• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 8. Resistência e política

8.1. Resistência a quê, resistência contra o quê?

Onde há poder, há resistência, afirmou Foucault em História da Sexualidade (FOUCAULT, 1988, p. 91). Elas são o interlocutor do poder, o outro termo, não se encontrando nunca fora das relações do poder. E justamente pelo poder não existir como único dono do próprio poder ou, ser uma universalidade dominante, as resistências não podem ser entendidas como unívoca recusa, mas como múltiplas, pontuais, distribuídas de modo irregular:

[...] os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade do tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos no corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. (FOUCAULT, 1988, p. 92)

161 Esses pontos de resistência, móveis e transitórios são os responsáveis pelos rompimentos das unidades estabelecidas por um determinado exercício de poder, assim como promovem o constante recorte e remodelamento dos próprios indivíduos. Dois exemplos notórios dessas resistências pontuais na obra de Foucault valem ser lembrados aqui.

A primeira está na obra Vigiar e Punir, quando Foucault cita a solidariedade das multidões que assistiam aos processos de suplício dos condenados nos séculos XVII e XVIII, quando havia uma grande comoção e resistência do público em relação aos pequenos infratores da lei, que passavam por processos de imensa dor e sofrimento em praça pública. Muitas vezes essas próprias multidões, temerosas com o poder que realizava esse espetáculo, e identificadas com o condenado, promoviam verdadeiras rebeliões, fazendo com que a sentença não fosse cumprida e muitas vezes, houvesse o perdão da infração, como o caso da empregada que roubou o pedaço de tecido do patrão, em 1761, em Paris:

A solidariedade de toda uma camada da população com os que chamaríamos de pequenos delinqüentes – vagabundos, falsos mendigos, maus pobres, batedores de carteira, receptadores, passadores – se manifestou com muita continuidade; atestar esse fato a resistência ao policiamento, a caça aos denunciantes, os ataques contra as sentinelas ou os inspetores. E era a ruptura dessa solidariedade que visava sempre mais repressão penal e policial. (FOUCAULT, 1987, p. 52)

Essa resistência, em forma de solidariedade, faz com que o suplício dê lugar ao que Foucault chama de punição generalizada, na qual acompanhando a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares, em que a punição, ao invés de expor o poder de morte exercido pelo monarca, passa a exercer um poder de vida e a construção de corpos úteis e obedientes a uma sociedade que passava a se tornar cada vez mais produtiva.

Outro exemplo remetido por Foucault está no curso de 1978, e é relativo aos pontos de resistência ao exercício do poder pastoral, que Foucault acaba por chamar de contracondutas. Eram movimentos que exigiam outras formas de condução, ou mesmo de condutores, já que não estavam mais satisfeitos com os métodos, caminhos e procedimentos, rumo à salvação. Ou ainda, eram iniciativas

162 que não queriam mais que houvesse uma condução pelos outros, mas uma autonomia (FOUCAULT, 2008a, p.257).

Mas, tanto ao estudar as rebeliões de solidariedade aos supliciados no século XVII, quanto às contracondutas ao poder pastoral cristão da Idade Média, Foucault sugere não estudar as resistências simplesmente como reações ao exercício negativo dos poderes soberano e pastoral. Ele sugere analisar a especificidade das revoltas, de forma a entender o exercício do poder, não para entender o poder, mas para entender a construção do sujeito.

Entender o exercício do poder não é estabelecer os fundamentos da análise sobre o poder, mas entender como o poder faz com que os seres humanos acabem por se tornar sujeitos (FOUCAULT, 2010c, p. 234). Para ele, não basta que as lutas sejam antiautoritárias, mas que tenham uma série de aspectos em comum. Entre as características em comum dessas lutas, Foucault sugere que existem três mais genéricas, e três mais específicas e originais.

