fenômenos, criando instrumentos e sistemáticas específicas, excluindo ou deixando em um segundo plano qualquer outro fenômeno ou prática, aumentando a eficiência dos resultados (KUHN, 1998, p. 39).

O paradigma, para a ciência normal, é uma promessa de sucesso, que se concretiza cada vez que uma pessoa é bem sucedida, ou não. Ele se mantém por ter tido muito mais êxito que os outros competidores, e os cientistas, de acordo com Kuhn, não são mais que os operadores de limpeza dessa ciência hegemônica, já que os cientistas não estão preocupados em criar novos paradigmas, devido justamente à confiabilidade no paradigma existente.

Por sua vez, afirma Stengers, que paradigma não significa necessariamente um dogmatismo, ou seja, uma norma sistematizada que anula a lucidez e o espírito crítico (STENGERS, 2002, p. 63). Ela explica que Kuhn, ao sugerir a noção de paradigma, sugere mais uma maneira de fazer ciência do que especificamente uma visão de mundo:

O que se transmite não é uma visão de mundo, mas uma maneira de fazer, uma maneira não somente de avaliar os fenômenos de lhes conferir um significado teórico, mas também de intervir, de submetê-los a situações inéditas, de explorar a menor das consequências ou o menor efeito implicado pelo paradigma para criar uma nova situação experimental (STENGERS, 2002, p. 64).

75 Para Stengers, quando Kuhn sugere o conceito de quebra-cabeças20, ele o faz considerando que um cientista só o é como tal após ser avaliado e aprovado em um teste que é justamente resolver um problema utilizando o paradigma científico em evidência naquele momento. A competência de um cientista não é submetida à prova se ele não fizer os testes necessários para resolver alguma questão científica, sob os determinados critérios que só um paradigma é capaz de estabelecer. Portanto, não é o paradigma que é avaliado sob essa perspectiva, pois ele está amplamente aceito e instituído entre os cientistas como forma, justamente, de escolher quais são os mais aptos a entrar em um ramo científico ou grupo de pesquisa.

Diferente do que as perspectivas reducionistas de paradigma estabelecem como um simples reconhecimento dos fenômenos atrelados a um modelo unificado e autônomo de prática de pesquisa, o que motiva um cientista, para Stengers, é justamente:

[...] uma paisagem acidentada, rica, de diferenças sutis a inventar, na qual o termo “reconhecer” nos remete não à constatação de uma semelhança, mas ao desafio de atualizá- la. (STENGERS, 2002, p. 64)

Esse trabalho de atualização é necessário pelo fato de o paradigma ser constantemente mudado. Conforme as revoluções científicas se multiplicam e instalam novos paradigmas, novos desafios são criados e, mais do que um novo paradigma impregnar os fatos científicos de teorias, o que ele permite e promete é a criação de novos fatos científicos.

Quando Stengers propõe fazer um ajuste na noção de paradigma de Kuhn, ela o articula a noção de acontecimento. Ao invés de entender a história das ciências como uma sucessão de revoluções contingentes – ou seja, como processos

20 A noção de solução de quebra-cabeças de Kuhn, publicada no Brasil como posfácio de Estruturas das Revoluções Científicas (KHUN, 1998), expõe um paradigma que se pauta mais pelos modelos e exemplos comumente aceitos nos meios científicos, do que necessariamente pelas regras básicas de resolução de um problema científico. Ao adotar os modelos bem sucedidos na história da ciência para tentar resolver uma questão até então não solucionada e não necessariamente as regras, o cientista pode estar promovendo mudanças de certa forma tão radicais que são capazes de promover novos paradigmas, mantendo o que Kuhn considera como o progresso das ciências a partir desses processos revolucionários.

76 que ocorrem como um prolongamento da evolução monótona da ciência, abalada por momentos revolucionários – ela reivindica pensar o surgimento das ciências modernas como uma invenção:

Para evitar ratificar aquilo que é, éo conjunto das ciências modernas, as que são e as que poderiam ser, que me cabe tentar interpretar, ou seja, também prolongar, inventar, “recomeçar com outros dados”. Por isso me é necessário, a esse respeito, inventar uma nova forma de espanto, um ponto de interrogação que não me condene a privilegiair as ciências experimentais e a identifica um “motivo”, no duplo sentido, musical e desejante, que singularizaria “a ciência”, a tornaria capaz de vir a ser certamente não objetivo de definição, mas matéria da história. (STENGERS, 2002, p.90)

Quando Stengers recorre ao acontecimento, ela o faz acompanhando a noção que Deleuze e Guattari deram ao conceito como um acontecimento. Não como essência, coisa ou ideia, mas como encontro incorpóreo, como ponto de encontro, intersecção, coordenada como não previamente definida nos mapas decalcados, mas nas cartografias a serem traçadas sobre os espaços lisos:

Não tem coordenadas espaço-temporais, mas apenas ordenadas intensivas. Não tem a energia, mas somente as intensidades, é anergético (a energia não é a intensidade, mas a maneira como esta se desenrola e se anula num estado de coisas extensivo). O conceito diz o acontecimento, não a essência ou a coisa. É um Acontecimento puro, uma hecceidade, uma entidade: o acontecimento de Outrem, ou o acontecimento do rosto (quando o rosto por sua vez é tomado como conceito). Ou o pássaro como acontecimento. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 33)

Usando, portanto, essa perspectiva, Stengers faz o ajuste na noção de paradigma de Kuhn recorrendo ao “caso Galileu”. Considerado como fundador da ciência moderna e ter estabelecido uma nova forma de verdade, o caso Galileu precisa, de acordo com a pensadora belga, ser ressignificado, reinterpretado e recomeçado para ser compreendido como um fato que singularize a ciência, e, consequentemente, possibilite outras compreensões acerca do debate sobre “o que é científico?”.

