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Capítulo 9. Ecologia e educação sobre o primado das resistências

9.2. Sobre educação e minoridade

O conceito de menor tem grande força e pertinência na potencialização das resistências insubmissas, contracondutivas e indisciplinares. O menor também vai permitir que a ação e o pensamento das perspectivas ecologistas em educação possam ser levados aos extremos, ao sugerirmos suas faces licantrópicas, ruidosas e infernais. Potencializa, também, pensar a ecologia e a educação sob a perspectiva do sujeito-eu-único, sugerida por Stirner, potencializada por Nietzsche, como foi a própria noção de grupelho, proposta por Guattari (1981).

Se existem práticas de sujeição unicamente externas nos assediando por toda a parte a favor do estabelecimento universal de uma ciência, de uma norma, de uma conduta e de um governo policial, inquestionáveis e totalizantes, talvez o que reste à militância política educacional e ecológica seja justamente a disseminação das multiplicidades singularizantes, rebeldes e anárquicas. Uma militância não mais profética pró-utopias, mas militâncias plurais que busquem resistir ao apagamento das diferenças promovido pelas forças econômicas, científicas, governamentais e doutrinárias.

E essas multiplicidades singularizantes plurais resistem e se rebelam por serem menores. Esse conceito começou a ser desenvolvido por Deleuze e Guattari na obra Kafka: por uma literatura menor. Foi na análise da obra do escritor judeu tcheco que os dois franceses observaram a literatura feita de uma minoria em uma língua menor (no caso, os judeus tchecos submetidos à língua alemã) na qual se destacam três características principais.

Em primeiro, a desterritorialização da língua, já que os tchecos judeus só podiam escrever em alemão, ocorrendo um distanciamento da língua natal. Para Deleuze e Guattari, essa desterritorialização da língua proporciona uma apropriação que pode promover uma reterritorialização dos sentidos, já que Kafka é obrigado a falar sobre o próprio ruído como emissor de sentido.

Nós o vimos, o pio de Gregor que embaralha as palavras, o assobio do camundongo, a tosse do macaco; e também o

184 pianista que não toca, a contora que não canta, os cães músicos, tanto mais músicos em todo seu corpo quanto não emitem música alguma. Por toda a parte, a música organizada é atravessada por uma linha de abolição, como a linguagem sensata, por uma linha de fuga, para liberar uma matéria viva expressiva que fala por ela mesma e não tem mais necessidade de ser formada (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p. 43)

Como o macaco que não busca a liberdade, mas a saída da jaula (GALLO, 2006, p. 100), a desterritorialização é a promotora de uma invenção, de um modo de escape e a criação de alternativas, é o buraco do cachorro ou a toca do rato. A criação de novos territórios a partir da situação em que todo o território está tomado.

Em segundo lugar, existe a política na literatura menor, pois na discussão entre pais e filhos se faz a política – não edipiana – assim como na caracterização da burocracia, da sociedade, do comércio. Na sua escrita única e solitária, Kafka não quer nem a assimilação pelo alemão, nem a reunificação do iídiche, mas sim, levar a língua ao espaço desértico, liso, onde o grito pode ganhar o sentido.

Essa ligação do “individual no imediato político” (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p. 39), de acordo com os dois pensadores franceses, pode promover uma total contaminação do enunciado, levando à terceira característica da literatura menor que é o valor coletivo, pois ela produzirá aquilo que Deleuze e Guattari (2014, p. 39) chamaram de “solidariedades ativas”, forjando meios de outras consciências e outras sensibilidades, além daquelas instituídas pelos grandes mestres literatos, ou pela literatura maior:

A solidão de Kafka o abre a tudo o que atravessa a história hoje. A letra K não desigua mais um narrador nem um personagem, mas um agenciamento tanto mais maquínico, um agenciamento tanto mais coletivo quanto mais um indivíduo se encontre a ele ligado em sua solidão. É apenas em relação a um sujeito que o individual seria separável do coletivo e conduziria sua própria tarefa. (DELEUZE e GUATTARI, 2014, p. 39)

Do cão individuado à matilha musical, o coletivo é evocado não sob uma unidade policial, mas sob um coletivo de fugitivos em busca de novos territórios, autônomos. Esta é a revolução do menor, inventiva, intensa, lenta, densa. E nômade.

