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Capítulo 5. Governo, governamentalidade, biopoder, biopolítica

5.1. As artes de governar

É a partir de Maquiavel, de acordo com Senellart (2006), é que ocorre o deslocamento da política, de um governo com princípios teleológicos, que busca atingir um determinado estado de perfeição na condução das pessoas, para um exercício tático de conservação do poder, ou seja, não é mais a virtude do príncipe que busca o bem comum que rege um governo em um “continuum teológico- cosmológico” que parte de Deus, atravessando o príncipe e os pastores até chegar aos pais de família (FOUCAULT, 2008a, p. 313), é que será a responsável pela administração de um território e um determinado grupo de pessoas. O que vale, a partir de Maquiavel, é a virtú do príncipe, que necessita do uso da astúcia, da audácia, da força e da dissimulação para evitar que o principado fosse tirado de suas mãos, e para que o seu poder fosse vitalício. O reino do príncipe trocava o critério da justiça divina pela eficácia do exercício de poder (SENELLART, 2006, p. 42).

Afirma Senellart que O Príncipe, de Maquiavel, é o livro de transição política por excelência, pois analisa a imagem do governante tanto como o espelho deve irradiar sua exuberância e magnificência (SENELLART, 2006, p. 50) – de alguém

105 capaz de governar os outros, pois aprendeu a se governar – quanto o espelho que reflete a imanência do príncipe com o território governado (SENELLART, 2006, p. 55-56) 31, como se fossem uma mistura homogênea e indissociável. E não somente isso, mas também será introdutório, ao mesmo tempo aos manuais de Estado, cujos espelhos políticos deixarão de lado a imagem do príncipe, para dar lugar ao Estado como imanente aos territórios governados.

Há uma grande diferença entre o homem observado pelos técnicos da habilidade principesca e aquele estudado pela ciência do Estado: o primeiro individualiza-se a partir de uma natureza imutável que a diversidade das circunstâncias, sem alterá-la, modifica; o segundo distribui-se em massas ou categorias ativas sobre o fundo, não de uma natureza universal, mas de uma multiplicidade concreta modelada pela história. (SENELLART, 2006, p. 60)

Essa arte de governar – que em Maquiavel, para Foucault (2008a) não é mais do que uma das artes de governar – se transforma, em Hobbes, quase dois séculos mais tarde, no duplo problema de conservação da soberania do Estado por intermédio da imagem do soberano, e do exercício de manutenção da paz social, como forma de impedir a autodestruição humana, sendo que a condição vital do governo, para garantir a sua sobrevivência, é o poder soberano. Se em Maquiavel, reinar era governar, em Hobbes, a soberania se faz no exercício da obediência ao rei, deixando o aparato tecnológico da administração econômica dos súditos e dos bens materiais, a cargo dos ministros, através dos quais se dava o exercício da soberania (SENELLART, 2006, p. 42-43).

Soberania que para Agamben (2002), analisando Carl Schmitt, não pode ser dissociada daquilo que ele chama de Estado de Exceção, ou seja, tudo aquilo que está fora do ordenamento jurídico e da normalidade que rege a regra geral. O soberano, seja ele o príncipe ou o Estado, é aquele que tem o poder de estabelecer uma determinada situação em que ele pode se colocar fora da lei ou fora da regra,

31 Ao examinar a obra de Guilher de la Perrière, Espelho político, de 1567, Senellart afirma que o espelho reflete muito mais a eficiência e ordenação da relação entre o príncipe e o território governado, do que necessariamente uma imagem idealizada de um príncipe transcendentalmente imposto ao seu cargo, seja pela vontade ou pela semelhança divina.

106 para que essas mesmas sejam cumpridas em um determinado momento, elas foram violadas.

Para Agamben, existe um limiar que da vida em que ela está constantemente dentro e fora do ordenamento jurídico, ou seja, da soberania. A ordem jurídica, ao definir o incluso, precisa antes saber – a partir da constante repetição de um ato sem sanção – o que não está incluso na lei, ou seja, a exceção. Há uma captura constante da vida pelo direito, e essa constante assimilação só é possível a partir do momento em que a exceção é identificada e integrada – ou não – à norma (AGAMBEN, 2002, p. 35).

Se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através de sua própria suspensão. (AGAMBEN, 2002, p. 35)

Sugere Agamben que a relação de exceção é uma relação de bando, ou seja, uma relação de abandono e indiferença pela lei, ou seja, um estado de constante risco por estar na margem da lei e, consequentemente, à margem da vida. É o estado de natureza em Hobbes, em que o humano, ao ser lobo do humano, não pode ser caracterizado tipicamente como o lobo selvagem, totalmente externo à figura humana, mas sim, com um homem lobo, o lobisomem, um híbrido aterrorizante entre fera e humano, que foi banido da sociedade, e também que não pertence à natureza, se mantendo ao mesmo tempo fora e dentro dos dois mundos:

É somente sob esta luz que o motilogema hobbesiano do estado de natureza adquire seu sentido próprio. Como vimos que o estado de natureza não é uma época real, cronologicamente anterior à fundação da Cidade, mas um princípio interno desta, que aparece no momento em que se considera a Cidade tanquam dissoluta (portanto, algo como estado de exceção), assim quando Hobbes funda a soberania através da remissão homo hominis lupus, no lobo é necessário saber distinguir um eco do wargus e do caput lupinum das leis de Eduardo o Confessor: não simplesmente besta fera e vida natural, mas, sobretudo zona de indistinção entre humano e ferino, lobisomem, homem que se transforma em lobo e lobo

107 que torna-se homem: vale dizer, banido, homo sacer. (AGAMBEN, 2002, p 112)

