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Capítulo 1. O poder

1.3. Artes de superfícies e acontecimentos

Uma última e longa observação é necessária para compreender o conceito de poder em Foucault, e a ressonância nietzscheana em sua construção. É sobre a superfície como local de encontro dos incorpóreos, como aquilo que acaba dando sentido aos fatos e as coisas12. Para compreender o conceito de superfície, é

12 O acontecimento como encontro de incorpóreos nas superfícies no pensamento de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, não pode ser confundido com o conceito de acontecimento fenomenológico no pensamento husserliano, que entende os

52 preciso recorrer ao conceito de rizoma em Deleuze e Guattari13. Ao deslocarem uma noção da fisiologia vegetal para a filosofia, os dois pensadores sugeriram o rizoma como conjunto de cadeias semióticas composto por tubérculos que aglomeram atos múltiplos e heterogêneos que conectam e aglomeram atos muito diversos: linguísticos, mímicos, gestuais, cogitativos. Ou seja, como se fosse um concurso “de dialetos de patoás, gírias, de línguas especiais” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 16-17).

Os rizomas, ao fazerem bulbos que evoluem por meio de hastes e fluxos subterrâneos, espalhando-se como manchas que estranham desde eixos genéticos até as estruturas mais profundas, recusam a “arborescência” hierárquica ávida por dar significados e relevância a partir das gêneses fundadoras dos sentidos de mundo e da vida.

Sua formação ocorre por intermédio de regiões contínuas de intensidades, vibratórias sobre si mesmas, a qual, ao tomarem de Gregory Bateson o termo de empréstimo, Deleuze e Guattari chamaram de platô, ou seja, “toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 33), as quais formam e estendem os rizomas. Portanto, se é nas superfícies onde existe a proliferação dos rizomas e dos platôs, é na superfície onde se dá a própria produção de sentido (DELEUZE, 2006a, p. 131),

É onde tudo acontece e onde tudo se diz. Quando Deleuze se refere à superfície, se refere a algo que se opõe à altura socrática e à profundidade pré-socrática.

Para compreender melhor essa noção, é preciso lembrar que Deleuze sugere três imagens de filósofos:

A primeira é o platonismo, em que surge o ser das alturas, o mito, a narrativa de uma fundação, que constrói o modelo imanente ou o fundamento, como prova de acordo com o qual surgirão os pretendentes a-participantes, ou seja, que se desejam como cópia da fundação. O que o platonismo busca, para Deleuze, é o autêntico, o original, o puro, o essencial. O mundo das ideias:

fenômenos como passíveis de serem compreendidos a partir da intencionalidade e da consciência de cada indivíduo.

13 O conceito de rizoma foi desenvolvido por Deleuze e Guattari (1997) no primeiro volume de Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.

53 [...] A operação do filósofo é então determinada como ascensão, como conversão, isto é, como momento de se voltar para o princípio do alto, do qualele procede e de se determinar, de se preencher e de se conhecer graças a uma tal movimentação. (DELEUZE, 2006a, p. 131)

A conversão platônica como o momento do pensamento que é voltado para o início, a busca do original do qual todos – ou quase todos – são modelos ou cópias. É a ideia dos seres humanos criados como imagem e semelhança de Deus, e por isso, sendo necessário o retorno a esse criador, a esse fundamento.

A segunda imagem é a dos pré-socráticos, ou seja, o ser das profundidades, o que sugere o pensamento das cavernas; é ele quem se embrenha o máximo possível no fogo, na água, na terra:

Às asas da alma platônica, opõe-se a sandália de Empédocles. Que prova que ele era da terra, sob a terra, e autóctone. Ao golpe de asas platônico, o golpe de martelo pré-socrático. À conversão platônica, a subversão pré-socrática. (DELEUZE, 2006a, p. 132)

Deleuze sugeria tanto a conversão platônica quanto a subversão pré- socráticas como doenças da filosofia, pois a diferença que há entre as duas é somente sobre qual tipo de essência deveria estar o objeto de contemplação ou de reflexão: as alturas ou as profundidades.

Anos depois, Deleuze, em companhia de Guattari na obra O que é a

Filosofia?, afirma que a atividade filosófica não pode ser tratada como uma mera

contemplação, já que esta “não era mais do que as coisas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 14). E também não se trata de reflexão, já que, por exemplo, matemáticos refletem sobre matemática, não precisando da filosofia para isso. Ou seja, não é necessária a filosofia para que haja a reflexão. Portanto, a contemplação ou a reflexão sobre o essencial, seja ele alto ou profundo, não pode ser chamado de filosofia.

