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Capítulo 9. Ecologia e educação sobre o primado das resistências

9.3. Ecologia menor

Para sugerir a distinção entre ecologia maior e menor, Godoy propõe dois questionamentos: o primeiro é que tipo de vida a ecologia produz e o segundo é sobre quais ecologias a vida produz. A proposta de Godoy, segundo Orlandi (GODOY, 2008, p. 16) é pensar a primeira remetendo a Terra como o corpo organizado da ecologia, estriado, hierarquizado, estruturado, fixo, imutável, transcendental, enquanto que a segunda observa a Terra com suas perspectivas nômades, libertárias, lisas, fluídas, como o corpo sem-orgãos de Artaud (LINS, 1999).

Sugere Godoy que existe uma ecologia maior, da conservação, com efeitos universalizantes e totalizantes, cujo esforço é manter a vida em seus limites, como

189 em um Parque Ecológico, Zoológico ou laboratório, passível de ser observada, controlada, normalizada, medida, moderada, governamentalizada. Uma verdade inerente e essencial do mundo. Um continente de conhecimento, estável, inabalável, marcado por rotas e itinerários previamente estabelecidos, constituídos de antemão, de forma quem quiser trilhar pelos caminhos da ecologia, precisa ter um mapa decalcado em mãos para poder fazer parte das filas do exército de combatentes pró- ecologia.

A ecologia maior, sistematizada, classificada de acordo com um padrão quantitativo e qualitativo, quer por o mundo de volta a um equilíbrio estático e um padrão de limpeza igual àquele existente na pré-história, no mínimo. É preciso que o mundo volte à sua normalidade pré-humana, e que tudo o que não esteja de acordo com essa normalização cientificamente ecológica seja combatido, extinto, ou mesmo recuperado/re-incluído.

Por sua vez, é possível pensar uma ecologia menor – ou ecologias menores – que pode ser construída pelo exercício de deriva que a vida realiza enquanto não “é contida em um sistema que a comunique universalmente” (GODOY, 2008, p. 26). Essas ecologias menores, criadas na deriva, da experimentação do mundo, vão se abrir ao encontro com tudo aquilo que não seja, até então, passível de ter sido classificado como ecologia.

Uma ecologia porvir, em um devir-Deleuze, devir-Nietzsche, devir-Kafka, devir-Stirner, devir-Guattari... jogadas à deriva, cujas referências estão presentes nos nomadismos, e os percursos são sempre inventados:

As derivas não são anti-rotas, anti-itinerários ou antipercursos, elas liberam a vida das interdições despotencializadoras, produzidas por rotas e itinerários, componentes de um sistema de codificação do mundo correspondente a um ideal que quer conter e expressar a vida, tornando possíveis novos e outros percursos. (GODOY, 2008, p. 26)

A proposta de encontrar quais a s ecologias a vida produz é minoritária no sentido de resistir à produção dos universais em ecologia, e propor a potencialização das guerrilhas, agitações, ruídos anárquicos e selvagens (GODOY, 2008, p. 62), nômades individualizantes, singularizantes, egoístas hedonistas (no sentido de

190 Onfray e Stirner), preocupadas com a construção ético-estética de si próprio (GODOY, 2008, p. 73). Uma agitação molecular, inventiva, potencializante, menor.

Godoy faz uma intensa conversa com autores como Thoreau, Guimarães Rosa, Faulkner, Kafka, Cortazar e Lezama Lima, entre outros, como forma de construir possibilidades que “convidam a experimentar o inóspito e o ameaçador” (GODOY, 2008, p. 29). Para isso, é necessário, nessas tentativas, que haja excessos, transbordamentos, potências vitais.