O homo sacer de Agamben está longe de ser o humano político, filósofo e contemplativo que a filosofia grega – especialmente em Aristóteles – sugeria como o cidadão participativo da polis, preocupado ao mesmo tempo com a vida coletiva da comunidade e com sua própria construção ética que lhe permitiria exercer a cidadania do Estado grego. O homo sacer é aquele submetido a uma vida natural, excluída do espaço político da polis e preocupada somente com a reprodução e sobrevivência. Se para Aristóteles, de acordo com Agamben, o humano bios era tanto um ser vivente quanto um ser político, o humano zoé era somente o ser vivente, vivendo uma vida nua. É justamente o lobisomem que, ao não poder ser identificado como um ser político por seu caráter monstruoso, não pode ser identificado como um cidadão, mas também não pode ser considerado um animal selvagem, mas aquele sob o signo da exceção incluída.

Sobre ele é que se exerce todo um mecanismo de estabelecimento de condutas e controle que acaba por hierarquizá-lo e classificá-lo. E, se nas sociedades disciplinares, em um primeiro momento ele acaba por ser ou excluído, ou jogado nos lugares finais de uma fileira, nas sociedades de controle, é essa exclusão/exceção que o possibilitará ser incluído, desde que sob os parâmetros de inclusão estabelecidos hegemonicamente.

É sob a violência que, de acordo com Giacóia (2013), se dá a passagem de um estado de natureza para a sociedade e a civilização, do zoé ao bios, do animal bicho ao animal político. Ao analisar o surgimento das leis na Genealogia da Moral de Nietzsche, Giacóia afirma que apesar da instituição da regra por fim aos conflitos baseados em ressentimentos e vinganças, para estabelecer uma paz e ordem geral, o estabelecimento do Estado se faz e se mantém como um processo violento de tornar excluído todo aquele contrário às leis religiosas e comunitárias, sujeitando-o, inclusive, à vingança divina (GIACÓIA, 2013, p. 81). Portanto, aquele que se tornava

sacer, ou seja, excluído e nu, seria exatamente alguém que poderia ser sacrificado,

sem necessariamente ser considerado como uma vítima de homicídio.

As leis e os direitos acabam por ter, ainda afirma Giacóia, um caráter bifronte, os quais, ao mesmo tempo em que buscam garantir a paz e a resistência ao despotismo, por sua vez fazem parte ainda de um “dispositivo de abandono da vida

108 nua aos mecanismos de poder” (GIACÓIA, 2013, p. 104), os quais, longe de ter valores metafísicos e transcendentais que garantam a igualdade e liberdade a todos, podem ser entendidos na realidade como um conjunto de fundamentos e ferramentas que tentam garantir a soberania e legitimidade dos Estados modernos, assim como sua ação que acaba por tornar a exceção como possibilidade de inclusão e assimilação.

É sobre essa besta humana, esse homo sacer, essa vida nua, que é necessário um processo de doutrinação, condução, controle e modelação, para que esse ser atinja o grau de cidadania que o torne apto a participar dos processos de tomadas de decisão, e que exerça seus direitos, desde que entenda e aja de acordo com os direitos definidos nas cartas e declarações soberanas.

Cabe ainda dizer que não são somente os indivíduos que podem ser considerados os lobos humanos, mas outras comunidades e até espécies humanas inteiras podem ser entendidas como tais. É preciso uma adequação do mundo inteiro aos fundamentos políticos e jurídicos pelos quais as democracias se tornam hoje tão desejáveis e o melhor sistema a ser instituído politicamente. É preciso levar aos outros grupos humanos as noções “democráticas e participativas” das sociedades ocidentais, para fazer com que deixem de viver no obscurantismo, na ignorância e na bestialidade social e política. Se não há política, existe somente um corpo biológico que deve ser devidamente modelado, sob pena de não ter mais direito à própria existência, já que seus sistemas de vida precisam ser sacrificados em prol da paz e da ordem.

Antes de partir para a compreensão dos conceitos de governamentalidade e a biopolítica, é preciso frisar aqui que, de acordo com Foucault, para garantir a saúde, o fortalecimento e a própria vida de uma população, é necessário o estabelecimento de um racismo, ou seja, uma forma de defasar grupos humanos em relação aos outros (FOUCAULT, 1999, p. 304), nem que para isso seja necessário o sacrifício físico.

De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, uma relação que não é uma relação militar e guerreira de enfrentamento, mas uma relação de tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie,

109 mais eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto à espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar. (FOUCAULT, 1999, p.305)

O racismo, como a destruição do outro, não ocorre somente como a destruição física do outro, mas como a destruição cultural, social, política e, é claro, com a destruição ambiental. E Foucault é enfático sobre o quanto os Estados contemporâneos são violentos, assassinos e racistas, devido às constantes tentativas de eliminação do outro. E não só os Estados, mas como as próprias perspectivas socialistas e anarquistas clássica foram consideradas como tal, devido à perspectiva da eliminação do outro.

Mas, conforme as sociedades globais se tornam cada vez mais homogêneas32, existe a falsa impressão que o racismo assassino é deixado de lado e dá lugar aos processos governamentais de condução, disciplinamento e principalmente controle, que se tornam, em todos os lugares do globo, cada vez mais convergentes e semelhantes, atendendo, principalmente, aos atores hegemônicos capitalistas, marcando o estabelecimento daquilo que Foucault passa a chamar de biopoder. Porém, esse biopoder, ao ampliar essa homogeneidade em esfera global através dos tratados, acordos e legislações internacionais, legitima o processo de racismo em uma escala ainda maior, apesar da aparência “democrática” e “participativa” de tais situações.