A terceira imagem de filósofos fica por conta dos cínicos e dos estóicos. Estes, principalmente os primeiros, por sua vez, tratam a filosofia como um sistema de provocações e zombarias. Trata-se de:

54 [...] destituir as idéias e de mostrar que o incorporal não está nas alturas, mas na superfície, que não é mais a alta causa, mas o efeito superficial por excelência, que ele não é a essência mais o acontecimento. (DELEUZE, 2006a,p. 134) Sempre tendo em conta que ao mesmo tempo em que destituí-se o ideal, destituí-se também a medida imanente capaz de fixar a ordem e a progressão de uma mistura nas profundidades – o que dá a origem à essência do profundo. O que vale é a própria mistura e os corpos que se penetram e coexistem, e não a essência. É o acontecimento, o incorpóreo, ou seja, a mistura entre corpóreos.

A essa destituição do ideal e do essencial, Deleuze chamou de perversão. Uma filosofia pervertida que consiste em não mais refletir ou contemplar alturas e profundezas, mas pensar o encontro incorporal entre os corporais. A destituição do espírito-ideia (alturas), e do espírito-matéria (profundidades), dando lugar ao acontecimento.

É nessas superfícies onde ocorre a reorientação do pensamento, a desterritorialização do ideal, do essencial, do profundo e do fundamento. É somente nelas em que podemos conceber a ideia dos rizomas e de suas zonas de intensidade, os platôs.

São os seres dessa superfície (o piolho, o carrapato, a cobra) que constituem exatamente a dissimilitude com qualquer identidade superior da ideia, os falsos pretendentes, os simulacros. Os que querem destruir os modelos-ícone e as cópias, para instalar o caos criativo. Que querem marchar e se encontrar sobre a superfície. Perverter para criar.

Ao entender que a filosofia não seria mais do que uma ruminância de conceitos ao seguir a lógica platônica de compreender o bem, o verdadeiro e a razão como formas de se buscar o sentido das coisas, Deleuze sugere que aí acaba o pensamento filosófico e se estabelece a submissão a uma ideia. Mas, a filosofia só existe se for uma atividade criativa. Pensamento como criação de conceitos. Conceitos criados a partir, justamente, dos encontros incorporais e dos acontecimentos que se estabelecem nas superfícies.

A crítica compartilhada por Nietzsche, Foucault, Guattari e Deleuze, na qual a filosofia ocidental platonizada não passa de uma iconologia, se dá pelo fato do sentido sempre dever ser analisado a partir de um modelo e/ou fundamento determinado na Ideia. E, é a partir da fundação que acaba se estabelecendo o que é

55 o idêntico – ou identidade – assim como o que é real e o que é verdadeiro. A pretensão da verdade é criadora dos pensamentos e das noções que analisam a partir da semelhança que irá tal fato, pessoa ou objeto possuir perante a Ideia:

[...] no Fedro, o mito da circulação expõe o que as almas puderam ver nas ideias antes da encarnação: por isso mesmo nos dá um critério seletivo segundo o qual o delírio bem fundado ou o amor verdadeiro pertence às almas que viram muito, e tem muitas lembranças adormecidas, mas ressuscitáveis – as almas sensuais, de fraca memória e as de vista curta são, ao contrário, denunciadas como as falsas pretendentes (DELEUZE, 2006a, p 260)

Ao fazer um paralelo com o catecismo católico, Deleuze afirma que os humanos, apesar de serem criações divinas, mantiveram sua imagem, mas perderam sua semelhança com o divino, pois o pecado fez com que tivéssemos perdido a “existência moral para entrarmos na existência estética”. Ao perder sua essência e sua semelhança, o humano tornou-se simulacro, um falso pretendente, justamente aquilo que a filosofia platônica quer encurralar, deixar trancado e escondido, impedindo de estar de igual para igual com as cópias e os ícones.

A perversão do platonismo que Nietzsche sugeria é, para Deleuze, a vitória do simulacro e do falso pretendente, os quais, longe de serem comparados ao Ideal e ao Verdadeiro, estarão impedindo a hierarquização do pensamento e dos conceitos. Em uma de suas mais brilhantes passagens, Deleuze sugere o estabelecimento do “mundo das distribuições nômades e das anarquias coroadas” (DELEUZE, 2006a, p. 268), responsáveis por fazer do pensamento um encontro alegre, superficial e positivo, em que haja o abandono do fundamento (effondrement), e a ascensão do acontecimento (effondement) (DELEUZE, 2006a, p. 268).

Para Foucault (2000), essa perversão é o discurso da materialidade dos incorpóreos (metafísica). São esses simulacros, falsos pretendentes, que se encontram e destituem os modelos. Instauram a ausência de Deus (Um-Bom), liberta da profundidade originária e do ente supremo. A perversão, girando em torno do ateísmo e da transgressão.

Ao analisar o poder como relação de forças, Foucault leva a cabo o empreendimento nietzscheano de combater o platonismo, quando se opõe a

56 pesquisa da “origem”, “ao desdobramento meta-histórico das significações, ideais e das indefinidas teleologias” (FOUCAULT, 1979, p. 16). Ao recorrer à genealogia, Foucault assume para si o combate àquilo que Nietzsche chamava de metafísica na filosofia, para compreender com mais propriedade os processos históricos responsáveis pela formação dos sujeitos, a partir justamente dessa relação de forças que acabou sendo chamada de poder.