185 O menor como desterritorializante, político e coletivo, funciona como uma máquina de guerra móvel e fluída, capaz de furar, bloquear, impedir, rachar, rasgar e impossibilitar, ao máximo possível, a perpetuação dos órgãos de poder que são conservados pelo Estado (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 19). Guerra como elemento constitucionalizante contra a formação dos Estados – e por isso a importância do trabalho de Pierre Clastres (2003) no Tratado de Nomadologia – já que ela é o mecanismo que é capaz tanto de manter a dispersão e a segmentaridade dos grupos, pois, como sugerem Hardt e Negri (2005), uma das mais belas qualidades de parte dos movimentos de resistência da multidão é justamente fazer-se como enxame, que impede tanto a captura quanto a tomada do poder institucional.

A máquina de guerra instaurada na forma dos bandos, dos grupos, das gangues e das bandas, se apresenta polimorfa e difusa. Não se deixa apropriar pelos Estados, assim como não pensa em se tornar outros Estados, com suas normatizações, legislações e hierarquizações. Apesar e se circunscreverem dentro dos estados, buscam ao máximo o escape e a resistência (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 24).

Nessas circunstâncias, Deleuze e Guattari apresentam os termos de ciência régia e ciência nômade, ou ainda, ciência maior e menor. Ciência menor que possui, de modo geral, quatro características básicas.

A primeira é que ela vai possuir um modelo hidráulico, pois vai compreender a realidade como um fluxo, e não como um sólido.

A segunda é o devir e a heterogeneidade, resistindo à identarização, ao fixo e ao eterno.

A terceira é que não promove a modelização reta e paralela, mas as análises espirais, turbilhonantes e circulares, realizadas em espaços lisos.

A última é que não há fórmula ou teoremas, mas a análise direta da questão em relação aos seus acidentes, afeições, condicionamentos e resoluções.

A ciência menor, nômade é combatida pelo Estado, pois não permite sua homogeneização, sua normatização e formalização. Uma ciência adulta, cuja exigência da maioridade, maturidade e da seriedade vêm acompanhadas da obediência, da servidão e do assujeitamento (PELBART, 2013, p. 203). Nesse

186 sentido, talvez seja necessário evocar o retorno à infância sugerido por Larossa, e fugir da maioridade, como sugere Pelbart:

O desafio mais radical não consistiria precisamente, ao contrário, em escapar de uma maioridade que nos é imposta, individual e coletivamente, como um ideal, uma natureza, um progresso ou um destino, e cujo questionamento corre o risco, sempre, de parecer aos olhos dos “maiores”, como leviana, irresponsável, irracional, para não dizer infantil, desarrazoada. (PELBART, 2013, p. 203)

Ciências sem modelo, anárquicas, contra o método, perversas, reversas, inversas, rizomáticas, cartográficas, transversais. Analisar o problema e o acontecimento a partir de sua intensidade e possibilidade de afeto com outras esferas. Não reduzir a situação a um mesmo, mas situar o estabelecimento da diferença. Caminho de pesquisa e escrita não definido em modelos maiores preestabelecidos, mas a construção de novas cartas, mapas, escritos e vias. Ciência menor como ciência do risco, das conexões e dos deslocamentos.

E é pelo deslocamento que Gallo (2003), sugere pensar a educação a partir do conceito de menor. Ele evoca a distinção entre a ação do profeta e do militante sugerida por Negri (2001), para fazer essa discussão, também deslocando-a para a educação, criando os personagens do professor profeta e do professor militante.

