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Capítulo 2. Saber, poder, genealogias

2.2. Saber, ciência, ideologia, poder

O saber, de acordo com Foucault pode ser definido como um conjunto de elementos agregados regularmente em uma formação ou prática discursiva14. Apesar do saber ser indispensável à constituição de uma ciência, o saber não é a ciência, sendo que existem os saberes que são independentes das ciências, como é o caso do discurso do médico ou do enfermeiro como objetos da medicina (registro, decisão, interrogação), que não especificamente faça parte do campo epistemológico da ciência médica (FOUCAULT, 1995, p. 207).

Mas, para construir-se como ciência, um saber precisa pertencer a um grupo de conhecimentos e proposições que obedeçam as mesmas leis de construção, digam as mesmas coisas e tenham o mesmo sentido, senão, a exclusão tende a ser necessária (FOUCAULT, 1995, p. 207). As ciências podem ter o saber como fundo e pertencer a um campo do saber, mas não podem assimilar todas as ficções, reflexões, narrativas, regulamentações e decisões políticas (FOUCAULT, 1995, p. 208).

A ciência acaba por se destacar perante o saber justamente por ela ser influenciada pela ideologia, ou pelas táticas de dominação, como abordei a pouco, e como Foucault passa analisar nos trabalhos posteriores à Arqueologia do Saber, especialmente em A História da Sexualidade: A Vontade de Saber, e Vigiar e Punir. Mas na Arqueologia, a ideologia aparece como influenciadora da ciência, a partir do momento em que ela se sistematiza e se estrutura, buscando uma regularidade que necessita esconder, modificar e redistribuir o saber, dizendo o que é ou não é científico.

14 Sobre formações discursivas, Foucault sugere que: “No caso em que se puder descrever, entre um determinado número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, 1995, p.43)

66 Aqui é necessário abrir um parêntese e me debruçar um pouco em algumas questões que, aparentemente distantes do debate que Foucault estabelece, podem reforçar as perspectivas e metodologias com as quais decidi pautar essa tese.

A primeira delas é justamente sobre o caráter das ciências contemporâneas. Foucault afirma que as ciências, ao serem sistematizações de um conhecimento possível somente após o saber ter sido abarcado durante os exercícios de poder e práticas de dominação micropoliticamente institucionalizadas 15, nem por isso sugere que toda a ciência aplicada é um exercício de disciplina e/ou controle. Mas, talvez, seja sobre essa abordagem que Isabelle Stengers, em seu texto A Invenção das

Ciências Modernas (STENGERS, 2002), tenha criticado a ideia na qual as ciências

não sejam mais que um conhecimento reduzido ao calculável e ao controlável. Para evitar que da ciência se faça um debate somente pautado em uma determinada visão de ciência – ou seja, ou a ciência é autônoma, ou é submissa – Stengers recorre ao princípio de irredução de Bruno Latour16, ou seja, que o debate não possa ser reduzido a uma determinada perspectiva, e sim, que se faça um “recuo frente a essa pretensão de saber e julgar” (STENGERS, 2002, p. 27).

Ainda sobre a crítica acerca do reducionismo das ciências, Stengers afirma que:

Falar de ciência com um enfoque político, por exemplo, se transformaria em “a ciência não é mais do que uma política”, um projeto ou aposta é o poder, protegido por uma ideologia mentirosa, que consegue impor suas crenças particulares como verdades universais protestar, ao contrário, que a ciência transcende as divisões políticas seria implicitamente identificar a política com as correntes arbitrárias, tumultuosas, irracionais das controvérsias humanas que vêm lamber os pés da fortaleza científica, e, ocasionalmente, arrastar em direção a utilizações perversas, nefastas, irresponsáveis, elementos de saber que surgiram inocentes. (STENGERS, 2002, 27)

15 Como as práticas analisadas por Foucault em Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987). 16 Talvez, a melhor passagem de Latour que explicite o conceito de irredução seja aquele no qual afirma que somente uma visão de ciência ainda agrade aos “modernos”, mantendo as ciências separadas em suas trincheiras e quartéis- generais, de forma que:

“O buraco de ozônio sobre nossas, a lei moral em nossos corações o texto autônomo podem, em separado, interessar a nossos críticos. Mas, se uma gaveta fina houver interligado o céu, a indústria, os textos, as almas e a lei moral, isto permanecera inaudito, indevido, inusitado.” (LATOUR, 1994, p. 11).