Um exemplo desse exercício é a emblemática conexão que Godoy faz com Thoreau, o qual não separa o habitar e a política, estando muito próximo ao sentimento de cosmopolitismo dado pela filosofia cínica44, ou seja, de se estar em casa em todos os lugares no mundo, invertendo a lógica nacionalista da pátria como casa única:

Ao por essa máquina filosófico-literária em movimento, Thoreau criou um espaço híbrido de especulação, inventividade e experimentação, questionando a extrema vulgaridade e estreiteza da democracia instituída, que levava à ruptura do indivíduo consigo mesmo pela sujeição às instituições, à progressiva transformação da autorealização em realização das normas e ao abandono da instituição em proveito de um pragmatismo econômico e domesticador do indivíduo e da terra (GODOY, 2008, p. 193-194)

A ecologia de Thoreau, para Godoy, funciona mais como uma afirmação da vida, pois a partir de sua condição selvagem pode inventar estados ecológicos ainda não experimentados ou vividos. Longe de parecer alguma espécie de “turismo ecológico selvagem”, pois a condição selvagem do andarilho não é de entretenimento, passeio ou diversão no período de férias, mas a liberação de qualquer condição institucionalizada ou normalizada.

Se Godoy sugere que essa ecologia menor é como a disseminação das ervas daninhas por todos os lugares, Guattari sugere uma economia virtual generalizada, a qual, além de potencializar uma “regeneração política”, pode agir como um “engajamento estético, ético e analítico, na iminência de criar novos sistemas de

44 Sobre o cosmopolitismo cínico ver Goulet-Cazé (2007) e Onfray (2007). Sobre as relações entre o cinismo e a ecologia, ver o trabalho de Cuesta (2011). E sobre as conexões entre ecologia e educação ambiental, ver meu texto publicado na revista Fermentário (BARCHI, 2012).

191 valorização” (GUATTARI, 1992, p. 116), novas formas de buscar sentido, subjetividades inusitadas. Guattari dá uma responsabilidade especial à poesia, à música, às artes plásticas, ao cinema, e particularmente às suas “modalidades performáticas ou performativas” (GUATTARI, 1992, p. 116), como movimentos que ele sugeriu chamar de trincheiras da arte, especialmente a das criatividades objetivas das minorias, dos oprimidos, dos marginais:

Gostaria apenas de enfatizar que o paradigma estético, da criação e da composição de perceptos e afetos mutantes, se tornou o de todas as formas possíveis de liberação, expropriando assim os antigos paradigmas cientificistas aos quais estavam referidos, por exemplo, o materialismo histórico ou o freudismo. (GUATTARI, 1992, p. 115-115)

E é sob uma condição de menoridade, e também de marginalidade, que as ecologias licantrópicas, infernais e ruidosas se produzem, se formam, se veiculam e se relacionam. Sob seus aspectos disformes, anormais, híbridos e monstruosos que elas criam e fazem circular saberes insubmissos, promovendo processos educativos conforme promovem encontros e diálogos. Além disso, são licantrópicas por sua condição constantemente transformativa; são infernais, por serem sugestivamente inconformes, e são ruidosas não somente pelo ruído sonoro produzido, mas pelas inquietações que são capazes de causar.

Nesse sentido, e como proponho a seguir, a resistência em relação às ecologias menores e centrais está presente no aspecto de não se submeter aos modelos impostos pelas ecologias oficiais, e reside não na modelização em adulto das perigosas infâncias, mas no potencial trans-formativo (REIGOTA, 2010) que a condição marginal carrega.

A inconformidade presente na postura infernal sugere o exercício de resistência à conversão – elevação às alturas – do processo educativo ecológico oficial/oficialesco e policial/policialesco, ao não intencionar a inclusão de suas propostas no paraíso ecológico das utopias educativas, dando-se a pecha do demônio contestador e perverso que caminha, se transforma e se conecta nas superfícies rizomáticas.

E a resistência está presente no ruído, ao contrapor-se ao barulho cotidiano que acaba por impedir o pensamento. Se o barulho, como diria Nietzsche, faz com

192 que o humano não consiga compreender a sua própria formação, o ruído que essas ecologias menores trazem à tona e espalham ao redor do globo pode permitir que o exercício da experimentação no pensamento mantenha seu potencial nômade no combate à cristalização das noções e das práticas da educação ambiental.

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