Portanto, à origem, que era cara ao pensamento platônico, é necessária uma recusa, que se faz necessária pelo fato de ela, a origem, esconder a verdade sob o manto do nascimento divino e perfeito das coisas, perdido devido aos erros e sensibilidade do mundo físico. Se tudo aquilo que desvia o caminho original é considerado como acidente de percurso pela perspectiva platônica (FOUCAULT, 1979, p. 17), para um Foucault inspirado em Nietzsche, são nesses “acidentes” que é preciso se concentrar e intensificar a pesquisa, pois são neles em que se dão a construção humana e sua história:

Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os períodos da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos. Prestar uma atenção inescrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro. Não tem o pudor de ir procurá-las onde elas estão escavando os bafond; deixar-lhes o temo de elear-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda. (FOUCAULT, 1979, p. 19).

Nessa genealogia nietzscheana-foucaultiana, é preciso compreender os “mil acontecimentos” acidentais no processo de construção humana e histórica, do que buscar uma verdade escondida em um mito fundador responsável pela criação das identidades. As quais precisam, na genealogia, ser fragmentadas e desconstruídas, para que seja viável um entendimento cuidadoso dos fatos. Essa iconoclastia se torna ainda mais intensa quando sugere, ao destruir a tradição histórica e desvencilhar a noção de acontecimento da ideia de acidente de percurso, que o presente não está mais inserido em um plano celestial, racional e transcendental, onde tudo está pré-definido, sendo os seres humanos somente as peças de um joguete armado e combinado, apesar das desventuras acidentais. A aposta é que o

57 sentido da história não tem referências e muito menos “coordenadas” originárias. No lugar de um plano transcendente, um plano imanente.

Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais: não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 52).

O antiplatonismo presente em Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, e sua ressonância na teoria de poder foucaultiana, busca combater a verdade eterna, o universal, a lei das essências, o passado cristalizado. Afirma o próprio Foucault (FOUCAULT, 1979, p. 31) que o historiador se aniquila para que se insira um processo histórico meta-narrativo, desejoso das grandes histórias responsáveis pelas mudanças nas mentalidades e práticas humanas que terá que “calar suas preferências e superar o nojo”, e admitir sua quase existência, sem nome, sem rosto.

É nesse momento que quero promover o deslocamento da fala de Foucault para as relações entre a educação e a ecologia, de forma que possa, de certa maneira, discutir as resistências ao poder no contexto da educação ambiental mais como um “carnaval organizado” (FOUCAULT, 1979, p. 34), de trocas e ressurgimento constante de máscaras, que desfaçam as identidades originárias em nome de perspectivas construídas sob os mais numerosos elementos, que façam com que a análise dos sujeitos, dos poderes, dos acontecimentos, das ecologias e das educações sob as sínteses universais se torne não impossíveis, ao menos desconfiáveis.

A recusa de minha perspectiva em tratar a educação ambiental unicamente sob o auspício histórico das grandes conferências internacionais, e das constantes recomendações feitas às sociedades globais, não se dá como forma de desprezo ao processo de ampliação dos esforços em resolver as questões ambientais contemporâneas ou de sua desqualificação no campo de discussão das ecologias ou das pedagogias.

58 Mas, conforme os anos vão passando, os documentos resultantes das reuniões internacionais sobre a educação ambiental estão cada vez mais se tornando modelos icônicos da produção de teoria nesse campo. As resoluções produzidas pela ONU/UNESCO adquirem cada vez mais força e popularidade, transcendem às fronteiras, as culturas, as línguas e as classes sociais e suas recomendações tornam-se cada vez mais obrigações, ao serem inseridas nas políticas oficiais, fazendo com que o pensar a educação ambiental só seja aceito como tal se considerar e seguir as diretrizes estabelecidas.

Sua legitimidade é cada vez mais incontestável na produção teórica da educação ambiental. Ao afirmar que atendiam aos movimentos ecologistas e as preocupações científicas sobre as questões ambientais no que diz respeito ao fim dos recursos naturais e as possibilidades apocalípticas, esses documentos ganharam uma aura heróica e sedutora, já que as propostas visionárias dos ecologistas finalmente haviam “sido atendidas” pelas instituições internacionais. Bastava somente a vontade política e o tempo para a resolução.

É sobre o endeusamento dessas normas que pretendo fazer a recusa e a resistência nessa tese. Não por sua impertinência, mas por sua cristalização. Para fazer um trabalho que promova a inversão e a “menoração” da educação e da ecologia, preciso promover, senão a morte – apesar de sua constante presença – mas a desintegração da iconologia criada pelas conferências internacionais, e para isso me utilizo, adiante, a metáfora do inferno e da licantropia.

Nesse sentido, tive que me distanciar das ecologias para também promover ecologia. Foi necessário fazer uma série de exercícios de experimentação do pensamento para construir outras possibilidades e identificar a existência de educações ambientais outras.

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