67 Se, por um lado, na genealogia foucaultiana, trata-se justamente de evitar a noção da ideologia que impõe a verdade a partir da perspectiva na qual a política também é micro, e os poderes agem a partir das capilaridades, e não de um centro absoluto, do outro lado é necessário compreendermos que o poder está presente em toda a construção da ciência, e ela está sim atrelada ao poder a partir do momento em que as construções dos saberes são vinculadas diretamente aos exercícios dos poderes. A indignação que Stengers mostra, quando critica a ideia de ciência como um mero acordo de cientistas interessados em “normalização, interesse e rentabilidade” (STENGERS, 2002, p 22-23), é justificável a partir da política ideológica do Leviatã abordada por Foucault (1999, p. 40), mas não a partir da perspectiva genealógica. Ou pelo menos, a partir do ponto de partida no qual é compreendida a genealogia na esfera dessa tese.

No entanto, as preocupações de Stengers sobre uma pseudo-autonomia da ciência perante as questões políticas são extremamente pertinentes para as discussões que pretendo fazer, visto que, são numerosas as evidências nas quais não é somente a partir de verdades de uma ciência autônoma nas quais estão pautadas as sugestões e os objetivos da educação ambiental, mas de combates entre perspectivas econômicas distintas que utilizam verdades científicas, muitas vezes completamente divergentes, para poder legitimar suas práticas produtivas e lucrativas, as quais utilizam essas verdades como norteadoras de atividades “ambientais” que lhes valerão prêmios, certificados e a conquista de um mercado consumidor ávido por minimizar sua culpa nos impactos ambientais do planeta.

No trabalho que desenvolveu com o físico Ilya Prigogine, Stengers (PRIGOGINE; STENGERS, 1997) critica a primazia da ciência sobre as outras esferas humanas, como por exemplo, a cultura. O papel da ciência, para os dois, não pode ser mais aquele da ciência clássica do século XIX e do começo do século XX, ou seja, “desencantar o mundo” a partir de um sistema global de leis gerais, o qual é alheio e superior aos interesses particulares, econômicos, políticos e sociais, fazendo autônoma e soberana, a qual escolhe o humano como o objeto metafísico, trágico e abstrato:

O homem deve escolher entre a tentação, tranquilizante, mas irracional, de buscar na natureza a garantia de valores humanos, a manifestação de uma dependência essencial e a

68 fidelidade a uma racionalidade que o deixa só num mundo mudo e estúpido. (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 22) É a ciência que, ao desencantar o mundo, permite aos humanos revirá-lo de cabeça para baixo, mas sob um determinado método e cronograma – as “melancólicas” aplicações de leis gerais (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 22) – que permitem aos humanos controlar e dominar o mundo. Dominação que só é possível ao divinizar a ciência e negar a diversidade ou devir naturais (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 204). É contra essa onisciência da ciência que Stengers e Prigogine defendem o que eles chamam de A Nova Aliança. A velha aliança, na qual as ciências modernas se pautam, é baseada em princípios aristotélicos de entendimento de mundo a partir da causa final das coisas, sendo assim, a partir da natureza dessas próprias coisas, sendo possível buscar a “essência inteligível” (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 29). Por sua vez, além da inteligibilidade, foi necessário provar os fenômenos a partir das demonstrações práticas que poderiam comprovar que as verdades da natureza poderiam ser realmente reveladas:

A ciência newtoniana é uma ciência prática: uma de suas fontes é muito claramente o saber dos artesãos da Idade Média e dos construtores de máquinas; ao menos, em princípio, ela própria fornece os meios de agir no mundo de prever e modificar os cursos de certos processos, de conceber dispositivos próprios para utilizar e explorar certas forças e recursos materiais da natureza. (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 26).

A velha aliança está baseada no encontro da organização, sistematização e utilização do mundo – ou seja, a técnica – com a essência inteligível das coisas – a teoria. É moderar e ao mesmo tempo compreender o mundo (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 29). Seu sucesso ocorreu, provavelmente, graças aos cientistas modernos que criaram um projeto de ciência culturalmente aceitável, no qual, longe de ser ateísta e combater os mitos religiosos, fez com que o entendimento do mundo fosse a compreensão dos projetos divinos para o humano e o mundo. A ciência, ao tentar entender a natureza, era capaz de chegar próxima a Deus (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 37). Isso tornou possível aos teólogos e filósofos fazer ciência, desde que sob essas orientações, próximas à metafísica e transcendentalidade aristotélica.