Entre os aspectos mais gerais estão a transversalidade das lutas, sendo que o caráter internacionalista se encaixa devidamente, já que são lutas contra às economias e os governos nos mais diversos locais; está também o fato de serem diretamente efeitos desse próprio poder; e por serem lutas imediatas, e não enfrentamentos dialéticos contra um único inimigo maior, mas escaramuças e tocaias momentâneas. Por sua vez, vale citar as três outras características que Foucault sugere como as mais específicas entre essas lutas:

4) São lutas que questionam o estatuto do indivíduo; por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra sua relação como os outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se voltar contra si mesmo e o liga a sua própria identidade de um modo coercitivo.

Estas lutas não são necessariamente nem a favor nem contra o indivíduo; mais que isto, são batalhas contra o governo da individuação.

5) São uma oposição aos efeitos de poder relacionados ao saber, à competência e à qualificação; são lutas contra o privilégio do conhecimento. Porém são também uma oposição ao segredo, à deformação e às representações mistificadoras impostas às pessoas.

Nada há de “cientificista” nisto (ou seja, uma crença dogmática no valor do reconhecimento científico, nem é uma recusa cética

163 ou relativista de toda a verdade verificada. O que é questionado é o modo pelo qual o saber circula e funciona, suas relações com o poder. Em resumo, o regime do saber. 6) Finalmente, todas essas lutas contemporâneas giram em torno da questão: quem somos nós? Elas são uma recusa dessas abstrações do estado de violência econômico e ideológico, que ignora quem somos individualmente, e também uma recusa de uma investigação científica ou administrativa que determina quem somos, nossa identidade. (FOUCAULT, 2010c, p. 234-235)

Portanto, não são resistências e lutas contra o Estado ou o capital, mas sim, contra processos de sujeição que não permitem ao indivíduo nem tomar conta de sua construção como sujeito; nem de entender os processos pelos quais ele é construído, e muito menos permitir o acesso à ciência que “explica” a formação dos sujeitos, a qual só afirma uma determinada construção contingente, homogênea e inserida em uma determinada totalidade.

A resistência contra aquilo que Foucault (2009c) chamou de submissão da subjetividade insere-se tanto na luta contra a dominação e exploração dos sujeitos, como contra a apropriação do processo de construção do sujeito pelos mecanismos de poder, Foucault enfatiza com grande veemência as resistências contra o poder pastoral, justamente pelo fato dessa prática ainda estar intensamente presente nas práticas exercidas pelas práticas contemporâneas.

Observar as resistências como práticas de sujeitos insubmissos – não por essência, mas por circunstância, processo – não necessariamente irá nos permitir desvelar a verdade sobre o sujeito, criando um novo discurso unívoco e total sobre ele. A perspectiva não é, como sugere Deleuze (1992, p. 109), buscar o eterno, mas fazer uma cartografia, analisando os estados mistos e os agenciamentos: fazer uma microfísica do poder, ou ainda, analisar a micropolítica dos desejos, como sugeria Guattari.

A inerência entre os mecanismos de exercício de poder e as insubmissas resistências podem ser comparadas ao que Guattari, em conversa com Rolnik, sugeriu nos conceitos de molar e molecular ao discutir a questão micropolítica, ou seja, não há oposição e/ou contradição nos processos de formação do sujeito, ou, para Guattari (2010, p. 149), na formação do desejo no campo social. Por isso mesmo, mais do que uma adjetivação entre o lado bom e o lado ruim nos processos

164 de singularização, Guattari sugere que é necessário entender que os problemas se desenvolvem nos dois níveis, no micro e no macro, no molar e no molecular:

No nível molecular é muito mais difícil identificar o inimigo, pois não se trata como no nível molar de um inimigo de classe que vai se encarnar em um outro líder. O inimigo, nesse caso é algo que se encarna em nossos amigos, em nós, mesmos, em nossas fileiras, a cada vez que o problema remete a um agenciamento de enunciações de um outro tipo. (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 156)

Assim como Guattari sugere evitar a polarização entre o bom molecular e o mau molar, Foucault também o faz entre os poderes e resistências. É contra uma “fascistização”, ou seja, uma assimilação molar das lutas de resistência, que os trabalhos desses dois pensadores se manifestavam. Ao assumir a análise das micropolíticas e das resistências pontuais ao poder como forma de compreender a construção do sujeito e a criação dos desejos que não fossem àqueles ligados às formações subjetivas submetidas aos “investimentos libidinais dominantes” (GUATTARI e ROLNIK, 2010, p. 157), eles queriam evitar a construção das metanarrativas ou meta-noções do entendimento humano, evitando a criação de verdades universais e de métodos rígidos de compreensão.