77 Discussão que estabelece uma relação de poder com a igreja, que a partir disso perde força e passa a aceitar suas respostas, inclinando-se também a responder se algo é científico ou não. Ciência que prova se uma santa realmente chora sangue ou não, ou que dará incontestável consistência à beatificação ou santificação de um de seus fiéis seguidores.

Mas, não é contra o poder romano/cristão que “surge” a ciência em Galileu, mas é a partir da questão “o que é a ciência” que ocorre o debate, e a relação de forças se torna evidenciada. A ciência surge, para Stengers, como um acontecimento singular, e que precisa dar as respostas para a definição ou não do que é científico. Esse é o motivo pelo qual há o grande esforço das epistemologias em estabelecer as normatizações nas quais essas ciências se definiriam, sobreviveriam e poderiam combater a ficção (STENGERS, 2002, p. 98).

Portanto, longe de suscitar um debate reducionista e estritamente dicotômico entre a ciência verdadeira e autônoma, e a ideologia de um poder que se utiliza da ciência para legitimar ainda mais sua hegemonia, Stengers sugere considerar como “uma operação política” na ciência a “totalidade dos discursos metodológicos graças aos quais os cientistas eliminam os rastros do acontecimento que lhes credita autoridade” (STENGERS, 2002, p. 130), ou seja, destruir o acaso, ou as indefiníveis conexões, fenômenos e discursos que possam destituir um fenômeno científico de sua validade, a qual, muitas vezes, pode ressoar como um discurso metafísico e/ou mesmo – e é um conceito que vamos dar preferência daqui em diante – um discurso de plenitude (ALVES, 2010), ou seja, como uma prática discursiva mais globalizante e totalizante que dê conta de abrigar séries de multiplicidades, conexões, pontos e encontros em um discurso de universalidade.

Essa abordagem que Stengers realiza em relação ao surgimento das ciências modernas é de crucial relevância para a discussão feita nessa tese não estar sendo realizada sob uma perspectiva de poder atrelada à filosofia política tradicionalista, na qual existe o constante embate entre o bem e o mal; seja na concepção dialética platônica, seja nos debates hobbesianos e lockeanos sobre o estado de natureza, seja ainda na perspectiva ideológica que está bastante presente em diversos trabalhos sobre a educação ambiental brasileira. Essas perspectivas acabam por compreender a ciência no estabelecimento de uma relação com o poder a partir de seu próprio esforço em subsistir sob o questionamento do que é ou não científico.

78 A filosofia política tradicional presente nos debates sobre o caráter da ciência se caracteriza justamente por diferenciar os atores qualificados e desqualificados, sendo esses últimos não tendo sido aceitos pelos poderes institucionalizados suas teorias e metodologias, ficando de fora, portanto, dos manuais científicos que tem sua popularização e circulação garantida nos espaços de aprendizado e desenvolvimento da ciência:

A hierarquia da paisagem dos conhecimentos científicos, o papel de modelo da conduta teórico-experimental, como também as estratégias de mobilização, que não cessam de selecionar o que se constitui na “boa” abordagem, o que se constitui na secundária “ainda não suplantada”, indicam que os desníveis de poder se estendem pelo terreno científico. Porém eles não são do âmbito exclusivo da ciência. Os desníveis também fazem rizoma. (STENGERS, 2002, p 153)

E é justamente onde os desníveis fazem rizoma que adiante farei uma abordagem sobre os outros espaços de construção do saber ecológico, que chamo de infernais, licantrópicos e ruidosos, não submetidos à normatização escolar a que foi submetidaa educação ambiental21. Mas a questão é que o esforço para a legitimação do discurso científico atravessa tanto a história da ciência quanto a epistemologia (MACHADO, 1979, p. 41), e no esforço de aperfeiçoar cada vez mais a verdade produzida na ciência – de modo a manter um modelo científico vigente ou mesmo existente – mais normativa essa ciência precisaria se tornar.

Essa normatividade do discurso presente na história das ciências – que de acordo com Machado (1979) é uma história epistemológica – sugere uma homogeneidade, uma univocidade de compreensão dos fenômenos científicos e das formas de comprovação dos resultados científicos. Um relativismo feyerabendiano, ou um perspectivismo nietzscheano impedem que a ciência, ao mesmo tempo, mantenha e se imponha como uma conduta.

Sem essa conduta, uma verdade científica não pode ser estabelecida universalmente, assim como a existência de órgãos que mantêm o poder governamental perde a legitimidade, já que boa parte de seu convencimento está na

21 O conceito de rizoma também será discutido na segunda parte dessa tese, já que o considero como o escopo teórico para contribuir com o entendimento daquilo que chamarei mais adiante de resistência ou contra-condutas em educação ambiental.

79 garantia de melhor eficiência na conduta da vida de um território. Portanto, quanto mais eficiência se exige do conhecimento científico, mais normalização é imposta. E quanto mais científico se torna o cotidiano mais normalizado ele precisa estar, tanto devido ao uso dos bens de consumo quanto na resolução de problemas sociais, econômicos, políticos e ambientais.

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