69 Prigogine e Stengers, por sua vez, sugerem uma nova aliança da ciência pelo fato da ciência clássica estar presa a uma uniformidade objetiva que destrói a diversidade qualitativa e a singularidade, tornadas “simples consequências de uma lei geral” (PRIGOGINE e STENGERS, 1997, p. 39). Afirmam ainda que, principalmente os cientistas matemáticos, estão presos ao mito fundador das ciências modernas, no qual é necessário basicamente compreender a natureza e o modo pelo qual os seres humanos nela se inserem.

Por sua vez, afirmam que essa crise que eles descrevem não é da ciência em geral, mas de uma ciência clássica produzida no seio de uma cultura que a produziu e determinou. Durante todo o texto de A Nova Aliança, Prigogine e Stengers tentam buscar as transformações da física a partir de um diálogo com as ciências humanas, a arte e a filosofia. A nova aliança da ciência com a natureza exige um “jogo experimental” e “a aventura exploratória” da ciência a partir de outras perspectivas diferentes daquela do moldar e decifrar.

Ao sugerir pensar o surgimento das ciências modernas mais como um acontecimento do que como algo relativo às leis e ao direito, e questionar o progresso das ciências modernas a partir de novas perguntas a respeito do que a ciência pode vir a nos conduzir, Stengers, ao escrever o livro sobre a invenção das ciências modernas quase dez anos após o trabalho com Prigogine17, mantém o projeto da nova aliança. De certa forma, amplia-o e tenta retirar a ciência da mera submissão aos poderes políticos institucionalizados, fazendo com que fosse extirpada dela a pretensão de ser o braço direito desse mesmo poder e impedindo-a de ser a única esfera de decisões que envolvem, inclusive, um número de atores muito maior que o número de cientistas e especialistas.

De maneira ligeiramente distinta, Paul Feyerabend compartilha algumas preocupações de Stengers e Prigogine ao colocar em dúvida a real importância da ciência. Justifica essa contestação a partir de duas questões que são colocadas em evidência em qualquer debate sobre a ciência:

A. O que é a ciência? Como ela atua, quais são seus resultados, de que maneira seus padrões, procedimentos e

17 O lançamento de A Nova Aliança ocorreu em 1984 na França, enquanto que A

70 resultados diferem dos padrões procedimentais e resultados de outras áreas?

B. O que é tão importante em relação às ciências? O que faz que a ciência seja preferível a outras formas de existência, que, consequentemente, usam padrões diferentes e obtém resultados distintos? O que faz que a ciência moderna seja preferível a ciência dos aristotélicos ou a cosmologia dos Hopi18? (FEYERABEND, 2011, p. 91)

Se sobre a primeira pergunta existem diversas respostas de cientistas, políticos e “porta-vozes” do público (FEYERABEND, 2011, p. 92), que envolvem a ciência em um misto de escuridão e possibilidade de compreensão, sobre a pergunta B não restam dúvidas. Essa pergunta, para Feyerabend, é incabível. Não se contesta a ciência, por ela ser verdadeira em si mesma. Se os pais podem escolher se a criança será orientada de acordo uma determinada religião, por que não existe essa possibilidade na ciência? Lembra Feyerabend, citando Kropotkin, que nem os próprios anarquistas clássicos, rompedores das instituições reguladoras da sociedade, foram capazes de driblar a ciência.

Assim como nas ideologias, afirma Feyerabend que não há uma ideia inerente à ciência que a torne uma força libertadora. Cita o caso do marxismo que, de uma proposta emancipatória e igualitária, tornou-se uma ideologia degenerada em dogmatismo. Muito próximo do que Foucault, em outro momento, chamou de fascismo. Existe um racionalismo que, ao se confundir com a ciência, se considera uma base para a ação sobre a sociedade (FEYERABEND, 2011, p. 95). Não à toa, instituições como a escola, o presídio, o quartel – que Foucault chama de disciplinares – submetem os humanos a um tratamento científico, sob o qual os próprios deverão ter suas personalidades, subjetividades e caráter formatados e moldados.