Apesar do risco dessa proposta acabar por se tornar uma nova verdade no meio acadêmico, tornando-se parâmetro de avaliações de aceitação em grupos de pesquisa, programas de pós-graduação, publicações em periódicos e editores, em eventos científicos e debates em geral como Congressos, Seminários, Colóquios e Encontros, é por intermédio dessas micropolíticas que entendo que se torne mais viável cumprir com a empreitada que proponho nessa tese. Já que, apesar de todas essas situações, ainda é por meio dessa proposta que tento distanciar as relações entre educação e meio ambiente dos discursos fantasmagóricos permeados de razões e resultados maiores. É tentar tirar a educação ambiental de uma perspectiva unicamente molar/macropolítica de estabelecimento de subjetividades homogêneas, e trazer à tona possibilidades menores e micropolíticas.

Guattari afirmava que uma democracia só se consolida e ganha consistência ao nível da subjetividade de indivíduos e grupos, e só a partir desses níveis moleculares é que novas práxis, atitudes e sensibilidades que velhas estruturas estarão impedidas de voltar.

165 Aqui, é necessário voltar à discussão de Rancière sobre a política e o dissenso. Ao afirmar que um sujeito ou uma classe são políticos, sugere Rancière que por serem políticos, são os promotores de uma desclassificação ou desmoronamento da estrutura policial que determina os lugares e funções de uma sociedade (1996b, p. 378).

A sugestão de Rancière sobre o sujeito político se aproxima bastante da perspectiva de resistência de Foucault e das micropolíticas guattarianas, pois afirma que esse sujeito não é uma entidade estável, mas um sujeito em ato, precário, apenas um desvio sempre ameaçado de se dissipar:

Ora, a forma mais radical dessa dissipação não é o simples desaparecimento, é a confusão com seu contrário, é a polícia. O risco dos sujeitos políticos é confundir-se de novo com partes orgânicas do corpo social ou com esse próprio corpo (RANCIÈRE, 1996b, p. 378)

Esse corpo social, que pode ser confundio com a forma-Estado, é o modo como toda busca ser repreendida sob o consenso policial. Consenso que busca destruir a diferença, buscando formas gerais de resolução desses problemas. Na esfera da forma-Estado, podemos compreender essas resoluções gerais de Políticas Públicas. Guattari, no mesmo sentido, afirma que as forças moleculares, uma hora ou outra, terão seu encontro com a burocratização, os quais se não forrem retomados “em nível das relações de forças reais” (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. 155), correm o risco de girar em torno de si próprios, naquilo que ele chamou de “singularidades em implosão”.

Singularidades que acabam por implodir, talvez por sucumbirem aquilo que Foucault chamou de amor pelo poder, pois ao tomarem as rédeas da ação social, e terem a possibilidade de implantar seu projeto de sociedade, essas subjetividades acabaram por cair na armadilha da assimilação e captura.

Nesse sentido, é necessário evocar a empolgação de Foucault no prefácio da edição estadunidense da obra O Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari. Para ele, mais que qualquer coisa, o O Anti-Édipo é um livro ético, pois ser “Anti-Edipo” passa a ser um estilo e modo de pensamento e de vida, já que, de acordo com suas próprias palavras, é capaz de ameaçar as burocracias com seus “funcionários da verdade”,

166 os técnicos que reduzem o desejo à estrutura e à falta, e, principalmente, o fascismo:

Como fazer para não se tornar fascista, mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nossos discursos e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres no fascismo? Como desalojar o fascismo que se incrustou em nosso comportamento/ os moralistas cristãos procuravam os vestígios da carne que tinham se alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os vestígios mais ínfimos do fascismo no corpo. (FOUCAULT, 2010, p. 105)

Foucault, Deleuze e Guattari combatem uma série de fascismos cotidianos, em uma obra que deveria ser entendida e lida como se fosse um guia da vida cotidiana. Sugeria uma ação política não totalizante e unitária a qual negasse qualquer estrutura em subdivisões ou pirâmides. A ideia de uma política nômade, múltipla e positiva, que combatesse o limite, a falta, a uniformidade e a lei. Uma política alegre, verdadeira em seus encontros e não em sua essência. Uma gaia política.