O professor profeta como aquele que anuncia os problemas do mundo e, consequentemente, apresenta um mundo novo após a revolução. É o professor que indica os caminhos para a salvação, que define a ação política, que faz o devido cálculo da medida entre o que é a alienação e o que é libertação, molda as consciências, define a conduta do revolucionário de forma a mantê-lo esquadrinhado quando chegar ao poder, impedindo que a revolução, ao tomar o Estado, se desintegre.

Por sua vez, o professor militante é um agitador coletivo, e um potencializador dos indivíduos, sem necessariamente anunciar uma verdade soberana e unívoca sobre esses indivíduos. O professor militante não quer mobilizar multidões uniformes, mas sua ação possibilita o movimento disforme dos enxames múltiplos, permeados de diferenças e singularidades, as quais sejam as mais difíceis o possível de serem cooptadas, absorvidas e assimiladas.

187 Esse “devir-Deleuze” (GALLO, 2003, p. 75) libertário na educação propõe pensar uma educação como um ato de revolta, máquina de resistência, micropolítica, entrincheirada, sabotadora:

Uma educação menor é um ato de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização e de militância (GALLO, 2003, p. 78)

Se uma literatura menor desterritorializa a língua, assim a ciência menor arranca da ciência maior seu status da verdade, a educação menor desterritorializa a educação maior (das políticas, das leis, dos programas e currículos oficiais, dos gabinetes) ao possibilitar novas práticas, métodos, currículos e convívios educativos nos espaços da educação, sejam eles institucionalizados ou não. Impedir a produção educativa em massa, para o mercado. Criar resistência e diferença.

Literatura menor como ação política. Educação menor como fazer político. Fazer político como ação cotidiana, rizomática, fragmentada, segmentada (GALLO, 2013, p. 82), que não está interessada em se integrar a uma fictícia noção de totalidade na educação, mas um fazer micropolítico, instigado pela revolta, pela insubmissão, pela rebeldia, pela indignação. Aliás, já sugeria Paulo Freire que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o caráter formador da educação (FREIRE, 2000a, p.37), é que é preciso se dispor ao risco e aceitar o novo.

Educação, nessa perspectiva, não como meio de se chegar à uma utopia, seja ela liberal, marxista, ou mesmo libertária, mas como intermezzo, conexão de ações, como encontros furtivos, alegre e alheios à construção dos indivíduos e coletivos como partes integrantes de uma sociedade, mercado, mão de obra ou país, mas como singularidades autônomas e diferencialmente coletivas.

E esse é o terceiro deslocamento que Gallo realiza na construção de uma proposta de educação menor, sugerindo a educação como ação coletiva:

188 A educação menor é uma aposta nas multiplicidades, que rizomaticamente se conectam e interconectam, gerando novas multiplicidades. Assim, todo ato singular se coletiviza, e todo ato coletivo se singulariza. Num rizoma, as singularidades desenvolvem devires que implicam hecceidades. Não há sujeitos, não há objetos, não há ações centradas em outros; há projetos, acontecimentos, ações sem sujeito. Todo projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso também. (GALLO, 2003, p. 84)

A educação menor como uma educação libertária sugere um processo de singularização, uma máquina de desterritorialização do sujeito, e a construção contínua de novos territórios. Mais que uma busca por liberdade, um constante processo de liberação. Liberação das normas, da condução das governamentalidades policialescas.

Uma proposta de educação menor como prática de resistência rebelde e libertária pode promover uma insurreição de saberes, em uma construção científica que sugere e busca uma inversão do paradigma e do método científico. O que valeria para aprender ciência? Tudo-vale, nos sugere Feyerabend, desde que ciência também possa ser compreendida e aplicada como uma construção micropolítica, menor e, nas palavras de Foucault, infame. Mas antes de falarmos sobre a construção desses saberes menores, infames, insurrectos e insubmissos, é preciso falar de ecologia.