Além disso, a ciência como controladora do conhecimento e do saber, resiste com unhas e dentes a perder esse posto, mesmo com as mudanças surgidas dentro da própria ciência, ao se deparar com a intensificação e multiplicação dos outros

18 Grupo ameríndio que ocupava o que é hoje o espaço dos Estados Unidos da América, cuja reserva se encontra no Estado do Arizona. São menos de 7000 membros, cercados territorialmente por reservas navajas. Sua mitologia e o conhecimento científico-cosmológico fez com que houvesse grande aproximação entre os hopis e os tibetanos, sendo constantes as visitas do atual Dalai Lama a esse povo.

71 saberes, “a-científicos”. Ainda Feyerabend argumenta que o liberalismo teve grande participação na ideologia científica, racionalista, ao fazer com que os índios e negros, ao serem considerados humanos iguais, não tiveram as suas tradições e práticas elevadoras ao mesmo patamar de uma cultura branca. Só puderam ter acesso a uma tradição instituída.

E quando os conhecimentos étnicos e tribais ganharam interesse por parte dos cientistas, foi a partir das ferramentas, categorias de análise e significações dadas por uma ciência racionalista instituída, que entendia o conhecimento tradicional e as culturas ocidentais como “amigas”, desde que o status da ciência como saber soberano não fosse tocado (FEYERABEND, 2011, p. 97). Essas culturas, apesar do direito à existência, o possuem somente como enxertos secundários que, para Feyerabend, são submissos a uma estrutura básica de uma aliança entre racionalismo, ciência e o capitalismo. Um capitalismo que hoje, cada vez mais flexível19, torna culturas tradições e étnicas em produtos passíveis de consumo ao mesmo tempo imediato e constante.

Portanto, a ciência se oporá completamente a qualquer tentativa de tomarem seus postos de centralizadora do saber e do conhecimento usando de argumentos e táticas de manutenção de sua soberania, se apoiando em três premissas:

Premissa A: o racionalismo científico é preferível às tradições alternativas.

Premissa B: ele não pode ser aprimorado por meio de uma comparação e/ou combinação com as tradições alternativas. Premissa C: ele deve ser aceito, transformado na base da sociedade e da educação em virtude de suas vantagens. (FEYERABEND, 2011, p. 98)

O máximo que a ciência pode se abrir é ao exercício de uma tolerância, mas uma tolerância que, para Feyerabend, é mais compreendida por conviver como aqueles que ainda estão presos a uma perspectiva falsa de mundo, significando que assim, é necessário dar tratamento humano a todos, mesmo que as pessoas estejam presas ao equívoco (FEYERABEND, 2011, p. 100).

As relações entre o poder e a ciência presentes no debate realizado por Feyerabend, Latour, Prigogine e Stengers, se não compartilham com a perspectiva

19 Ver a análise sobre a flexibilidade do capitalismo após os anos 60 em Hardt e Negri (1999) e Harvey (1999)

72 foucaultiana na qual todo saber científico de uma maneira ou outra está conectada a uma relação de poder, ou não abordam a produção de saberes a partir de uma relação de forças, pode-se entender que, de modos diversos, compactuam com a ideia na qual a ciência moderna se tornou senão a razão de ação hegemônica de Estado, ou seja, da governamentalidade, um dos traços mais evidentes dos exercícios de poder institucionalizados na contemporaneidade.

Ciência que, ao definir e expandir as problemáticas ambientais nos últimos 50 anos desenhou também o campo das questões ecológicas, seus fenômenos, impactos, suas eventuais soluções e até suas utopias sobre as sociedades que se querem sustentáveis e/ou ecologicamente corretas. A discussão sobre o saber e a ciência que fiz nesse capítulo se fez necessária justamente para analisar o campo da ciência sob o manto das relações de poder, a partir da discussão que Foucault realiza, assim como em alguns pensadores ou filósofos da ciência.

Sob essa ciência e sua divulgação é que o campo das relações entre a educação e a ecologia constrói e desconstrói suas discussões, suas análises, suas críticas e suas virtuais perguntas e respostas. E é também sob elas que, quando não se institucionaliza, acaba por fugir da cooptação e da cristalização, como discutirei na segunda parte dessa tese.

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