Entender as resistências consiste em analisar o poder através do antagonismo de estratégias, pois não se luta contra o poder em si, já que ele não existe como um substantivo, mas se combate os efeitos de poder e o controle que ele estabelece. Por isso mesmo que não existe um inimigo comum e principal, mas sim, inimigos imediatos. Foucault dizia que as resistências são lutas anarquistas, pois não esperam solucionar os problemas de um futuro preciso, definido de antemão, seja ele utópico ou catastrófico.

E é nessa perspectiva anarquista/libertária que pretendo manter o enfoque deste trabalho sobre as relações de poder e resistência no contexto da educação ambiental. A prática da educação ambiental como resistência, ou as resistências na/da educação ambiental, estão presentes em discursos ou perspectivas que entendam a militância política/ambiental/pedagógica em ações cotidianas, menores, descentralizadas e longe de qualquer intenção de legitimação e/ou institucionalização pela forma-Estado e pelas bilionárias corporações transnacionais. Além disso, essas resistências estão contra o governo da individualização, ou seja, afirmam uma singularidade e uma multiplicidade criadas não sob uma

167 pedagogização ou uma sujeição, mas a partir de uma construção daquilo que se é. E chegar a ser o que se é implica uma prática de resistência aos mecanismos que constroem o sujeito a partir do que o Estado quer que ele seja. São resistências que giram em torno da pergunta “o que somos nós?”.

Foucault afirma que essas lutas são um rechaço à inquisição científica e administrativa que determina o quê é o quê, quem é quem, ou seja, os efeitos do poder ligados ao conhecimento, à competência e à qualificação. Em suma, as resistências lutam também contra os privilégios do conhecimento.

Não existe, para Foucault, um lugar da grande recusa, como uma alma da “rebeldia ou um quartel general do espírito rebelde”, mas elas são plurais, casos únicos:

[...] possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício. (FOUCAULT, 1988, p. 91)

Elas não existem a não ser no campo específico das relações de poder, não sendo meros subprodutos dessas, mas sim, o outro termo do poder:

Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. (FOUCAULT, 1988, p. 92) Por sua vez, e como alerta Castelo Branco (2001), é necessário perceber que Foucault afirma que nem todas as lutas são contrárias ao poder. Em diversos casos, quando alguns grupos se digladiam com os governos, acabam fazendo com que suas reivindicações fortaleçam ainda mais os dispositivos, instrumentos e ferramentas do poder em seu processo de individuação. Ou seja, quando existe uma completa assimilação de reivindicações. Além disso, como também observou Alvim (2012), há uma total desconfiança de Foucault – desconfiança partilhada por esse trabalho – com lutas instituídas e formais, a partir de grupos legitimados da

168 sociedade civil, partidos políticos, e outras representações formais, nas mais diversas formas da governamentalidade liberal.

Essa desconfiança, por sua vez, não pode ser transformada em um abandono e desilusão tanto da luta política, quanto dos primados da resistência e da potência de criação. Não é porque anteriormente grupos políticos – portadores de reivindicações poderosas, de combate à repressão, destruição e completo apagamento das diferenças – ao tornarem-se institucionalizados, foram absorvidos e perderam sua força, é que todas as lutas podem ser consideradas como tais. Alguns grupos chegaram aos cargos privilegiados, e os usaram somente como forma ou de pura e plena dominação, ou de implantação de um regime de verdade e aniquilação da concorrência. E em relação à chegada ao poder de uma determinada corrente de pensamento da educação ambiental, não elimina a existência de perspectivas políticas desse campo que sejam contrárias e/ou resistentes à normatização e uma determinada perspectiva.